Parlamentar age para aprovar nas assembleias legislativas, normas legais que reconheçam caçadores, atiradores e colecionadores como ‘atividade de risco’, o que pode flexibilizar os critérios da PF
A atuação parlamentar do deputado Eduardo Bolsonaro (União Brasil-SP) é o que se pode chamar de contrassenso, num País mergulhado em profunda crise política, social, ético-moral e econômica.
No plano econômico, por exemplo, o Brasil está sob estagflação, caracterizada pela combinação de altos índices de desemprego, inflação alta e galopante e carestia dos preços, em particular dos produtos da cesta básica, o que impõe às famílias mais pobres fazer escolhas difíceis para sobreviver com dignidade.
Como representante do povo, deveria centrar esforços do mandato parlamentar para ajudar a reduzir essa crise aguda. Mas eis que esse não é o foco do mandato do deputado. A preocupação dele é armar os ricos e remediados, numa lógica belicista insana, num País submerso na violência, decorrente sobretudo, da profunda crise porque passa o Brasil, que se aprofundou sob o governo do pai dele, o presidente Jair Bolsonaro (PL).
Diante desse foco insano e com dificuldade de convencer a maioria no Congresso sobre o projeto que beneficia os chamados CAC (caçadores, atiradores e colecionadores), Eduardo Bolsonaro articula movimento com aliados nas assembleias estaduais para dar porte de arma irrestrito aos integrantes desse segmento.
ESVAZIAR A ATUAÇÃO DE DELEGADOS DA PF
O plano do deputado, é aprovar regionalmente leis que buscam esvaziar a atuação de delegados da Polícia Federal, responsáveis pela análise dos pedidos de porte.
Outro elemento pitoresco dessa ação, é que o deputado é originário da Polícia Federal. Ele é escrivão de polícia.
Levantamento realizado pelo Estadão identificou projetos com a mesma finalidade em 13 Estados e no Distrito Federal, apresentados até o início de fevereiro. Em pelo menos dois desses (DF e RO), já foram aprovados. Os textos, fomentados pelo filho do presidente Jair Bolsonaro, são semelhantes. Dois autores admitiram ao Estadão que o projeto teve participação de lobistas pró-armas.
“ATIVIDADE DE RISCO”
Os projetos visam reconhecer os CAC, o maior segmento armado do País, como “atividade de risco”. Esse status não assegura direito imediato ao porte de arma para a categoria, mas pode impossibilitar a PF de analisar caso a caso as novas solicitações.
Cabe a delegados federais avaliar a “efetiva necessidade” de quem solicita o porte — condição que possibilita a livre circulação com armamento. Os CAC já estão autorizados a transitar com armas municiadas desde que estejam se deslocando de casa para o local oficial de tiro.
Eles alegam que a condição é restritiva e pode colocá-los em situações irregulares em caso, por exemplo, de mudança de rota por razões emergenciais.
CRESCIMENTO
Série de portarias e decretos de Bolsonaro tem ampliado a expedição de registros de CAC pelo Exército e permitido compras de mais armas e munições. Os CAC eram 255 mil, em 2018. Agora, de acordo com dados oficiais de dezembro, são 465 mil — um atirador pode ter até 60 armas.
O efetivo das polícias militares de todo o Brasil, na ativa, é de cerca de 406 mil homens, segundo dados oficiais. Nas três Forças Armadas, são cerca de 350 mil militares.
O lobby de Eduardo Bolsonaro é operado em conjunto com Marcos Pollon, presidente da Pró-Armas. A entidade se inspira na Associação Nacional do Rifle (NRA, na sigla em inglês), dos Estados Unidos.
“Comentem, falem, mandem e-mail, telefonem para o seu deputado estadual. Fazer um projeto de lei é simples”, disse Eduardo em conversa com Pollon, no início de fevereiro.
LOBBY
Pollon orienta pessoalmente os deputados sobre como apresentar a proposição. Ele admite que o objetivo de aprovar leis nos Estados é fugir da pressão em Brasília. No Congresso há projeto de lei com finalidade parecida desde 2019.
“É mais fácil se organizar nos Estados. Se for pautado na Câmara e no Senado, eles [esses] serão achincalhados, como está acontecendo. Nos Estados, o ataque é menos incisivo”, afirmou, durante transmissão com Eduardo, na internet.
Para o presidente da Pró-Armas, o apoio de Eduardo tem sido fundamental. “Vocês não têm ideia do que esse cara faz de bastidor. Ele é um monstro, um gigante. O que aparece é só a ponta do iceberg”, afirmou.
O deputado estadual Roberto Duarte (MDB-AC) admitiu que o projeto que apresentou chegou pronto de representantes da Pró-Armas. O soldado Adriano José (PV), deputado no Paraná, disse que o projeto dele “foi construído” pela assessoria jurídica dele “juntamente com o Pró-Armas no Estado”.
As consequências da mobilização preocupam especialistas. “É um esforço para vencer no cansaço”, disse a diretora executiva do Instituto Sou da Paz, Carolina Ricardo.
Procurado, Eduardo não respondeu. Pollon negou que tenha enviado projetos prontos a deputados estaduais. Disse que apenas tem “atuação política” na defesa da pauta.
PROJETOS NOS ESTADOS TÊM REDAÇÃO SEMELHANTES
CAC: são os colecionadores, atiradores desportivos e caçadores. Eles têm o direito, conferido pelo Exército, à posse de arma de fogo e munições para exercer as atividades de colecionismo, tiro desportivo e caça. Mas o direito de porte, para carregar livremente as armas, não é automático.
Registros: atividade de CAC tem crescido nos últimos anos. Segundo dados de dezembro, há 465 mil registros em todo o Brasil. Para efeito de comparação, as PM têm, na ativa, cerca de 406 mil homens.
Circulação: decretos e portarias do governo de Jair Bolsonaro facilitaram o acesso a armas e munições para CAC. Eles, inclusive, podem andar armados, mas há condições específicas para o deslocamento. As condições não se aplicam a quem tem o porte de arma.
Projetos de lei: objetivo dos projetos de lei é colocar, nas legislações dos Estados, o reconhecimento de que ser CAC é atividade de risco. Isso facilitaria a esse grupo a obtenção, na Polícia Federal, do direito de portar arma.
Alcance: existem projetos — todos com redações semelhantes —, em pelo menos 14 Estados: AC, BA, CE, MG, PA, PR, RN, RO, RJ, RS, SC, SP, TO e DF.
M. V.