O fascismo – inclusive seu filhote raquítico, o bolsonarismo – se alimenta da mentira, das fakenews, da realidade paralela.
Ele sempre tenta impor às pessoas aquilo que não é verdade, com o objetivo de dominá-las pela alucinação e pelo terror.
Um documento intitulado “Projeto de Nação Brasil 2035”, aparecido nos últimos dias, é um exemplo, especialmente delirante, dessa tendência à realidade paralela, isto é, a uma realidade que nada tem a ver com a realidade.
O texto – de 93 páginas! – foi confeccionado por um certo “Instituto Sagres”, em sociedade com o Instituto General Villas Bôas e com o Instituto Federalista, e é assinado por algo chamado CPEAZ (Consultoria Política e Empresarial para as Américas).
O que constitui o texto?
Uma fantasia (o próprio prefácio diz que tudo nele é fictício) sobre como o Brasil vai ser maravilhoso em 2035, se os que estão hoje no governo continuarem até lá.
Deixaremos para depois a abordagem sobre como esses bolsonaristas querem continuar no governo até (no mínimo) 2035, isto é, daqui a 13 anos.
Anotemos, antes, que o coordenador da confecção do documento foi Rocha Paiva, ex-presidente da ONG daquele humanista, Carlos Alberto Brilhante Ustra, sob cuja administração foram assassinados 140 presos políticos no Doi-Codi de São Paulo, durante a ditadura, e não vamos falar nos torturados.
Todo o texto é um suposto retrato do Brasil em 2035. Como tal é uma utopia reacionaríssima – a rigor, uma utopia fascista.
Não chega a ser ficção, nem mesmo uma ficção vagabunda. É mais uma exposição dos desejos de grupelhos fascistas, doidos para impor seu tacão à sociedade, e frustrados por não consegui-lo.
E aqui está sua primeira desonestidade: tentam se esconder atrás dos militares, como se tal projeto fosse dos militares.
Toda a sua mise-en-scène é nesse sentido, inclusive o lançamento do “projeto”, com a presença do vice-presidente, Hamilton Mourão.
Entretanto, o que pode ter a ver com os nossos militares – com o verdadeiro espírito militar brasileiro – um “projeto” que parece (e, em boa parte, é) uma regressão ao escravagismo e à submissão a um estamento despótico?
Nossos militares foram, desde a segunda metade do século XIX, abolicionistas e republicanos. No entanto, o fascismo os quer escravagistas e monarquistas (ou equivalente a isso) nos dias de hoje.
Tudo no documento é falso. A começar pelo suposto “nacionalismo”, pois tudo nele tem o odor da genuflexão diante do imperialismo.
Assim, a palavra “globalismo”, que seria o inimigo a enfrentar, segundo os autores dessa aldrabice, somente está ali para enganar os trouxas, ao evitar a palavra “imperialismo”. Ao imperialismo, que tem sede nos países centrais, especialmente nos EUA, os fascistas daqui não se importam de se ajoelhar. Já o “globalismo”, que supostamente não tem pátria…
O “globalismo” é, portanto, uma invenção para esconder a submissão vergonhosa ao imperialismo.
Mas não é apenas para esconder essa vergonha que o “globalismo” é usado. Vejamos o seguinte trecho:
“O globalismo tem outra face, mais sofisticada, que pode ser caracterizada como ‘o ativismo judicial político-partidário’, onde parcela do Judiciário, do Ministério Público e da Defensoria Pública atuam sob um prisma exclusivamente ideológico.”
O que está aí acima é a vontade de destruir o Judiciário como instituição (assim como o Ministério Público – e até a Defensoria Pública!) para impor a sua ideologia fascista como medida, supostamente, de juízo. É isso o que significam as queixas contra as ideologias – que somente a ideologia dos autores do documento deve ser admitida, portanto, o Judiciário, Ministério Público e Defensoria Pública (!) não devem existir tal como existem hoje.
A mesma coisa em relação ao “sistema político”, que seria destruído para que “novas lideranças” (sic) ocupem o lugar das antigas.
E aqui chegamos a um dos pontos culminantes: o sistema educacional seria “desideologizado” (literalmente: Os currículos [em 2035] foram “desideologizados” e hoje são constituídos por avançados conteúdos teóricos e práticos, inclusive no campo social, reforçando valores morais, éticos e cívicos e contribuindo para o progressivo surgimento de lideranças positivas e transformadoras).
Como os autores do documento pretendem fazer isso?
Eles não dizem, mas, obviamente, só existe um método: perseguindo, censurando e prendendo professores e educadores, acabando com qualquer discussão democrática do ensino e de seu conteúdo. O que não garantiria “desideologização” alguma, mas apenas, como na Alemanha de Hitler, a imposição da ideologia fascista nas escolas e na educação em geral.
Já voltaremos a esse ponto. Antes, um dos ensaios de ficção (uma tentativa) mais ridículos que há nesse texto:
“… pode ser citado o contencioso de 2028 entre EUA e seus aliados, de um lado, e China e Rússia, de outro, tendo como palco a Guiana e sua produção de ouro e, especialmente, de bauxita. A potência oriental adquiriu vastas áreas de mineração da Guiana e iniciou um processo acelerado de produção predatória para o meio ambiente, com vistas a atingir a liderança do mercado mundial, dominado pela Austrália. Os impactos logo se fizeram sentir no Suriname, na Venezuela e mesmo no Brasil. Houve forte reação de entidades ambientalistas internacionais e de direitos humanos, tendo em vista as condições degradantes dos empregados. Uma escalada nas negociações motivou o deslocamento de parte da Quarta Frota dos EUA para as proximidades da Costa da Guiana e da Venezuela.”
Não é comovente, leitores? Diante da agressão da Rússia e da China, daqui a seis anos, os EUA mandariam a Quarta Frota, para defender o Brasil, a Guiana, o Suriname, a Venezuela, e os trabalhadores explorados pelos russos e chineses…
Vai ser capacho assim…
Mas, perguntará o leitor, na opinião desses elementos, o que movimentaria a economia brasileira até 2035 (e depois)?
Ora, leitor, tal como na utopia de Plínio Salgado e do integralismo, a agricultura, agora na sua nova versão marketeira, o agronegócio.
A própria indústria, no documento, é um ramo subsidiário do agronegócio.
E não haveria investimento público, pois o documento propõe uma redução dos gastos públicos.
Logo, o país atolaria em um pântano de estagnação, mal vivendo da exportação primária.
Mas, então, quem fabricará no país os bens industriais de que necessitamos?
Supõe-se que ninguém. Se podemos importar – como dizia aquela múmia, Eugenio Gudin, há 60 ou 70 anos – para que fabricar? Assim, exportaríamos produtos agrícolas a preços cada vez menores para importar produtos industriais cada vez mais caros. Belo destino de espoliação…
Resta saber para quem existiria esse país atrasado, explorado, oprimido e miserável, no ano de 2035.
Segundo os autores, “os cidadãos brasileiros, em sua maior parte, identificam-se como Conservadores evolucionistas, no campo psicossocial, e Liberais, porém, conscientes da responsabilidade social de apoiar, com políticas públicas sustentáveis, as camadas carentes da sociedade”.
A preocupação é tanta com “as camadas carentes da sociedade” que nem se pensa em acabar com elas, ou seja, em fazer com que elas deixem de ser carentes. Portanto, a “responsabilidade social” dessa gente está em eternizar as camadas carentes da sociedade.
Mas, o que são “conservadores evolucionistas”?
“Ser Conservador significa defender a manutenção daquilo que dá efetivo vigor às instituições sociais tradicionais (…) O Conservador evolucionista não é imobilista, porque advoga que as mudanças e o contínuo desenvolvimento são necessários e saudáveis para as nações, mas a progressiva complexidade conjuntural exige que essas mudanças sejam prudentes e graduais, levando em consideração a experiência, a História e as tradições.”
Como ninguém tem nada contra a prudência, é evidente o que isso quer dizer: manter as coisas como estão, manter os privilégios dos privilegiados. Caso contrário, não se levaria “em consideração a experiência, a História e as tradições”…
Mas o que caracteriza o “conservador evolucionista e liberal” (sic)?
Entre outras coisas, eles “incentivam o trabalho voluntário, em franca contraposição ao coletivismo involuntário, imposto pelo Estado”, ou seja, negam o Estado como representante dos interesses coletivos, sociais. Querem substituí-lo, portanto, por um Estado antissocial e contra a coletividade.
Além disso, os “conservadores evolucionistas e liberais”, “defendem a desestatização da Economia (…)tendo em vista as perenes limitações da gestão pública frente ao arcabouço normativo”.
Ou seja, defendem a entrega do patrimônio do povo a alguns tubarões monopolistas – via de regra estrangeiros. O cômico é a justificativa (“tendo em vista as perenes limitações da gestão pública frente ao arcabouço normativo”).
Segundo eles, o perfil “conservador evolucionista e liberal” foi fundamental para amenizar a crise da pandemia de coronavírus de 2020/2021.
Amenizar?
Com 665 mil mortos até agora, como é que o perfil “conservador evolucionista e liberal” – isto é, aquele de Bolsonaro, pois só pode ser isso do que estão falando – amenizou a crise da pandemia?
Cáspite!
Voltemos, então, ao modo como eles, se pudessem, tratariam as nossas crianças e jovens.
“… há tempos uma parcela de nossas crianças e adolescentes sofria com a ideologização do sistema educacional, com a doutrinação facciosa efetuada por professores militantes de correntes ideológicas utópicas e radicais, com prejuízo da qualidade do ensino. Foram décadas de atraso, que condenaram o País ao subdesenvolvimento e à baixa produtividade.”
Ou seja, a culpa do subdesenvolvimento é de alguns professores comunistas que ficam enfiando ideias exóticas na cabeça das crianças.
Depois dessa asnice, prossegue o mundo em 2035:
“Esse quadro só começou a mudar nos últimos 15 anos, quando a sociedade, mais amadurecida e consciente, passou a exigir mudanças e a se contrapor às agressões — físicas, mentais e psicológicas — a que seus filhos e conhecidos eram submetidos, no ambiente escolar, por uma parcela daqueles que deveriam ser seus líderes e abnegados educadores.”
Agressões “físicas, mentais e psicológicas”?
Papagaio!
Obviamente (outra vez) só existe um destino possível para quem submete os filhos dos outros a tais crimes: a prisão. Então, é esse o plano para os professores?
Ainda bem que essa gente não tem esse poder – nem, jamais, vão ter.
Mas agora, em 2035, tudo está bem, porque “especial atenção está sendo conferida à valorização de boas práticas de comportamento, civismo, cidadania e disciplina dos alunos, bem como à formação e ao aperfeiçoamento de professores no tocante aos aspectos profissionais, comportamentais, morais e éticos”.
Em suma, no futuro, vão formatar a cabeça dos alunos e dos professores. Nada de discussões ociosas sobre o Brasil e os caminhos para o seu desenvolvimento. Isso não é assunto para alunos e professores. Estudante é para estudar. Professor é para ensinar.
Resta saber: estudar o quê? Ensinar o quê?
Quanto ao ensino superior, “amplos setores das Instituições de Ensino Superior (IES) — principalmente as públicas — transformaram-se em centros de luta ideológica e de doutrinação político-partidária. (…) Tudo era feito para que o aluno fosse obrigado a pensar exatamente como pensava o professor”.
Essa é a famosa “escola sem partido”, bandeira fracassada do governo Bolsonaro, cujo conteúdo é o sufocamento de qualquer discussão dentro da universidade – e o pelourinho para aqueles que quiserem insistir em discutir qualquer coisa fora do obscurantismo da canalha no governo.
Mas agora estamos diante de algo que revela o conteúdo tremendamente elitista dessa algaravia fascista:
“Um marco importante para a melhoria de desempenho das universidades públicas (…) foi a decisão de cobrar mensalidades/anualidades”.
Até a ditadura de 1964 recuou quanto à cobrança nas universidades públicas. Mas os fascistas atuais querem cobrar – como se o povo não pagasse impostos que sustentam as universidades.
Mas, então, por que eles pretendem, se estiverem no governo em 2035, implantar a cobrança nas universidades públicas?
Ora, por que o Zé Povinho teria direito, assim, sem mais nem menos, ao ensino universitário?
A justificativa de que somente os ricos pagariam é uma fraude. É evidente que eles não estão preocupados em cobrar dos ricos, mas dos pobres.
Entretanto, o ensino universitário tem que ser universal – que o leitor nos desculpe o quase trocadilho.
O que eles não dizem é que consideram o nosso povo inferior – essa mistura de negros com índios e com brancos, que muito nos orgulha, para eles é um sinal de inferioridade.
Então, para que universidade pública gratuita?
Porém, nesse caso a estupidez vai além. Os autores do documento são a favor, também, que o Sistema Único de Saúde (SUS) seja pago:
“… atualmente [2035] comprova-se que [o pagamento] não somente trouxe mais recursos para o SUS como também racionalizou atividades e procedimentos — o que contribuiu para o aperfeiçoamento da gestão.”
Isso, evidentemente, só beneficiaria os grandes proprietários privados da área da Saúde – inclusive os fundos financeiros e bancos que estão no ramo.
Além disso, deixaria uma grande faixa da população na doença, e, no limite, na morte.
Mas a vida é, exatamente, o que não importa aos fascistas.
Veja-se o ponto de Segurança Pública.
“Até o final dos anos 2010, a criminalidade e a violência cresciam constantemente, com a leniência de setores do Judiciário, do Ministério Público e da Defensoria Pública que viam a criminalidade como fruto da luta de classes, onde os criminosos eram qualificados como vítimas e suas vítimas encaradas como opressores.”
Essa descrição é inteiramente maluca, falsa, mentirosa e cretina.
Não foi a “leniência”, seja do Judiciário, muito menos do Ministério Público (e, menos ainda, da Defensoria Pública, cuja função é defender réus sem condições de pagar advogados) que fez a criminalidade crescer.
E ninguém até hoje elevou a criminalidade ao patamar da “luta de classes”. Ou qualificou criminosos como vítimas ou vítimas como criminosos.
Tudo isso é, literalmente, mentira.
A continuação desse trecho é reveladora, tal como é reveladora, nas necropsias, a abertura do abdômen dos cadáveres.
“A partir dos anos 2020 [ou seja, do governo Bolsonaro], sucessivas políticas de Segurança Pública foram concebidas e implementadas, com razoável permanência, assertividade e rigor. (…) Com isso, índices gerais de violência foram reduzidos em diversas regiões do País”.
Aqui, os autores do documento se traíram. Pois não se trata do ano de 2035, mas do ano de 2020, ou seja, colocaram para fora o incensamento do governo Bolsonaro.
Em suma, chumbo nos bairros populares. Como o Jacarezinho e a Vila Cruzeiro tomaram conhecimento.
O Brasil que esse “projeto” delineia é um Inferno pior do que o Brasil de hoje. É somente isso que o fascismo tem a oferecer ao país.
Nós poderíamos, diante da inanidade desse texto, ignorá-lo. Se não o fizemos foi apenas pelas fanfarras que o acompanharam – e pela tentativa de passá-lo como uma posição dos militares brasileiros.
Mas resta uma pergunta: como os autores do texto pretendem ficar no governo até 2035 (e depois)?
Em vários trechos, dizem eles que seria através de eleições.
Mas como ganhariam eleições com o plano de fazer a população pagar no SUS e nas universidades públicas, além de desestatizar tudo, destruir as instituições e reduzir gastos públicos?
Segundo eles, pela conversão de “uma grande parcela da população” a um credo “conservador e liberal” (coerência não é o forte dessa turma).
Eles não esclarecem como pretendem que “uma grande parcela da população” se converta a essa infâmia.
Porém, é conversa para boi dormir.
É óbvio que estão especulando com uma ditadura.
É verdade que, na impossibilidade de arraigá-la agora, adiaram-na para o ano de 2035, quando, o mais provável, é que eles tenham sido varridos da luta política.
Entretanto, talvez haja algo de positivo: o fato de recorrerem a uma fantasia mostra até que ponto se sentem, hoje, impotentes.
CARLOS LOPES