Com a pandemia de Covid-19 chegando a 2 milhões de contágios e quase 200 mil mortos no mundo, o presidente Donald Trump anunciou na terça-feira (14) que irá suspender o financiamento dos EUA à Organização Mundial da Saúde (OMS), que é a organização ligada à ONU que está coordenando os esforços mundiais para contenção da doença.
Enquanto países como a China – que enfrentou quase sozinha a epidemia, quando mal se tinha noção do que se tratava -, a Rússia e a pequena Cuba prestam solidariedade a vários países assolados pela pandemia, o presidente do país mais rico do planeta manda cortar o financiamento à OMS.
Isso, no momento em que a pandemia ameaça engolfar os países mais pobres e de sistemas hospitalares mais débeis, e mais dependentes do apoio da OMS.
A decisão foi imediatamente condenada pelo presidente da Associação Médica Americana, Dr. Patrice Harris, que a classificou de “um passo perigoso na direção errada que não fará mais fácil derrotar a Covid-19”. Ele instou Trump a rever o corte.
A OMS recentemente fez um apelo por mais de US$ 1 bilhão para bancar operações contra a pandemia nos países mais pobres e mais desassistidos, imprescindíveis para evitar uma temida “segunda onda”.
Na segunda-feira, o diretor-geral da OMS, Tedros Adhanom Ghebreyesus, agradeceu à contribuição extra da Grã Bretanha de £ 200 milhões.
“GRIPE COMUM”
Os mais de 600 mil casos de Covid-19 e mais de 25 mil mortos nos EUA – tristes recordes em nível mundial – por si só são um retrato do que tem sido a postura da Casa Branca diante da pandemia, que Trump chegou a comparar, em comício em 10 de fevereiro, a “uma gripe comum”, que desapareceria com o “calor da primavera”.
Só quando a Covid-19 explodiu de tal forma em Nova Iorque em março, que nem Wall Street ficou imune, Trump se mexeu, recuou do “reabrir os negócios até à Páscoa”, e fez a meia volta para o “fique em casa”. Que quer porque quer forçar os EUA a abandonar a partir de 1º de maio, contra a opinião dos especialistas médicos e dos governadores e prefeitos.
Depois da reportagem do New York Times de domingo, que esmiuçou como Trump ignorou os cientistas e apostou em seus “instintos”, deixando a propagação do coronavírus correr solta e fracassando em implementar testes, Trump anda como alma penada atrás de um bode expiatório.
Desde o fim de semana, já tuitou # DemitaFauci (o principal infectologista dos EUA), já chamou o governador de Nova Iorque Andrew Cuomo de “amotinado” e agora faz da OMS seu alvo.
Enquanto no mundo inteiro, há convocações pela intensificação da cooperação entre os países para derrotar o que a OMS tem chamado de “inimigo número 1 da Humanidade”, o novo coronavírus, tudo que Trump faz é fugir de suas próprias responsabilidades sobre o desastre em curso nos EUA, ao acusar a OMS de ter “falhado em seu dever básico” e promover a “desinformação da China” sobre o vírus.
A exacerbação do contágio e das mortes na Europa primeiro e depois nos EUA foi consequência da resistência de variados governos a adotarem a quarentena, que visa quebrar a cadeia de transmissão, isolar e tratar os doentes e achatar a curva de contágio para evitar o colapso do sistema de saúde.
Não foi por falta de exemplo da China, que tomou medidas de contenção reconhecidamente “sem precedentes”.
“IMUNIZAÇÃO DE REBANHO”
Obscurantistas no mundo inteiro e candidatos a Jim Jones insistiram ora em dizer que era uma “gripezinha” ou que o laissez-faire médico resolveria a parada através da “imunização de rebanho”.
Tem gente até fazendo carreata pelo “vem pra rua morrer”, tem presidente querendo reabrir a economia com um “big bang”. E a culpa pelos EUA terem, com quatro vezes menos população, oito vezes mais contágios e mortes, só pode ser da OMS e da China, insistem.
A aposta de Trump é que aquela população mais simplória dos EUA irá acreditar que a pavorosa dimensão que a pandemia alcançou nos EUA é fruto, não do obscurantismo e incompetência dele, mas da “falha da OMS”, e será reeleito.
GENOCÍDIO
Ao cortar o financiamento da OMS, o que Trump está propondo é deixar com que a pandemia vitime os países mais débeis e pobres, que precisam desesperadamente do apoio e conselho que a instituição internacional de saúde pública proporciona, como visto recentemente na epidemia de ebola na África.
Além de uma desumanidade, é uma estupidez, já que se a pandemia assolar descontrolada esses países e suas favelas, como bumerangue irá voltar até os EUA, repetindo o desastre da epidemia da gripe espanhola de 1918-1919.
A China comunicou imediatamente a OMS em 31 de dezembro de 2019 do primeiro caso. Entregou à OMS e aos países o sequenciamento genético do coronavírus no dia 11 de janeiro. Segundo o NYT, o presidente Trump foi informado pelo seu secretário de Saúde, Alex Salazar, no dia 18 de janeiro.
O diretor do órgão de prevenção de epidemias dos EUA, Robert Redfield, foi comunicado, pelo seu congênere da China, no dia 4 de janeiro. Na mesma época, o próprio Dr. Fauci foi avisado. A OMS declarou “emergência de saúde pública global” no dia 30 de janeiro e pandemia em 11 de março.
Até o final de fevereiro os cientistas não tinham conseguido falar com Trump e uma reunião que chegou a ser agendada foi desmarcada por Trump na volta da visita à Índia.
Coreia do Sul e EUA tiveram o primeiro morto por coronavírus no mesmo dia, 29 de fevereiro. Pouco mais de um mês depois, a situação dos dois países é diametralmente oposta. Sob controle na Coreia do Sul e desembestada nos EUA.
A Coreia do Sul não achou que era “gripezinha”, rastreou e isolou com rigor os doentes e testou em massa – tudo ao contrário dos EUA.
A atenção do governo Trump sobre a ameaça pode ser deduzida da proposta de orçamento enviada ao Congresso, que cortava a verba para epidemias em 16%.
Não houve desinformação da China. O mundo inteiro viu o que a China estava fazendo. Fechamento completa da província que era epicentro da doença, quarentena no país inteiro, suspensão da produção, das escolas, dos teatros e cinemas. O país inteiro dedicado a uma “guerra popular científica”, como chamou a liderança chinesa.
A China ganhou um tempo precioso para os demais países com seu fechamento, mas esse tempo foi infelizmente desperdiçado.
MUITO OCUPADO
Trump estava muito ocupado em janeiro cuidando do impeachment e de ameaçar o Irã com uma guerra, além de matar seu povo de fome pelas sanções. Em fevereiro, toda a sua atenção estava ocupada na comemoração do rally da bolsa.
Quando passou a encenar que fazia alguma coisa contra o contágio, proibindo viajantes provenientes da China e fechando a fronteira com o México, o vírus chegara da Europa e já circulava internamente pelo menos desde fevereiro, segundo recente pesquisa.
Parte da contribuição dos EUA à OMC é aprovada a cada ano pelo Congresso e não está claro se Trump pode cortar simplesmente. No ano passado, Washington contribuiu com cerca de 15% do orçamento da OMS e fez contribuições extraordinárias para programas específicos.
Desde que tomou posse, Trump já retirou os EUA do Conselho de Direitos Humanos da ONU, da Unesco (cultura), do Acordo de Paris do Clima, do Tratado de Proibição de Mísseis Intermediários INF, do acordo nuclear com o Irã e se opôs ao Pacto da ONU sobre imigração. Também cortou em 1917 o financiamento da agência da ONU que ajuda refugiados palestinos.