Mais de 50 sociedades científicas assinam carta contra o ensino domiciliar, o “homeschooling”, como é chamado o projeto, aprovado na Câmara dos Deputados. No documento, encabeçado pela Sociedade Brasileira para o Desenvolvimento da Ciência (SBPC), a entidade apela aos parlamentares que rejeitem a proposta.
“Um dos principais papéis da educação, como se constata da própria etimologia da palavra (ex+ducere = guiar ou conduzir de dentro para fora), é o de preparar crianças e adolescentes para viverem em sociedade e desenvolverem condições de conviver harmoniosa e frutiferamente com seus semelhantes”, diz o documento. “Ora, o homeschooling justamente nega, às crianças e adolescentes, essa possibilidade de serem conduzidas para um mundo mais amplo e diverso que a família”, prossegue o texto.
O manifesto reconhece a importância da família na educação dos jovens, “na formação dos valores, da autoconfiança e da busca honesta da felicidade”. No entanto defende que “educação requer uma série de conhecimentos e valores que foram sendo desenvolvidos ao longo dos últimos séculos por profissionais qualificados, em ambientes que permitem a vivência coletiva de crianças e adolescentes”.
Além disso, a decisão não beneficia um grande contingente de famílias. “Reportagem do Jornal Nacional, poucos anos atrás, falava em 5 mil pais. A associação dos mesmos alegava que seriam 20 mil. Mesmo assim, num contingente de mais de 35 milhões de matriculados no ensino fundamental e médio, 5 ou 20 mil constituem uma minoria extremamente pequena”, avaliam os especialistas, no documento enviado ao Congresso no dia 19.
Na semana passada, a Câmara dos Deputados aprovou o projeto de lei nº 3179/12, que regulariza a prática de educação domiciliar no Brasil, também conhecido como homeschooling e que aguarda votação no Plenário do Senado. No ano passado, a proposta foi a única colocada como prioridade na educação pelo governo de Jair Bolsonaro.
Os deputados Bacelar (PV-BA) e Idilvan Alencar (PDT-CE), que votaram contrários ao projeto, confirmaram que a educação domiciliar desvaloriza o professor. “É entregar seus filhos para quem não foi formado para ensinar. E escola é o lugar do contato direito com a diversidade, é a fábrica dos regimes democráticos, já dizia Anísio Teixeira”, declarou Bacelar.
Para Idilvan Alencar, os deputados que votaram a favor serão cobrados pelos professores. “Vão demitir quantos professores? 20%? Isso não faz bem para a educação brasileira”, disse.
Enquanto aguarda a decisão do Senado, fora da esfera parlamentar, o projeto também enfrenta resistência. Professores, educadores e demais cientistas já se manifestaram contrários à sua aprovação. Para os especialistas, além da educação domiciliar não conseguir substituir a estrutura de ensino das escolas, ela retira o direito à socialização de crianças e jovens.
“O ensino domiciliar quebra as possibilidades de que crianças e adolescentes tenham direito à proteção contra a violência, o direito a um processo educacional que os conduzam a uma vida plena e elimina a compreensão de que uma das características do processo educativo é a socialização, a construção de uma maneira de viver em sociedade e lidar com seus conflitos e com suas dificuldades”, explica Marta Feijó Barroso, coordenadora do Comissão de Educação Básica da SBPC (Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência) e professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
MODELO DOMICILIAR É UMA FALÁCIA
Também nessa perspectiva, a dirigente do Sindicato dos Profissionais em Educação no Ensino Municipal de São Paulo (Simpeem) Célia Cordeiro da Costa, disse ao HP que “apenas o ensino presencial, a interação entre todos os membros da comunidade escolar garantem uma aprendizagem real, educação efetiva, transformadora e libertadora”.
“O Sinpeem encara o uso das novas tecnologias como uma ferramenta a mais na construção do conhecimento pelos alunos sob orientação dos professores, na unidade escolar e nos seus territórios, conforme os PPPs (Projetos Político – Pedagógicos) elaborados autonomamente e democraticamente”, prossegue Célia.
Ela ressalta que durante a pandemia se justificava a adoção de forma híbrida das tecnologias, mas “foi um período de excepcionalidade”. “As perdas para o aprendizado das crianças, adolescentes e adultos foram irreparáveis”, completa.
Para ela, esse modelo de ensino, “é uma falácia, feita apenas para atender a interesses de conglomerados multinacionais de educação ‘industrializada, mecânica, bancária’, como diria Paulo Freire”.
Pesquisa do Datafolha divulgada na semana passada revela que a educação domiciliar é rejeitada por quase 80% dos brasileiros.
Coordenada pelas organizações Ação Educativa e Cenpec, a pesquisa inédita foi realizada pelo Centro de Estudos em Opinião Pública (Cesop/Unicamp) e Instituto Datafolha.
Ainda assim, deputados federais bolsonaristas vêm se articulando na Câmara dos Deputados para afrouxar o texto do projeto de lei que regulamenta a modalidade no país.