Os guerrilheiros do Talibã tomaram Kandahar e Herat, a segunda e a terceira maiores cidades do Afeganistão, depois de Cabul, e uma capital provincial estratégica na quinta-feira (12), Ghazni, tornando ainda mais precária a situação do governo criado sob a ocupação, em meio à retirada norte-americana e dos seus satélites da Otan.
As quedas das duas cidades, já sob cerco, eram esperadas a qualquer momento, desde que a ofensiva começou na semana passada. O Pentágono tentou retardar o desfecho, bombardeando com B-52 as forças guerrilheiras, sem sucesso.
No dia 31 de agosto, a retirada deve estar concluída, e a data final, escolha do próprio presidente Biden, para tornar o desfecho inesquecível, foi o emblemático 11 de setembro.
Em Washington, os serviços de inteligência norte-americana refizeram os cálculos e passaram a considerar provável que o ‘Momento Saigon’ em Cabul, ao invés de demorar três meses, como previam, poderá acontecer em 30 dias. A guerrilha já controla dois terços do país.
Diante do que o Pentágono anunciou o envio de uma força de resgate de 3 mil soldados para executar a evacuação do pessoal da embaixada americana, que deverá ser imediatamente levado para o aeroporto da capital afegã, sob controle de tropas turcas. Os britânicos estão enviando um reforço de 600 soldados, para escoltar a fuga de seu pessoal de terra afegã.
LEGADO DA OCUPAÇÃO NORTE-AMERICANA
Quanto ao ‘legado’ de Washington no Afeganistão, é retratado pela famosa cena dos marines em vigia em campos de papoula. Sob a invasão, essa se tornou a economia afegã made in USA: recordista mundial da produção de ópio, matéria prima da heroína.
Para trás ficaram os dias de governo progressista na década de 1980, dedicado a fazer a reforma agrária, alfabetizar e conceder direitos a mulheres e minorias étnicas.
GHAZNI
Agora, em menos de uma semana, o Talibã conquistou 12 das 34 capitais provinciais e as principais passagens de fronteira com o Tajiquistão e o Uzbequistão, com o Irã, com a China e com o Paquistão.
Mas é a tomada de Ghazni, a apenas 130 km de Cabul, nesta quinta-feira, que corta uma estrada crucial que liga a capital afegã às províncias do sul do país, que mais evidencia que o cerco está se fechando.
Como em outras partes, colaboracionistas preferiram em Grazni fazer um acordo, com vídeos e fotos mostrando o comboio do governador da província, Daoud Laghmani, passando livremente pelos guerrilheiros, sem ser molestado.
Um membro do conselho provincial de Ghazni, Amanullah Kamrani, relatou que o chefe de polícia fez parte do acerto. Mais tarde, um porta-voz do Ministério do Interior asseverou que os fujões haviam sido presos ao chegarem a Cabul.
ESPANTO
Para a Associated Press, o “ataque representa um colapso impressionante das forças afegãs e renova questões sobre para onde foram os mais de US $ 830 bilhões gastos pelo Departamento de Defesa dos EUA em combate, treinamento dessas tropas e esforços de reconstrução – especialmente enquanto os combatentes do Talibã viajam em Humvees e caminhonetes de fabricação americana com M-16s pendurados nos ombros”.
Apesar da visão idílica sobre o que faziam os invasores norte-americanos na Ásia Central nos 20 anos de ocupação, o mais ridículo de tudo a referência aos “esforços de reconstrução”, soa como genuína a perplexidade diante dos “combatentes do Talibã que viajam em humvees com fuzis M-16s pendurados nos ombros”.
HERAT E KANDAHAR
Em Herat, a histórica cidade fundada por Alexandre o Grande em 500 AC, nem a chegada de um senhor de guerra mudou o curso da batalha. Os guerrilheiros tomaram prédios do governo e libertaram presos, depois de tiros esporádicos. O legislador afegão Semin Barekzai reconheceu a queda da cidade, dizendo que algumas autoridades de lá haviam logrado fugir.
Em Kandahar, o Talibã confiscou o gabinete do governador e outros edifícios, disseram testemunhas. O governador e outras autoridades fugiram do ataque, pegando um vôo para Cabul, acrescentaram. Eles não quiseram ser citados publicamente, explicou a AP, pois a derrota ainda não foi reconhecida pelo governo. A guerrilha já fez a limpa em uma prisão na cidade, para libertar cativos. Para a Al Jazeera, a batalha ainda estaria em curso.
“PARTILHA DE PODER?”
A agência de notícias do Qatar também afirmou que o governo de Cabul está oferecendo ao Talibã a “partilha de poder”, em troca da interrupção do avanço da guerrilha. Em Doha, prosseguiram as conversações, reunindo representações de Cabul, do Talibã e dos países vizinhos ao Afeganistão, mais Estados Unidos, China e Rússia.
Rússia e China pedem uma solução negociada, que evite que o país volte a uma guerra civil. No sul do Afeganistão, coração do Talibã, combates intensos continuaram em Lashkar Gah, onde forças governamentais cercadas tentam manter a capital da província de Helmand.
A legisladora Nasima Niazi admitiu que os bombardeios aéreos em andamento contra a área estão matando e ferindo civis. A AP citou uma empresa de segurança australiana, segundo a qual o ataque aéreo envolveu, ainda, caças F-15 e drones.
Na noite de quinta-feira, um oficial afegão, falando sob condição de anonimato, disse que o Talibã também tomou grande parte da província ocidental de Badghis, mas ainda haveria resistência. Por sua vez a guerrilha assevera que a sede do governo da província, a sede de polícia e todos os prédios de órgãos provinciais já estão em suas mãos.
PRIMEIRO DE SETE ALVOS
A invasão do Afeganistão e sua ocupação por 20 anos causou centenas de milhares de civis mortos e a devastação de um dos países que já estava entre os mais pobres do mundo. O ataque, após a queda das Torres Gêmeas em Nova York, ato em que nenhum afegão esteve envolvido, marca a oficialização da cruzada norte-americana para ‘refazer’ o Oriente Médio e assaltar o petróleo.
Como revelou o ex-comandante da Otan general Wesley Clark, sete países islâmicos eram o alvo, em cinco anos. Islâmicos e com petróleo.
Foi seguido pela invasão do Iraque, sob a fraude das “armas de destruição em massa”, prosseguiu com a destruição da Líbia, intervenção na Síria, desestabilização no Líbano e Somália, e sanções draconianas e ameaças contra o Irã. Era o momento áureo da nova ordem unipolar, que na prática rasgava a Carta da ONU.
Foram milhões os civis mortos, mutilados ou empurrados de seus lares ou ao exílio, nos países agredidos. O país que adora preleções sobre direitos humanos oficializou a tortura, as execuções extrajudiciais com drones, a perseguição a jornalistas que, como Julian Assange, revelavam os crimes de guerra.
DAY AFTER
Internamente aos EUA, especulação desenfreada, desindustrialização, desigualdade assombrosa, racismo nu e cru, grampo amplo, geral e irrestrito, perseguição aos imigrantes, Lei ‘Patriótica’, dezenas de milhares de veteranos mutilados de guerra, crash de 2008 e, afinal, pandemia, com seu horrendo recorde mundial de mortos e infectados, sob o negacionismo e a falta de um sistema público de saúde. 20 anos e trilhões de dólares depois, a decadência dos EUA não é mais uma hipótese, é algo que está em curso.