“Na Nicarágua, a luta é pelo mais essencial e básico: é pela liberdade, pelo direito de sermos livres”, afirmou a ex-comandante da Frente Sandinista Mónica Baltodano em entrevista ao secretário-geral da seção regional para a América Latina da União Internacional dos Trabalhadores da Alimentação (UITA).
“Na Nicarágua estamos numa situação que eu resumo que é a seguinte: suspensão total das garantias constitucionais dos direitos básicos de qualquer cidadão à mobilização, à expressão, à organização, a pensar diferente, a expressar opiniões distintas e que nos fazem retroceder há mais de 40 anos quando estávamos lutando contra a ditadura de Somoza”, prosseguiu a ex-comandante da Frente Sandinista de Libertação Nacional na entrevista ao podcast da seção regional da UITA – Rel-UITA.
Vamos à entrevista:
Gerardo Iglesias – Sobre a atual situação da Nicarágua nos fala Mónica Baltodano, ex-comandante da Frente Sandinista de Libertação Nacional, amiga e companheira.
Mónica Baltodano – Primeiro em relação à situação econômica e social. A pandemia de Covid aumentou a pobreza e tem agravado as condições econômico-sociais da grande maioria dos nicaraguenses.
A pandemia veio afetar a indústria turística, foram fechados centenas de negócios, inúmeras empresas de confecção se foram, isso somado às condições derivadas da crise política de 2018, com o levante popular. Podes imaginar o quanto piorou.
A pandemia foi abordada pelo regime através da negação, como foi feito também com o tema da repressão. Em primeiro lugar, tratando de minimizá-la; em segundo lugar, adotando uma política de contágio massivo através da promoção de várias atividades; e em terceiro lugar, com o ocultamento das cifras da pandemia.
Para dar uma ideia, o governo fala em 153 mortos até o dia de hoje, enquanto as cifras do Observatório Cidadão chegam a quase 3.000.
Hoje mesmo foram publicados dados estarrecedores de como as próprias cifras que o Ministério da Saúde (Minsa) fornece fazem pressupor que os mortos na Nicarágua já chegariam a 6.000.
São apresentando os falecidos desde março com outros problemas, como de obstruções venosas, do coração, etc,. Essas e outras enfermidades tiveram um aumento de 40%. Todos estes aumentos, conforme os especialistas, podem ser atribuídos ao Covid.
Iglesias – Faça uma breve análise da conjuntura na terra de Sandino.
Mónica – Pelo lado da situação política poderíamos caracterizar este ano como o da tentativa de criação de uma articulação das forças opositoras através da Coalizão Nacional, que agrupa partidos políticos com personalidades jurídicas à União Nacional Azul e Branco (UNAB) e à Aliança Cívica.
São tentativas de agrupamento que apresentam uma série de dificuldades, uma delas é o descrédito dos partidos políticos, outra é o esforço divisionista que o governo faz para impedir que se concretize a articulação.
Mas, além disso, tem outro problema, é que empurra fundamentalmente a saída para a via eleitoral. E essa via aparece imexível nas regras do jogo para favorecer atualmente o orteguismo não somente porque os árbitros são completamente ligados ao regime, mas porque as condições de construção das instâncias eleitorais, em todos os territórios, também estão absolutamente controladas.
Nestas condições a maioria das forças políticas pensa que seria um suicídio participar do processo eleitoral em 2021 sem que sejam feitas modificações substanciais nas regras do jogo e nos árbitros eleitorais.
Então a coalizão pressiona por esta via, enquanto o regime pressiona violentamente à desmobilização pela via da repressão.
Na última semana, a repressão se incrementou para tratar de impedir a organização territorial das forças de oposição, manifestando-se através de invasões.
Opositores são presos por horas, outros por dias, mas sempre alguns são detidos para serem judicializados e responderem pelas acusações mais absurdas como tráfico de drogas ou criminalização que impeçam sua mobilização cidadã.
Ao mesmo tempo, aumentou o assédio, a perseguição. As residências dos opositores são rodeadas por forças policiais desde a manhã até a tarde para impedir que seus moradores possam sair, transformando a casa numa prisão.
E quando as pessoas podem sair são seguidas, perseguidas ostensivamente, não por meio da vigilância de inteligência, mas com patrulhas nas ruas, com o claro intuito de intimidar.
Também se incrementou o que está sendo chamado de “terrorismo fiscal”. O Canal 12 que era um dos poucos canais da televisão aberta, que ainda conservava uma política independente, está submetido não somente aos embargos dos bens da empresa, como do seu dono e da sua casa, de suas propriedades pessoais.
O uso do fisco e da municipalidade de Manágua, com os aumentos brutais dos impostos, formam parte dos mecanismos persecutórios à oposição.
Há igualmente a vigilância de todas as moradias dos ex-presos políticos ou de pessoas que estejam no exílio, o que se soma à captura de quem regressa do exílio; são criminalizados com delitos inventados.
Também se mostrou um aumento das ameaças repressivas através da introdução no parlamento de três iniciativas de lei que desataram fortes pressões internacionais.
Uma é a lei de agentes estrangeiros que pretende estabelecer que todo aquele cidadão que através de uma organização ou bilateralmente receba fundo do exterior pode ser considerado um agente externo. Já os acusam de agentes do imperialismo.
Com esta iniciativa de lei pretendem passar a uma fase maior de controle das organizações civis, das organizações defensoras de direitos humanos, das organizações de mulheres, e também das organizações políticas. Isso significa um grave risco porque contém pressupostos de que as pessoas consideradas agentes externas não podem ser candidatas a nenhum cargo, porém que também podem ser judicializadas e consideradas traidores da pátria.
Outro dos projetos de lei pretende estabelecer a pena de privação de liberdade perpétua, algo que foi suprimido há muitos anos em nosso país. Algo que foi desenhado para ser aplicado para aqueles que cometeram crimes de ódio. E estão utilizando as assustadoras cifras de mortes de meninas ocorridas nos últimos meses para justificar com esses crimes o uso de outro mecanismo a mais para reprimir os cidadãos que lutam contra o regime.
E o terceiro instrumento legal que estão impulsionando é uma lei contra o ‘delito cibernetico’ para englobar que qualquer um que informe coisas distintas ao que queira ou diga o regime de forma a gerar mais angústia e medo a quem publicar, por exemplo, o número real de mortos por Covid, ou os enterros clandestinos que estão sendo realizados devido à pandemia. Tudo isso pode ser considerado um delito cibernético, todos submetidos a penas de prisão muito grave, criando uma espécie de cerco repressivo como preparação do regime para 2021, o suposto ano eleitoral.
Na Nicarágua estamos numa situação que eu resumo que é a seguinte: suspensão total das garantias constitucionais dos direitos básicos de qualquer cidadão à mobilização, à expressão, à organização, a pensar diferente, a expressar opiniões distintas e que nos fazem retroceder há mais de 40 anos quando estávamos lutando contra a ditadura de Somoza.
Hoje como ontem a luta na Nicarágua é pelo mais essencial e básico: é pela liberdade, o direito a sermos livres.
Iglesias – Qual o futuro cenário político?
Mónica – Pode ser que Ortega mantenha o movimento popular vivendo sob estado de sítio, impondo eleições com ele no poder e, inclusive, como candidato a uma terceira reeleição à presidência, num processo sem verdadeiras liberdades e garantias. Este é o pior dos cenários possíveis. Tomando em conta que as reformas que estão sendo solicitadas requerem dois períodos legislativos, se este ano não se fazem tais reformas, o cenário que se está impondo é o pior dos cenários possíveis.
Quer dizer, o que há são as tentativas de Daniel Ortega de ficar no poder não somente com o controle do executivo, mas continuando com o controle de todas as instituições, o Exército, a Polícia, o uso de forças paramilitares e fanáticos para manter oprimida a população.
Um cenário intermediário seria conseguir liberdade para os mais de 100 presos políticos, conseguir recuperar a liberdade de mobilização e que o povo volte às ruas. Neste cenário eu digo também que organizações populares como verdadeiros atores poderiam seguir tentando adiantar as eleições, fazer reformas eleitorais profundas, ter novas autoridades no Conselho Supremo Eleitoral e em todo aparato eleitoral, depuração do padrão eleitoral, possibilidade de construir coalizões independentes sem ter que ir submetido a nenhum partido político – porque é isso que atualmente a lei te obriga – e vigilância internacional, este seria um segundo cenário.
Outro cenário seria que os setores mais reacionários dos Estados Unidos consigam unir a direita mais oligárquica clássica, banqueiros, importadores, latifundiários e políticos capitulacionistas e com elementos das Forças Armadas possam apostar numa ação de força ou de uma alternância via eleições.
Outro cenário é o que aposta uma parte dos setores populares organizados: o de uma nova sublevação. Quer dizer que as extremas restrições somem as consciências para um novo levante para tirar Ortega do poder e assim se criem os espaços para uma transição democrática. Esta é a razão pela qual o governo reprime com tanta virulência, porque sabe que a força desta sublevação está aí nas pessoas que repudiam a situação atual e que querem uma mudança.