
Em depoimento ao STF, negou ter colocado as tropas da Marinha à disposição do golpe, conforme já testemunharam os comandantes do Exército e da Aeronáutica
O almirante Almir Garnier, ex-comandante da Marinha no governo Bolsonaro (PL), em depoimento hoje (10) à 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal (STF), confirmou sua participação em reunião realizada em 14 de dezembro com o ministro da Defesa, Paulo César Nogueira, o tenente-brigadeiro Carlos de Almeida Baptista Júnior, ex-comandante da Força Aérea Brasileira (FAB), e o ex-comandante do Exército, Marco Antônio Freire Gomes, na qual seria apresentada a minuta de golpe endossada previamente pelo então presidente Jair Bolsonaro.
Garnier afirmou, no entanto, que nenhum documento foi apresentado diante da recusa, que ele diz não ter testemunhado, de Baptista Júnior de receber qualquer minuta em face da informação prestada pelo general Paulo Sérgio Nogueira de que a iniciativa previa o cancelamento da posse do presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva, em 1º de janeiro de 2023.
Segundo analistas que assistiram o depoimento, com ar de ironia e deboche, o ex-comandante da Marinha tentou esconder o jogo e lançou desconfiança contra os outros ex-comandantes das Forças Armadas que não aderiram ao golpe, além de criticar nas entrelinhas o ex-ajudante de ordens de Bolsonaro, Mauro Cid, que colaborou com a Justiça e revelou os meandros da trama golpista chefiada por Bolsonaro.
O almirante, questionado sobre a postura de Baptista Júnior, afirmou que “essa não deve ser a postura de um subordinado”, a não ser que receba uma ordem flagrantemente inconstitucional, que era o caso, pois se tratava da minuta de um decreto presidencial prevendo a instituição de uma GLO (Garantia da Lei e da Ordem), o cancelamento da posse do presidente já eleito e diplomado, a prisão de autoridades e a constituição de uma comissão eleitoral em substituição à Justiça Eleitoral.
Garnier declarou que a reunião foi solicitada pelo ministro da Defesa aos chefes das três Forças Armadas para a análise da minuta do golpe e, diante da posição de Baptista Júnior, encerrou o encontro. “Quando entrei já percebi que tinha havido algum tipo de desentendimento, alguma discussão anterior tinha acontecido. E a reunião foi encerrada. O ministro não abriu nenhuma pauta adicional, parecia estar chateado com o desenrolar da conversa, e a reunião foi encerrada”, confirmou, em flagrante contradição com a informação dos demais comandantes.
Em outra reunião, realizada em 7 de dezembro, também com a presença do ministro da Defesa, Paulo Sérgio Nogueira, e dos ex-comandantes do Exército e da Aeronáutica, o então presidente Jair Bolsonaro teria externado uma “preocupação com as pessoas insatisfeitas, o que poderia trazer algum problema para segurança pública”, limitou-se a dizer.
Segundo ele, foram tratadas “considerações que deixavam uma dificuldade na condução do país. Preocupava a ele [Bolsonaro] e aos demais ministros, incluindo o da Defesa, qualquer questão que pudesse descambar para algo não muito agradável”. “Eu me lembro que o presidente disse que talvez nos convocasse em outra ocasião. Parecia ser algo que ele estava analisando”, disse Garnier, evitando apontar qualquer conotação golpista nas tratativas que estavam em curso, sob o comando de Bolsonaro.
Os ex-comandantes do Exército Marco Antônio Freire Gomes e da Aeronáutica Carlos Almeida Baptista Júnior afirmaram em seus depoimentos que Garnier apoiou as intenções golpistas de Bolsonaro. “O estatuto dos militares não faculta ao militar ficar inventando, tendo ilações, ou criticando coisas que estão na cabeça de outrem, principalmente se esse outrem for o seu chefe”, acrescentou.
Conforme a denúncia da Procuradoria-Geral da República (PGR), foi nesta reunião em que Bolsonaro apresentou a minuta de um decreto golpista. Garnier, no entanto, afirmou que nenhum documento foi apresentado.
“Eu não vi minuta, ministro. Eu vi uma apresentação na tela do computador. Havia um telão onde algumas informações eram apresentadas. Quando o senhor fala minuta, eu penso em papel, em um documento que lhe é entregue. Não recebi”, alegou.
Garnier também negou que colocaria a sua tropa à disposição do ex-presidente e chamou a versão de “ilação”. “Não houve deliberações, e o presidente não abriu a palavra para nós. Ele expressou o que pareceu mais preocupação e análise de possibilidades do que propriamente uma intenção de conduzir alguma coisa em alguma direção. A que eu percebi que era tangível era a preocupação com a segurança pública, para a qual a [Garantia da Lei e da Ordem] GLO é cabível dentro de alguns parâmetros”, admitiu.
O ex-comandante da Marinha teve um gesto inédito ao não participar da posse de um presidente ao se ausentar da cerimônia de transmissão de faixa a Lula. Em 2023, após as eleições presidenciais, Garnier também rompeu uma tradição e se recusou a participar da cerimônia de passagem do comando para o sucessor, Márcio Sampaio Olsen.
Foi o primeiro em toda história da gloriosa Marinha de Tamandaré, à qual disse ter a honra de pertencer, ao longo de 52 anos, a adotar tal postura, segundo ele, por uma mera coincidência com compromissos assumidos anteriores, ao tentar convencer a Corte de que seu gesto não teve qualquer conotação política.
Questionado sobre o desfile de carros blindados da Marinha nas imediações do Palácio do Planalto, em agosto de 2021, durante a análise da PEC do voto impresso no Congresso Nacional, Garnier afirmou que o evento já estava previsto antes de a Câmara dos Deputados marcar a votação e que foi também uma “coincidência”.
Pelo depoimento, a postura do almirante, ao menos durante essa fase turbulenta em que esteve à frente da Marinha no governo Bolsonaro, é marcada por coincidências.
Após Almir Garnier, estão previstos os depoimentos, nesta ordem, de Anderson Torres, ex-ministro da Justiça no governo Bolsonaro; Augusto Heleno, ex-ministro do Gabinete de Segurança Institucional (GSI); Jair Bolsonaro; Paulo Sérgio Nogueira, ex-ministro da Defesa; e Walter Braga Netto, ex-ministro e candidato a vice na chapa para a reeleição do ex-presidente.
Concluída a fase dos interrogatórios, a defesa e a acusação poderão pedir diligências complementares. Depois será aberto um prazo de 15 dias para que as partes apresentem um resumo com as alegações finais favoráveis ou contrárias aos réus. Por fim, os ministros votarão pela condenação, com a fixação de penas, ou pelo arquivamento do caso. Diante das duas decisões, será possível apresentar recursos dentro do próprio STF.