O Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) concedeu à multinacional norte-americana ExxonMobil autorização para iniciar a exploração de petróleo no litoral brasileiro, entre Alagoas e Sergipe, próximo ao estuário do rio São Francisco. O empreendimento é alvo de críticas de pesquisadores e moradores, por oferecer risco de contaminação a 52 Unidades de Conservação (UCs), afetando a biodiversidade e prejudicando comunidades que tiram seu sustento da natureza.
A área ainda sofre o impacto do enorme vazamento de óleo de um navio petroleiro grego ocorrido entre 2019 e 2019 no litoral brasileiro. Na época, cerca de cinco mil toneladas de petróleo foram retiradas de mais de mil localidades em 11 estados – nove deles no Nordeste. A substância tóxica contaminou 3 mil quilômetros da costa, sendo considerado o maior crime ambiental em extensão da história do País. Entre as Áreas de proteção Ambiental (APA), a Costa dos Corais é uma das que mais preocupam na eventualidade de um vazamento. Essa APA integra uma das sete áreas essenciais para a conservação dos recifes de coral no Brasil.
Antes mesmo de receber o aval do Ibama, a petrolífera já vinha realizando testes para contenção de vazamentos com os moradores. Segundo os relatos, as atividades foram realizadas pelo menos nos municípios alagoanos de Piaçabuçu, Coruripe, Jequiá da Praia e Barra de São Miguel e no povoado de Saramém, do lado sergipano.
Em cada um desses lugares, o treinamento durou cerca de dez dias e, em muitos casos, foram divulgados pelas próprias prefeituras. Para Divaneide Sousa, coordenadora da Articulação do São Francisco, as prefeituras estão sendo coniventes por interesse. “Estão de olho nos royalties do petróleo”, denuncia.
Caso ocorra um vazamento de petróleo na operação da ExxonMobil, os próprios estudos da empresa mostram que Piaçabuçu seria um dos primeiros locais atingidos. Lá está a praia do Pontal do Peba, última faixa de areia no ponto de deságue do rio para o mar. O município que tem pouco mais de 19 mil habitantes já foi um grande produtor de arroz. O aumento da salinidade da água causada pela depauperação do rio, acabou com a produção, restando a pesca – sobretudo de crustáceos, pois na área está o maior banco de camarões do Nordeste, quarto do Brasil – e o turismo. Esses recursos também vêm minguando desde o desastre do óleo e o advento da pandemia.
A APA Piaçabuçu, que protege espécies ameaçadas, como espécies de tartarugas marinhas, funciona com pouca estrutura. A unidade conta apenas com dois servidores e uma viatura. Antônio Amorim, presidente da colônia, que tem quase 4 mil associados, conta que no final do ano passado, representantes da ExxonMobil estiveram no local. “Pediram indicação de pescadores para os treinamentos”. Sessenta barcos foram selecionados – os maiores, de seis cilindros, receberam R$ 2,5 mil por diária; os de quatro cilindros, R$ 2 mil. “Ajudou quem estava parado, dependendo do Bolsa Família”, diz Amorim. Ele evitou críticas, mas admitiu que um novo acidente, numa região que já sofreu com o petróleo, “é uma grande preocupação”.
Para Jesiel Martins, fundador da ONG Olha o Chico, o dinheiro dos treinamentos foi uma forma de “silenciar as pessoas”. A organização fazia parte do conselho gestor da APA de Piaçabuçu, desmantelado durante o governo Bolsonaro, que dissolveu várias estruturas de participação da sociedade na gestão estatal.
A ONG encabeçou uma carta pública assinada com mais de cem organizações contra instalação da multinacional na foz do São Francisco. O texto apontou fragilidades nos estudos de impacto ambiental da ExxonMobil. O documento exigiu também que as comunidades impactadas fossem consultadas em audiências públicas presenciais, não realizadas por causa da Covid-19.
O advento da pandemia foi oportuno para a companhia, que assim conseguiu evitar que os moradores fossem ouvidos. Um arranjo até foi improvisado para as audiências: um convite para uma participação digital, o que não faz sentido. No local água encanada não é uma constante nas casas, muito menos internet. “Chamaram para ver a transmissão no telão, em Aracaju (SE), quatro horas de carro daqui. Só pra ver, não nos ouvir”, reclama Domenicio dos Santos, uma das lideranças quilombolas.
“A empresa chega assediando, oferecendo dinheiro, treinamentos. Não participamos porque entendemos os riscos”, comenta Enéas Rosa, pescador e líder da comunidade quilombola de Resina.
Os advogados ambientalistas da Sociedade Canoa de Tolda até tentaram impedir a audiência virtual por meio uma Ação Civil Pública. Eles argumentaram que a programação, uma etapa fundamental para o licenciamento ambiental, não cumpriu requisitos legais, como a consulta prévia das comunidades tradicionais prevista na Convenção 169 da OIT.
O MPF, tanto em Sergipe quanto em Alagoas, também tentou suspender a audiência no intuito de garantir a escuta adequada e presencial das populações, observando medidas sanitárias, mas a Justiça não acatou o pedido. No dia 14 de setembro de 2021, o Ibama conduziu uma Audiência Pública Virtual, transmitida pelo YouTube, com representantes da ExxonMobil e da WittO’brien’s. Essa última foi a empresa norte-americana responsável pelo testes com os pescadores.
Segundo a advogada Jane Teresa, há pelo menos 116 comunidades quilombolas na zona de influência do empreendimento. Ela conta que “o EIA [Estudo de Impacto Ambiental] foi entregue pela ExxonMobil em cima da hora para consulta, ferindo o princípio da publicidade”. Para o advogado Jerônimo Basílio, deveria ter sido realizada mais de uma audiência on-line, “como prevê a Resolução do Conama 9/87, dada a complexidade dos impactos, que envolvem pelo menos cinco estados e 76 municípios em sua zona de influência”, destaca.
Na linha de frente em defesa do São Francisco, o fundador da ONG Velho Chico destaca que “um acidente será o fim do rio”. “E o rio é sobrevivência. Não tem mais as aningas [plantas de água doce], os peixes mudaram. A gente vive na beira do São Francisco sacrificado, dependendo de caminhões-pipa porque a água está salobra.”
O trajeto entre Piaçabuçu (AL) e Brejo Grande (SE) é o próprio rio São Francisco. A balsa leva aproximadamente uma hora para atingir as margens do município sergipano, ponto mais próximo da costa do local de perfuração, apenas 50 quilômetros. O óleo poderia chegar lá em aproximadamente dois dias, numa situação de escape grave, segundo as estimativas da ExxonMobil.
Nos municípios de Brejo Grande, Santa Cruz (onde está a comunidade de Brejão dos Negros), Resina e Carapitanga, há 480 famílias, sobretudo de pescadores, vivendo sob tensão com a presença de forasteiros que exercem constante ameaça. Embora seja certificado pela Fundação Palmares, o território ainda é ocupado por não quilombolas. São donos de grandes fazendas de carcinicultura, que é a criação do camarão. “Somos impedidos de plantar e de pescar nas nossas terras. Colocam seguranças armados, câmeras para nos vigiar”, explica Maria José Bezerra, presidente da Associação Quilombola, conhecida como Deca.
As tradições culturais também tendem a ser afetadas pela presença da petrolífera no curso do Velho Chico. Maria Isaltina Silva, liderança quilombola da comunidade de Brejão dos Negros, explica que seus antepassados habitam este lugar há pelo menos 300 anos, pescando siri, peixes e caranguejos, onde manifestam suas tradições. “Falam de libertação, mas não fomos libertos. Nos perseguem de outras formas”, pranteia. “Se queremos preservar o mangue, chegam para destruir. Nosso emprego é o rio e o mangue. A gente não sabe fazer outra coisa”, afirma.
As janelas dos casarões da histórica Penedo, no sul de Alagoas, têm vista para as margens do Baixo São Francisco. Na beira do rio, a estátua de Dom Pedro II lembra a visita do imperador ao primeiro povoado do estado. Antônio Gomes dos Santos, o Toinho Pescador de Penedo, faz parte da memória viva do lugar. Toinho descreve o cenário atual. “Hoje o rio tá pobrezinho. Antigamente ficava azul de tanto peixe”, recorda. Aos 89 anos, na pesca desde os 11, o pescador é uma das principais lideranças populares em defesa do rio. Na década de 1960, em plena ditadura militar, ajudou a fundar o Conselho da Pastoral dos Pescadores do estado, cujo papel na resistência política e na mobilização foi fundamental na conquista de direitos dos pescadores artesanais, como os previdenciários, garantidos na Constituição de 1988. Nessa época, ele chegou a ser até ameaçado de prisão. O histórico de desastres da ExxonMobil inclui um dos maiores vazamentos da história, em 1989, quando o petroleiro Exxon Valdez despejou 42 mil toneladas de petróleo no Alasca, episódio conhecido como “maré negra”. A Licença de Operação (LO) – última etapa do processo de licenciamento – foi concedida na quarta-feira (16) e tem validade de cinco anos. Na prática, significa que o Ibama atestou o cumprimento de medidas de