Para diretora do Sindicato dos Profissionais em Educação no Ensino Municipal de São Paulo, Célia Cordeiro, Bolsonaro fere o ECA e desrespeita decisão do STF ao destinar verba para compra de apoio no Congresso
“O corte de 97,5% das verbas para a construção de novas creches é o reflexo da política de transferência de recursos públicos pelo governo para atender a interesses de parlamentares em troca de apoio”, disse Célia Cordeiro, diretora do Sinpeem (Sindicato dos Profissionais em Educação no Ensino Municipal de São Paulo).
“Privatizar verba pública, canalizada pelo Orçamento Secreto. Esses 100 milhões de reais fazem parte dessa moeda de troca com o Congresso majoritariamente de direita fisiológica”, denuncia Célia, em entrevista ao HP.
Na proposta orçamentária para o ano de 2023 enviada ao Congresso, o governo planeja uma tesourada de R$ 2,5 milhões, contra os R$ 100 milhões de 2022 e os R$ 220 milhões em 2021, das verbas para erguer novas escolas para crianças de 0 a 3 anos de idade.
Ignorando o fato de que houve queda no número de crianças matriculadas em creches públicas, a proposta orçamentária de 2023 prevê apenas R$ 2,5 milhões para “implantação de escolas para educação infantil”.
Essa ação é a rubrica do orçamento federal destinada para a construção de novas unidades educacionais para a faixa etária. De acordo com o projeto enviado pelo próprio governo, o dinheiro reservado só é suficiente para construir cinco novas creches.
O orçamento proposto pelo governo de Jair Bolsonaro para este ano previa R$ 100 milhões para construção de creches, o que já significou um corte de verbas voltadas para esse fim. Em 2021, eram R$ 220 milhões. Portanto, trata-se de um corte efetivo de recursos (e não um bloqueio, como os que foram aplicados neste ano), que podem ser revertidos pelo Congresso.
Apesar de a educação infantil ser atribuição dos municípios, a União tem a obrigação de apoiar financeiramente as prefeituras, sobretudo as mais pobres. A transferência dos recursos se dá via Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), que tem projetos para apoiar os municípios para construção de creches e pré-escolas, com suporte técnico e financeiro.
Além das creches, as prefeituras atendem, na educação infantil, alunos de 4 e 5 anos. Neste segmento, há 41.586 crianças matriculadas em unidades municipais. Não há fila de espera para estas turmas.
De acordo com a dirigente do Sinpeem, além das trocas espúrias entre o governo e os parlamentares do Centrão no Congresso, a decisão de cortar verbas da educação infantil, representa também a intenção de Jair Bolsonaro de afrontar o Supremo Tribunal Federal.
“Lembrando que ainda serve pra cutucar o STF, alvo do bolsonarismo, que no dia 22 do mês passado decidiu que é dever do Estado garantir vagas em creches e na pré-escola para crianças de 0 até 5 anos de idade, por unanimidade, num julgamento de um Recurso Extraordinário”, avalia.
No mês passado, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que é dever do Estado a garantia desse direito para essa faixa etária, que também está assegurado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), conforme explica o advogado especialista em direitos humanos e integrante do Instituto Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, Ariel de Castro Alves.
“O Estatuto da Primeira Infância também reforçou o direito das crianças de acesso às creches e ao ensino infantil. Esse também é direito dos pais e mães que precisam trabalhar. Cabe ao Poder Público garantir que as crianças fiquem em locais adequados de educação e socialização. A infância é o momento crucial de desenvolvimento das crianças”.
5 MILHÕES DE CRIANÇAS NA FILA
Um estudo da Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal (FMCSV), mostra que entre famílias mais pobres, por exemplo, apenas 24,4% das crianças de até 3 anos de idade frequentam creches no país, ou seja, uma a cada quatro.
Assim, das 11,8 milhões de crianças brasileiras com até 3 anos de idade, quase 5 milhões precisam de atendimento em creche. Integram o grupo as crianças em situação de pobreza, que, até 2019, representavam 17,3% do total de crianças no Brasil; as de famílias monoparentais, criadas apenas pela mãe, pelo pai ou outro responsável (3,5%); e as crianças em que pais e cuidadores, principais, precisam contar com as creches para poder trabalhar (21,7%).
Do grupo de crianças que mais necessitam do atendimento nas creches, 75,5%, as crianças mais carentes, estão fora delas. Entre aquelas de famílias monoparentais, 55% não estão matriculadas e, no grupo de mães ou cuidadores economicamente ativos, 18,3% estão fora da escola.
“Considerando o alarmante aumento da pobreza no Brasil, que tem afetado principalmente os mais vulneráveis, entre estes, as crianças, reduzir os investimentos na primeira infância, significa asfixiar uma geração de meninos e meninas que encontram nos espaços escolares a possibilidade de viverem dignamente as suas infâncias”, afirma Cecília Aquino.
Cecília, que falou à Hora do Povo, é diretora de uma EMEI I (Escola Municipal de Educação Infantil) na zona Leste de São Paulo e também integra a diretoria do Sedin (Sindicato dos Educadores da Infância) no município de São Paulo.
O Brasil deve, por lei, atender a pelo menos 50% das crianças de até 3 anos de idade em creches até 2024. A meta está prevista no Plano Nacional de Educação (PNE), Lei 13.005/2014. Segundo os últimos dados disponíveis, de 2019, 37% das crianças nesta faixa etária estavam matriculadas.
O presidente da União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime), Luiz Miguel Garcia, diz que para essa meta ser cumprida, será necessário um engajamento nacional e que seja retomada “a política de construção de unidades escolares e que haja incentivo para que estados e municípios possam, em parceria, organizar e gerar essas novas vagas”.
O Plano Nacional de Educação (PNE) estabeleceu a meta de ter, até 2024, metade das crianças de até 3 anos matriculadas. A Confederação Nacional dos Municípios (CNM) estima que, para atingir esse objetivo, seria necessária a abertura de 2,6 milhões de novas vagas, totalizando um custo anual de R$ 37,4 bilhões.
Com base no último levantamento do PNE, divulgado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) em 2020, para cumprir a meta, ainda é necessário incluir cerca de 1,5 milhão de crianças em creches e que grande parte delas é oriunda “de famílias de baixa renda, onde se concentra o maior contingente de crianças não atendidas”.
Cálculo com dados de 2020 mostra, porém, que nem um terço (30%) das crianças dessa faixa etária estava em creches, públicas e privadas, segundo a Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal.
Mesmo com dados como esses dados, o país tem 422 obras de creches paradas ou inacabadas, de acordo com dados do FNDE.
PROMESSA NÃO CUMPRIDA
Em 2019, por meio do Proinfância, o MEC prometeu entregar mais de 4 mil creches até o fim de 2022. Mas o governo só entregou cerca de 800 unidades em todo o Brasil, desde 2019. A falta de recursos para construção de novas creches paralisa obras pelo país.
Na cidade de Raposos, em Minas Gerais, a unidade que estava sendo construída está com as obras paralisadas desde 2020 por falta de recursos. Segundo a prefeitura, a empresa que ganhou a licitação desistiu de continuar com a obra, já que os valores previstos não são mais suficientes para manter os serviços.
Com onze salas e espaço para 400 crianças, a creche seria a maior da cidade. Hoje Raposo só tem uma creche da prefeitura funcionando. A outra foi destruída pelas enchentes do início do ano.
“O dinheiro não vem. Eu estou só com uma creche e um monte de crianças precisando de vagas. A cidade é pequena, vive só com dinheiro do FPM (Fundo de Participação dos Municípios) e do ICMS (tributo estadual repartido com as cidades). É preciso ter dinheiro do governo federal, afirma o prefeito Sergio Silveira Soares.
Um levantamento feito por uma fundação especializada em primeira infância mostra que as capitais com maior necessidade de vagas são Salvador (63,3%), seguida por Maceió (59%) e São Paulo (58,3%).
Em Campo Grande (MS), doze creches estão em construção, mas segundo a prefeitura, quando entregues, as unidades resolvem apenas 15% da fila de espera.
Já no Estado de São Paulo, um levantamento da TV Globo mostra que ao menos 11 cidades da Grande São Paulo têm fila de espera em creches. Apenas em Osasco são 3.500 crianças à espera de uma vaga.
Para Célia Cordeiro, a política do atual governo, ditada pelo mercado, é responsável por não atender aos interesses da sociedade, além de destruir conquistas.
“A pauta do Bolsonaro, na economia, é ditada pelo mercado. Pauta liberal na economia, conservadora nos costumes. O neoliberalismo desse setor da direita ‘agro-tóxica’ é atacar o serviço público, destruir todo o resquício de Estado do Bem-estar social iniciado com o PT no poder”.
Já Aquino diz que “o corte nos recursos destinados à Educação Infantil afeta à sociedade de forma geral, prejudicando o desenvolvimento de uma infância saudável, pois é nos CEIs que elas (crianças) exploram o mundo e se desenvolvem”. Prejudica também às famílias, “principalmente as mulheres, que não tendo vagas pra deixar os seus filhos, ficam à margem do mercado de trabalho”, diz.
“O não investimento na primeira infância, etapa mais importante na vida de uma pessoa, expressa um projeto de governo que não valoriza a Educação e o seu povo”, finaliza a educadora.