“Posso ser assaltado”, alegou Guedes. “Não posso chegar aqui e falar: ‘Brasil, olha tudo que eu tenho. Não pode ser assim”, disse o ministro para deputados em audiência de duas comissões da Câmara
O chefe da equipe econômica do governo Bolsonaro, Paulo Guedes, participou, nesta terça-feira (23), de audiência na Câmara dos Deputados para dar explicações sobre conflito de interesses diante do caso, que foi revelado pelo Pandora Papers, ICIJ (Investigação do Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos), de sua empresa de fachada nas Ilhas Virgens, com depósitos de, no mínimo, US$ 10 milhões.
Guedes foi ouvido pelas comissões de Trabalho; e de Fiscalização Financeira e Controle da Casa.
Na ocasião, porém, questionado pelos deputados, Guedes se recusou a descrever os lucros auferidos com os depósitos ocultos. “Você pode ser perseguido por um vizinho, assaltado por um vizinho. Não posso chegar aqui e falar: ‘Brasil, olha tudo que eu tenho. Não pode ser assim”, alegou o ministro.
Nenhum vizinho, certamente, irá assaltar a empresa de fachada de Guedes no bordel fiscal das Ilhas Virgens. Além disso, ele é ministro de Estado – e da Economia. O país, aliás, não sabia que ele morava entre assaltantes, com uma vizinhança tão suspeita ou perigosa…
Ao inverso: o suspeito de roubo era Guedes – e não qualquer vizinho seu. Pois é evidente que tomar decisões que o beneficiam particularmente, mantendo uma fortuna em um bordel fiscal, é roubo.
Aliás, roubo duplo, pois sonegação já é roubo. E isso ele confessou, tanto em relação à lei dos EUA quanto à lei do Brasil. Nas suas palavras:
“… se comprar ações de empresas, se tiver uma conta em nome da pessoa física, se você falecer, 46%, 47% são expropriados pelo governo americano. Então, o melhor é usar offshore, que está fora do continente”.
Além disso, o dinheiro depositado na conta dessa empresa de fachada – a Dreadnoughts – estaria livre dos 8% do imposto de herança, cobrados no Brasil (embora não seja nosso assunto, é significativo que os EUA cobrem quase 50% de imposto de herança, no caso de pessoas físicas, e o Brasil apenas 8%).
Porém, essa hipótese de falecimento não foi o móvel de Guedes, nem sua preocupação com a família. O dinheiro nas Ilhas Virgens não está sujeito a qualquer imposto, seja de transmissão de herança ou de renda. É, portanto, sonegação, ainda que Guedes tenha querido escapar repetindo várias vezes que offshore (empresa de fachada no exterior) é algo “legal, completamente legal”.
Realmente, é uma sonegação que a lei, em real aberração, não proíbe e não pune.
Mas é sonegação. E, como disse o governador Flávio Dino, uma imoralidade – quanto mais em um ministro de Estado que toma as decisões que beneficiam a si próprio na valorização do dinheiro escondido no exterior.
“PRIVACIDADE”
Tanto isso é verdade que o próprio Guedes disse, em seu depoimento aos parlamentares: “a offshore é como uma ferramenta. É uma faca. Você pode usar para o mal, para matar alguém, ou pode usar para o bem, para descascar uma laranja”.
Portanto, devemos concluir que Guedes estava descascando laranjas no covil de escroques das Ilhas Virgens…
Mas ele recusou-se a dizer o que tem depositado na empresa de fachada: “Se parlamentares me pedirem, a resposta é não. Agora, se me disserem ‘uma instância pertinente pediu’, será entregue, como sempre foi. Os números estão todos disponíveis. Mas os senhores precisam entender que existe uma coisa chamada privacidade”, disse.
Guedes tentou se passar por coitadinho e vítima para enrolar os parlamentares e disse que fez “sacrifício” para assumir o cargo no governo pelo bem do Brasil. “Desinvesti com um enorme prejuízo. Perdi mais do que com o valor dessa offshore quando eu abri mão de 10 anos de trabalho. Tudo o que a minha mão alcança, tudo que estou fazendo há nove anos, vendo e abro mão de investimento de capital. Não vou ter ganho. É um sacrifício pelo país”, afirmou.
O deputado Jorge Solla (PT-BA) rebateu: “O sr. diz que aceitou ser ministro para fazer um Brasil melhor. Mas o real desvalorizou, o desemprego é recorde, a queda de poder de compra é enorme, temos mais de 13 milhões de desempregados. Melhor pra quem, ministro Paulo Guedes?”.
O deputado Paulo Ramos (PDT-RJ), um dos autores do requerimento de convocação do ministro, questionou o ministro se ele tem sócios em órgãos ou empresas públicas que possam ser beneficiados por suas decisões.
“O ministro Guedes ainda não respondeu se encaminharia à Comissão de Trabalho cópia da declaração que fez à Comissão de Ética Pública antes de assumir o cargo. O que o ministro ainda tem a esconder?”, questionou Paulo Ramos.
O deputado Kim Kataguiri (DEM-SP), outro autor do requerimento de convocação, também observou que Paulo Guedes “não respondeu sobre a gestão da sua filha e da sua mulher na offshore, que continuaram sócias na offshore, mesmo depois que ele saiu”. “E não respondeu, aliás, disse que não vai publicizar os extratos da sua movimentação na offshore”.
“Se não vai por bem, vai por mal. Vamos aprovar aqui na Câmara dos Deputados [um requerimento] para que ele seja obrigado a compartilhar esse conteúdo”, afirmou Kataguiri em vídeo após a audiência.
O deputado questionou o fato de Paulo Guedes ter sido contrário à tributação de offshores, como a do ministro.
“Tirar a tributação de offshore não configura o uso da máquina pública para aumentar os próprios investimentos?”, perguntou.
CRÍTICAS
Depois da fala cínica, o ministro recebeu muitas críticas. “ATENÇÃO!!! Enquanto posava de coitadinho em audiência na Câmara, Paulo Guedes ficava mais rico. O dólar está sendo negociado a R$ 5,66! Já sabe, né? Prepare o bolso, porque vem aumento de combustíveis e alimentos”, tuitou o deputado Orlando Silva (PCdoB-SP).
Também pelo Twitter, a deputada Fernanda Melchionna (PSol-RS) criticou o ministro: “Paulo Guedes decide sobre os rumos da política econômica no país e faz parte do Conselho Monetário Nacional. E vem dizer que o lucro de R$ 1,24 milhão em 4 dias com sua offshore é negócio de família? Mais que conflito de interesse, é uma operação indecente, ilegal e imoral!”.
“Temos 19 milhões de famintos, 14 milhões de desempregados e um ministro da Economia com empresa em paraíso fiscal p/ sonegar imposto e lucrar com a alta do dólar. Só quem se dá bem no desgoverno Bolsonaro é político e empresário corrupto”, escreveu no Twitter o líder da Minoria, deputado Marcelo Freixo (PSB-RJ).
O governador do Maranhão, Flávio Dino (PSB), também criticou o ministro por meio do Twitter: “Infelizmente é legal, mas é um instrumento absolutamente imoral. E problema principal é o óbvio conflito de interesses. ‘Ninguém pode servir a dois senhores pois…se dedicará a um e desprezará o outro’ (Mateus 6:24)”, escreveu.