Bolsonaro, mesmo depois da farsa de Alter do Chão ter caído – somente não escrevemos “desabado” porque somos gente muito moderada – insistiu nela:
“A casa caiu. O que eles fizeram? O que é mais fácil? Tacar fogo no mato. Tira foto, filma, manda para a ONG, a ONG divulga aquilo, faz uma campanha contra o Brasil, entra em contato com o Leonardo DiCaprio e então o Leonardo DiCaprio, doa 500 mil dólares para essa ONG. Uma parte foi para o pessoal que estava tacando fogo. Ô, Dicaprio, você está colaborando para a queimada na Amazônia, pô. Assim não dá. Me acusaram de ser conivente com as queimadas. Eu falei que suspeitava de ONGs. Pronto. A imprensa, três, quatro dias, comendo meu fígado.”
Leonardo DiCaprio já disse o que pensava dessa crapulice (v. HP 01/12/2019, DiCaprio desmascara Bolsonaro sobre quem “tacou fogo” na Amazônia).
Mas transcrevemos o que disse Bolsonaro, exatamente porque é a marca do crápula. E é muito grave ter um crápula na Presidência da República. Não se trata, somente, de um reacionário. Existem reacionários que não são crápulas. Mas Bolsonaro parece ser reacionário apenas porque é um crápula.
Quando Bolsonaro disse o que está acima, ele sabia que os quatro presos de Alter do Chão já estavam soltos – por absoluta falta de provas, ou mesmo indícios, contra eles, como notou o mesmo juiz que decretou sua prisão, dois dias antes, “para garantia da ordem pública”: “… a autoridade policial não apresentou subsídios ou fatos novos que tornasse imprescindível a manutenção da custódia” (cf. Juiz Alexandre Rizzi, 1ª Vara Criminal da Comarca de Santarém (PA), Despacho, 28/11/2019, p. 2).
Porém, pior ainda: Bolsonaro sabia perfeitamente quem ateara fogo na mata, em Alter do Chão, até porque fora ele mesmo quem os açulara – inclusive ameaçando o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) e demitindo seu diretor, um dos mais conceituados cientistas brasileiros, Ricardo Galvão, quando a instituição detectou o aumento dos incêndios na Amazônia (v. HP 02/08/2019, Bolsonaro ameaça Inpe após divulgação de aumento no desmatamento da Amazônia e Diretor do Inpe é demitido por detectar desmatamento incentivado por Bolsonaro).
Mais: foram os seus sequazes que fizeram o sinistro “Dia do Fogo”, no Pará, ateando incêndios na mata ao redor da BR-163 (v. HP 16/08/2019, Amparados por Bolsonaro, desmatadores fazem o “Dia do fogo” no Pará; HP 26/08/2019, MPF alertou governo Bolsonaro três dias antes do “Dia do Fogo”; e HP 27/08/2019, “Dia do Fogo” – Grupo pagou motoqueiros para incendiar áreas florestais).
E ainda existe mais: Bolsonaro sabia que a investigação federal em Alter do Chão apontara para os seus comparsas – cujo capo, o miliciano rural Luiz Antônio Nabhan Garcia, ele nomeou para a Secretaria de Assuntos Fundiários – como os criminosos dos incêndios:
“Desde setembro, já estava em andamento na Polícia Federal um inquérito com o mesmo tema. Na investigação federal, nenhum elemento apontava para a participação de brigadistas ou organizações da sociedade civil. Ao contrário, a linha das investigações federais, que vem sendo seguida desde 2015, aponta para o assédio de grileiros, ocupação desordenada e para a especulação imobiliária como causas da degradação ambiental em Alter” (cf. MPF, Nota, 27/11/2019, grifo nosso).
O prefeito de Santarém – Alter do Chão é um distrito deste município – em mensagem de voz ao governador do Pará, Helder Barbalho, enviada em setembro, afirmou a mesma coisa: “isso é gente tocando fogo para depois querer fazer loteamento, vender terreno”.
Alter do Chão é um balneário, aquilo que os grã-finos americanizados chamam de “resort”. Portanto, especulação – e especuladores – é o que não falta por lá.
A íntegra da mensagem do prefeito Nélio Aguiar (DEM) ao governador Helder Barbalho (MDB) é a seguinte:
“Governador, bom dia. A Semma [Secretária de Meio Ambiente] municipal já tá envolvida, mas essa área é uma área de invasores… Tem policial por trás, o povo lá anda armado, o bombeiro só tá com a brigada, o bombeiro não tá indo lá, já falei pro coronel Tito que precisa ir o bombeiro e combater o fogo, logo, imediatamente, tá muito seco, muito sol e a Polícia Militar, a companhia ambiental, tem que ir junto, armada, para identificar esses criminosos, isso é gente tocando fogo para depois querer fazer loteamento, vender terreno, prender uns líderes desses, esses criminosos aí e acabar com essa situação, mas a gente precisa de apoio do Corpo de Bombeiros”.
A mensagem foi divulgada pelo site Repórter Brasil e confirmada pelo prefeito (aqui, o áudio da mensagem do prefeito de Santarém).
PROVA AO CONTRÁRIO
Apesar disso tudo ser evidente para a maioria das pessoas em Alter do Chão e Santarém, no dia 26 um delegado da polícia civil pediu ao juiz Alexandre Rizzi a prisão preventiva de João Victor Pereira Romano, Daniel Gutierrez Govino, Marcelo Aron Cwerner (diretor, vice e tesoureiro da ONG Aquífero Alter do Chão) e Gustavo de Almeira Fernandes (diretor de logística da ONG Saúde e Alegria).
Todos se dedicavam a apagar incêndios na mata amazônica. São membros da Brigada de Incêndio Florestal de Alter do Chão, que atua, com os bombeiros, no combate ao fogo na floresta.
Entretanto, a acusação do delegado foi a de que eles ateavam incêndios para obter dinheiro no exterior; em suma, segundo disse a polícia civil ao juiz, eles apagavam os incêndios que eles mesmos ateavam.
Presos, os brigadistas tiveram a cabeça raspada, em um indecoroso ritual de humilhação.
A prova apresentada pelo delegado, algumas interceptações telefônicas, provava o contrário, provava “que os brigadistas não agiram senão com o intuito de conter o incêndio” (v. HP 28/11/2019, Marina critica prisão de brigadistas que combateram incêndio no Pará).
Porém, por que cargas d’água pessoas que, sabidamente, haviam ajudado – e continuavam a ajudar – a conter os incêndios em Alto do Chão estavam sendo investigadas, inclusive tendo seus telefones grampeados?
Por que um delegado da polícia civil resolveu atropelar uma investigação da Polícia Federal, apontando, como criminosos, gente que nem era suspeita?
A resposta mais óbvia é que a PF apontava como criminosos os grileiros – daí a tentativa de apontar outros como culpados. A investigação federal chegou ao grileiro Silas da Silva Soares, que está foragido.
Mas de onde vem essa ideia (?) de que as queimadas ou incêndios, na Amazônia, são coisa das ONGs que lá atuam?
Depois de seis meses negando que o fogo estava aumentando na Amazônia, encurralado por manifestações em todo o país, em agosto Bolsonaro disse o seguinte:
“O crime existe e nós temos que fazer o possível para que não aumente, mas nós tiramos dinheiro de ONGs, repasses de fora, 40% ia para ONGs, não tem mais. De modo que esse pessoal está sentindo a falta de dinheiro. Pode estar havendo, não estou afirmando, a ação criminosa desses ‘ongueiros’ para chamar a atenção contra minha pessoa contra o governo do Brasil. Vamos fazer o possível e o impossível para conter esse incêndio criminoso, cada árvore queimada eu sinto aqui em mim o que está acontecendo.”
É óbvio de onde surgiu a prisão e acusação contra os membros da Brigada de Incêndio Florestal de Alter do Chão. Que policiais desvirtuados estivessem, em Alter do Chão, envolvidos na grilagem – segundo disse o prefeito ao governador – apenas confirma qual é o ambiente em que viceja o bolsonarismo.
Portanto, o governador agiu bem em tirar o inquérito da Polícia Civil de Santarém e remetê-lo para o delegado Waldir Freire, diretor da Delegacia Especializada em Meio Ambiente. Como disse Barbalho, “ninguém está acima da lei, mas também ninguém pode ser condenado antes de se esclarecer os fatos”.
Bolsonaro, no entanto, continua repetindo a mesma coisa, as mesmas mentiras, mesmo agora, que elas foram desmontadas e são evidentes.
A verdade – e, portanto, o caráter – não importa, porque nem existe, para Bolsonaro.
Mas, não vamos qualificar esse elemento mais do que já fizemos acima.
Um sujeito que estimula os incêndios – inclusive reprimindo a fiscalização, homiziando grileiros, milicianos rurais, em seu governo e demitindo um cientista do Inpe porque a instituição detectou o aumento das queimadas na Amazônia – e, depois disso, acusa ONGS por aquilo que fez, bate no peito e diz “cada árvore queimada eu sinto aqui em mim”, já encontrou sua própria qualificação.
Não é a primeira vez na história que um incendiário acusa outros pelos incêndios que provocou.
Nunca deu certo.
C.L.