No formato debate, o Meia Noite em Pequim, da TV Grabois, se dedica a examinar a polêmica sobre os direitos trabalhistas na China – ou a falta deles, como pretendem tanto a direita quanto a esquerda acadêmica, com o pesquisador e escritor Elias Jabbour trazendo a convidada Melissa Cambuhy, que apresenta como “talvez a pessoa que mais entenda sobre isso hoje no Brasil”, e é doutoranda em Relações Internacionais na UERJ e coordenadora do grupo de trabalho Diálogos Brasil-China do Instituto Lula.
Como ‘esquenta’, Jabbour registrou que há 40 anos a mão de obra barata foi um fator fundamental ao desenvolvimento da China, mas poucos sabem que isso já não acontece mais e o crescimento econômico agora é puxado pelos salários em detrimento do investimento e de outras variáveis.
Por sua vez, Melissa lembrou a impressão terrível causada pelos documentários sobre as fábricas dormitório nos anos 2000, observando ainda que, embora no mercado internacional o custo da mão de obra fosse competitivo e fosse uma vantagem competitiva para a China, esta, por conta da sua autonomia monetária e do controle estatal das principais ferramentas no processo de acumulação, um deles o custo de mão de obra barato, internamente nem mesmo nos piores momentos desse mercado de trabalho permitiu algo que deixasse esse trabalhador na completa miséria.
Jabbour: “Como você compreende o direito do trabalho na China e como evolui ao longo do tempo?”
Melissa: A China vai passar a partir de 1978 com a política de modernização e abertura, de industrialização, que vai focar na costa do pais e isso vai fazer com que haja como sempre acontece nesses processos de desenvolvimento do capitalismo retardatário, um grande processo de fluxo de mão de obra para a costa.
Na china existe uma ferramenta de administração do mercado de trabalho que data de mais de 2 mil anos, que é o hukou ou registro familiar, resgatado na era maoísta, que vincula esse trabalhador ao lugar onde ele nasceu. Então o trabalhador que nasceu no campo tem um registro familiar vinculado ao campo e que lhe concede direito a um pedaço de terra arável. Já os trabalhadores que nascem na cidade têm o registro familiar urbano e acesso aos empregos urbanos.
Quando acontece esse processo de industrialização na costa, há também um fluxo de gente em busca desses salários industriais, que são no geral maiores que os do campo. Porém, por conta do registro familiar, na década de 70, 80 – quando ainda não existia uma lei de hukou, quando não existia uma lei nacional de trabalho embora existissem leis locais trabalhistas -, essas pessoas eram proibidas de ter acesso a contrato de trabalho e de aluguel ou a serviços públicos ao migrarem.
Então essas pessoas vinham para as cidades irregularmente e acabavam com um salário menor que no mercado formal. Uma espécie de informalidade. As fábricas-dormitório são produto dessa questão de não ter acesso a um contrato de aluguel.
Isso vai se modificar muito rapidamente por conta da luta de classes, de um campesinato chinês que vai se transformando num proletariado que não é qualquer proletariado, o Elias já retratou muito bem essa combatividade do povo chinês que derrubou dinastias; vão pressionar por leis do trabalho e reformas do registro familiar.
Mas o que muitas pessoas que estudam esse tema deixam passar é que sem o hukou esse fluxo demográfico sem controle geraria um rebaixamento salarial ainda maior [exército industrial de reserva]. Então você tenta regulamentar o mercado de trabalho e gera uma contradição, mas mesmo assim o custo, apesar de ser alto, é menor do que se não houvesse regulamentação nenhuma ou nenhum controle do fluxo demográfico.
O direito do trabalho, o ponto central da minha hipótese no mestrado, que foi sobre o papel da regulamentação do trabalho no desenvolvimento da China, é que essa regulamentação trabalhista vai conduzir à transição para uma dinâmica de acumulação puxada pela inovação tecnológica e pelo mercado consumidor.
Então esse aumento da seguridade social, esse aumento do direito do trabalho a partir de 2000, quando vai ter o slogan da sociedade harmoniosa, é justamente um ferramental estatal a serviço daquele momento e daquela dinâmica de acumulação. Então o direito do trabalho foi um ferramental que serviu para o aumento de renda e a garantia de direitos.
Então se casam aqui a luta de classes que teve nos anos 90 por conta do ápice dessa contradição capital-trabalho, e não só. Também questões ambientais e várias pautas que surgiram naquele momento, e o governo chinês foi dando resposta.
Daí a centralidade na China da articulação direito do trabalho, institucionalidade e planificação. Porque, se a China consegue garantir os altíssimos salários que consegue garantir hoje, se a China conseguiu sofisticar essas relações de produção, torná-las mais cidadãs, é por conta do alto desenvolvimento das forças produtivas.
Jabbour: Você disse certa vez “se a China fosse mesmo se utilizar da carta da mão obra barata para fazer sua indústria mais competitiva ela geraria um desemprego artificial de 10% ao ano”, coisa que a China não faz, eu queria que você desenvolvesse algo em torno disso. Até porque a estabilidade social é uma premissa fundamental do desenvolvimentismo chinês.
Melissa: A China sustenta um desemprego de 5% há décadas. De novo remonta à questão da segmentação do trabalho, do registro familiar como forma de administração do mercado de trabalho da urbanização. Embora tenha passado pela maior transferência de pessoas do campo para a cidade da história mundial, a China não passou por um processo de favelização, que aconteceu praticamente em todos os países que viveram um processo de industrialização retardatário.
5-5,5% é praticamente pleno emprego. Mesmo na pandemia, a China garantiu a geração de mais de 12 milhões de empregos urbanos e manteve essa taxa de 5%. Claro que se não houvesse a regulação de mercado de mão de obra, a oferta seria gigantesca e rebaixaria o salário. Mas é a planificação do setor produtivo que é a principal ferramenta, ao garantir a criação de 10-12-13 milhões de empregos anualmente. É isso que garante que haja uma oferta de trabalho articulada com o registro familiar, articulada consequentemente com esse fluxo demográfico, que faz com que consiga se manter esse 5% de desemprego.
Se o governo da China desejasse uma política de Estado de superexploração da mão de obra, de escravização dos trabalhadores chineses, seria muito simples, era só não ter esse arcabouço de regulação do mercado de trabalho que passa pela planificação e permitir que todos os camponeses fossem para a cidade sem regulação alguma, sem limite algum. O desemprego tem uma centralidade para o rebaixamento do custo do salário.
Quanto menor é o desemprego, também se aumenta o poder de barganha do trabalhador. Quando o Elias está dizendo que a China é um dos países com mais greves do mundo, isso é muito poderoso, porque estamos falando de um país que tem um alto índice de produção de postos de trabalho e um baixíssimo nível de desemprego que se mantém. Também o hukou se tornou muito flexível nas cidades pequenas e médias, e só é rígido em sete megacidades, por serem cidades que já têm mais de 15 milhões de habitantes.
Elias Jabbour é professor dos Programas de Pós-Graduação em Ciências Econômicas e em Relações Internacionais da UERJ.
Melissa Cambuhy é doutoranda em Relações Internacionais na UERJ e coordenadora do grupo de trabalho Diálogos Brasil-China do Instituto Lula.