O chanceler russo, Sergei Lavrov, declarou que a Ucrânia se consolidou como um “Estado policial e nazista”, que adota medidas extremas como “assassinato de jornalistas e políticos” que discordem de Kiev
ANA LIVIA ESTEVES*
Na quarta-feira (18), durante conferência de imprensa sobre os resultados da política externa russa em 2022, conduzida em Moscou, o chanceler russo, Sergei Lavrov, lamentou que a Ucrânia tenha se consolidado como um “Estado policial e nazista”.
Segundo ele, durante a Revolução Laranja ucraniana de 2004, “as autoridades europeias disseram que a Ucrânia deveria escolher com quem ficar: com o Ocidente ou com a Rússia”.
“Aqueles que escolheram o lado ‘errado’ e esperavam que seus laços históricos, familiares, de tradição e crenças religiosas os mantivesse ligados à Rússia […] foram impiedosamente massacrados, excluídos da vida política e penalizados”, disse Lavrov
O chanceler russo relatou que a repressão inclui “o assassinato de jornalistas e políticos insubmissos e o fechamento de meios de comunicação que não refletiam o ponto de vista ‘oficial'”.
“A criação de um Estado policial e nazista já estava em pleno andamento. Agora, de fato, este processo está completo, e conta com a ‘bênção’ do Ocidente”, lamentou o chanceler russo.
Muito antes de a Ucrânia ganhar as manchetes no Ocidente em 2022, medidas do governo em Kiev já chamavam a atenção por seu caráter restritivo e, muitas vezes, autoritário. Como disse o próprio Lavrov, “o que acontece na Ucrânia não é de hoje, mas está amadurecendo há muito tempo”
MÍDIA CENSURADA
Em 5 fevereiro de 2021, pouco mais de um ano antes do início da operação militar especial russa, o presidente Vladimir Zelensky ordenou o fechamento de três dos principais canais de televisão do país, o 112, o NewsOne e o ZIK. A ordem foi realizada de maneira autocrática, sem embasamento em processo legal ou decisão de tribunal competente.
De acordo com as autoridades em Kiev, a medida era necessária, uma vez que esse canal atenderia à agenda política da Rússia. Esses canais por vezes chamavam o conflito em Donbass de “guerra civil” e defendiam a retomada das relações comerciais entre Kiev e Moscou.
As emissoras eram propriedade do influente político Taras Kozak, filiado ao então segundo maior partido da Ucrânia, o Plataforma de Oposição pela Vida (OPFL, na sigla em inglês). No entanto, críticos apontavam que o político ligado ao presidente russo, Viktor Medvedchuk, teria influência desmedida sobre essas emissoras.
O então porta-voz da União Europeia e conhecido crítico do Kremlin, Josep Borrell, disse à época que, “considerando a escala das campanhas de desinformação que afetam Ucrânia, inclusive vindas do exterior, isso não deveria vir em detrimento da liberdade de imprensa no país”.
No entanto, o fechamento ilegal das emissoras de televisão contou com o apoio do presidente norte-americano, Joe Biden. A decisão de Zelensky foi tomada um dia após a primeira conversa telefônica entre os líderes.
“Apoiamos a decisão da Ucrânia de defender sua soberania e integridade territorial, combatendo a influência flagrante e maligna da Rússia”, disse Courtney Austrian, a então chefe da missão dos EUA na Organização para Segurança e Cooperação na Europa.
As medidas controversas do governo em Kiev já incomodavam a população ucraniana, um ano antes do início da operação militar russa. Eleito com 73% dos votos em 2019, o comediante e presidente Zelensky minguava somente 40% de aprovação popular em fevereiro de 2021, conforme reportou a Al Jazeera.
A mesma pesquisa de opinião, divulgada em fevereiro de 2021, revelou queda no apoio ao partido de Zelensky, Servidores do Povo, e aumento da adesão ao partido Plataforma de Oposição pela Vida (OPFL).
Dentre outras plataformas, o partido de oposição resistia à retirada de monumentos referentes à Segunda Guerra Mundial e era contra as leis que visavam conter o uso da língua russa na Ucrânia.
O líder da OPFL e mentor dos canais de televisão censurados, Viktor Medvedchuk, foi acusado de traição e colocado em prisão domiciliar, em maio de 2021. Recentemente, no dia 11 de janeiro de 2022, Medvedchuk teve sua cidadania ucraniana revogada por Zelensky.
A LISTA NEGRA DO ‘PACIFICADOR’
Expressar visões políticas em desacordo com o regime de Kiev pode ser uma atividade de alto risco. Um grupo de “voluntários anônimos” que se autointitulam “o pacificador” (grupo proibido na Rússia) publicam na Internet uma lista negra daqueles que consideram “traidores da pátria”.
Apesar da identidade dos membros e os métodos do grupo serem desconhecidos, tribunais ucranianos se valeram dessas listas para condenar pessoas em diversos processos judiciais. As listas também são usadas por autoridades ucranianas de fronteira para limitar o acesso de cidadãos ao território do país, conforme reportou o jornal The Times.
Além disso, o site publica as informações pessoais dos cidadãos listados, permitindo que grupos extremistas persigam, agridam e, muitas vezes, matem seus adversários.
Foi exatamente isso o que ocorreu com o político crítico do governo central, Oleg Kalashnikov, assassinado em sua casa no dia 15 de abril de 2015. No dia seguinte, o escritor e jornalista ucraniano Oles Buzina foi assassinado em Kiev pelo grupo neonazista C14 (organização terrorista proibida na Rússia), um dia após seu endereço residencial ser publicado pelo grupo “Pacificador”.
Jornalistas tampouco foram poupados: o “Pacificador” adquiriu e publicou os dados pessoais de mais de quatro mil jornalistas internacionais acreditados por autoridades de Donbass, colocando em risco a integridade física desses profissionais, em maio de 2016.
Na época, a representante para liberdade de imprensa da Organização para a Segurança e Cooperação na Europa, Dunja Mijatovic, expressou profunda preocupação com a prática do grupo.
“Esse acontecimento é muito alarmante e pode colocar a situação dos jornalistas em risco ainda maior”, disse Mijatovic. “Jornalistas reportam sobre questões de interesse público e não devem ser assediados por fazerem seu trabalho”
Apesar dos protestos, o serviço de segurança da Ucrânia apoiou o trabalho do “Pacificador” e declarou que não havia crime na liberação dos dados pessoais dos jornalistas, reportou na ocasião a mídia ucraniana.
Para garantir renome internacional, o grupo ainda inclui líderes e artistas em sua lista negra, como o ex-chanceler alemão Gerhard Schroeder, o guitarrista do Pink Floyd Roger Waters, e o ex-primeiro-ministro italiano, Silvio Berlusconi. O grupo não poupou nem a escritora belarussa laureada com o prêmio Nobel, Svetlana Aleksievich, acusando-a de incitar a divisão interétnica na Ucrânia.
CONIVÊNCIA DAS AUTORIDADES
A conivência das autoridades de Kiev com abusos praticados por grupos extremistas também ficou clara durante os protestos contra a “revolução Euromaidan”, realizados em Odessa, entre 2013 e 2014.
A terceira maior cidade do país, localizada na região sul, foi palco de confrontos violentos entre grupos a favor e contra a “eurorevolução”. Em seu dia mais trágico, 2 de maio de 2014, grupos de extrema direita incendiaram o edifício no qual se abrigavam seus opositores.
Como resultado, cerca de 48 ativistas morreram. Alguns sobreviventes foram linchados pelos extremistas nas ruas, após conseguirem deixar o edifício em chamas.
Na ocasião, a polícia local assistiu inerte aos acontecimentos, conforme reportou a Deutsche Welle. Além disso, os responsáveis pelo o que é considerado um dos maiores incêndios em número de vítimas da história da Ucrânia, ainda não foram encontrados.
De acordo com relatório da Missão de Monitoramento de Direitos Humanos da ONU, publicado em 2 de maio de 2019, “pode-se supor que as autoridades não têm real interesse em levar os responsáveis à Justiça”.
PARTIDOS POLÍTICOS CENSURADOS
A decisão do presidente Vladimir Zelensky de proibir 11 partidos políticos – inclusive o principal partido de oposição do país, o OPFL, em março de 2022 – não surpreende aqueles que acompanham a política interna ucraniana.
Em dezembro de 2015, todos os partidos ucranianos intitulados “comunistas” haviam sido proibidos, em observância às leis de “descomunização” do país.
O Partido Comunista ucraniano havia se recusado a modificar seu slogan e deixar de utilizar símbolos soviéticos em sua plataforma. Nesse contexto, o governo de Kiev entrou com processo judicial contra a agremiação, acusando-a de incitar ao separatismo e à divisão étnica do país, conforme reportou o The Guardian.
Como resultado, o Partido Comunista ucraniano foi banido, barrado de participar de atos públicos e eleições. A publicação acadêmica do partido, Rabotchaya Gazeta, também foi proibida na Ucrânia.
Na época, a medida foi criticada pela Comissão de Viena do Conselho Europeu e pela Anistia Internacional, que classificou o banimento como um “golpe decisivo contra a liberdade de expressão no país”.
“O banimento do Partido Comunista na Ucrânia abre um precedente perigoso. Esse ato faz a Ucrânia andar para trás, e não para frente, em seu caminho rumo ao maior respeito aos direitos humanos”, disse o diretor para Europa e Ásia Central da Anistia Internacional, John Dalhuisen, à época
Ao que tudo indica, o precedente foi de fato aberto. Nesta quarta-feira (18), o eurodeputado espanhol Manu Pineda se dirigiu ao chefe da diplomacia da UE, Josep Borrell, requisitando uma posição do bloco em relação à violação de direitos humanos na Ucrânia.
Segundo o eurodeputado, o Serviço de Segurança da Ucrânia deteve dois cidadãos em Odessa sob a acusação de serem “comunistas” e “agentes russos”. O ocorrido, segundo ele, segue a tendência do país, onde “desapareceram mais de uma centena de apoiadores de visões comunistas” e “dezenas de ativistas” foram presos.
“Considerando a atmosfera de terror e perseguição que prevalece atualmente na Ucrânia – da qual um exemplo típico é o chat criado por autoridades policiais para que sejam feitas denúncias anônimas de ‘traidores e colaboradores’ – organizações de direitos humanos temem que pessoas detidas ou desaparecidas possam ser submetidas à tortura ou até serem vítimas de execuções extrajudiciais”, disse Pineda no documento, ao qual a RT teve acesso.
Nesse contexto, o europarlamentar questiona se Josep Borrell abordará o tema dos direitos humanos e liberdades políticas em futuras reuniões com representantes do governo de Kiev.
Ao que tudo indica, o chanceler russo, Sergei Lavrov, não contaria com isso, uma vez que, segundo ele, “o Ocidente inequivocamente se aliou a esse regime, que imediatamente proclamou seus objetivos antirrussos e sua adesão aos princípios da teoria e prática do nazismo”
Nesta quarta-feira (18), o chanceler russo Sergei Lavrov conduziu conferência de imprensa para debater os principais resultados da diplomacia russa em 2022. O encontro de mais de duas horas contou com a presença de jornalistas russos e internacionais, na sede do Ministério das Relações Exteriores da Rússia, em Moscou.
*Originalmente publicado no Sputnik, do qual a jornalista Ana Livia Esteves é correspondente