“Todos eles, pacientes e familiares, me trazem uma culpa muito grande se questionando o porquê de não terem se vacinado e se a vacina os livraria da internação”, declara a psicóloga Daniela Pacheco, que atua na Santa de Misericórdia de Belo Horizonte. Daniela faz a ponte entre pacientes internados na UTI da Santa Casa para tratamento da Covid-19 e familiares, através de videochamadas.
No Estado, a estimativa é que 80% dos internados após a contaminação, em janeiro, não tinham registro de vacinação. “Agora, eles dão outro significado para a vacina. Toda a confusão que a política fez na cabeça dessas pessoas as motivou a ir para um lado ou outro da história. E agora, internadas, estão na posição do doente que precisa do recurso da ciência”, observa a psicóloga.
Já no Hospital Ronaldo Gazolla, localizado no Acari, Zona Norte do Rio de Janeiro, quase todos os ocupantes de leitos na instituição são por conta da Covid 19, informa Roberto Rangel, diretor médico da unidade. “São aproximadamente 240 pacientes, e a velocidade de contágio parece muito maior do que antes. Na próxima semana, ficaremos lotados, ou próximos disso, alerta.
A Secretaria municipal de Saúde informa que apenas 12,3% dos moradores do Rio de Janeiro ainda não tomaram nenhuma dose da vacina contra a Covid. Parte desse grupo são crianças que aguardam sua vez para serem imunizadas. No entanto, quando se trata dos internados pela doença nos hospitais da rede pública da cidade, a situação é outra. De acordo com a secretaria, cerca de 90% não completaram o esquema vacinal, e aproximadamente 38% não tomaram nenhuma dose do imunizante.
Rangel, que também é médico de família e comunidade, diz que os casos mais graves dentre os pacientes, são os dos que não tomaram ao menos duas doses da vacina. A situação costuma piorar para àqueles que se recusaram totalmente a imunização, informa.
Na segunda semana do mês de janeiro, a médica intensivista e cardiologista Ludhmila Hajjar já identificava a superlotação das as UTIs (Unidades de Terapia Intensiva) por pacientes e os danos para os profissionais da saúde, com o avanço da contaminação pela Ômicron. Ao jornal O Globo, Hajjar classificou como “brutal” a diferença no impacto da contaminação pela variante entre vacinados e aqueles não imunizados ou que não completaram o ciclo de imunização — vacinados “dificilmente” desenvolvem casos graves da doença. As UTIs estão atualmente só com casos de covid entre os não vacinados. Os imunizados dificilmente passam do atendimento ambulatorial”, assegurou.
Nesses casos, o arrependimento e a culpa são inevitáveis. “Outro fator comum entre eles é o sentimento de arrependimento. Os que estão internados e não se vacinaram estão pedindo pelo imunizante, com a ideia ansiosa de que podem melhorar instantaneamente”, revela Rangel. Depois que a pessoa vivencia a doença e vê o que ela pode causar, é comum que mudem de ideia sobre a vacinação”, prossegue. Ele explica que é possível saber a situação vacinal de cada paciente pela ficha que preenchem ao serem admitidos no cuidado hospitalar. “Caso a pessoa ou sua família não queiram informar, ainda é possível cruzar o sistema do hospital com o do Ministério da Saúde, recebendo de forma específica somente as informações dos que estão internados aqui.”
O médico cita alguns dos casos de resistência à vacina que marcaram sua rotina nesses tempos de pandemia. Entre eles, o de uma família que não acreditava na segurança e eficácia dos imunizantes até receber a visita domiciliar de agentes da equipe de saúde municipal. “Os profissionais conseguiram convencê-los a ir até o posto na próxima data possível, mas infelizmente o pai da família foi contaminado logo na sequência.” O paciente está atualmente intubado.
“Ele até poderia ter contraído a doença, mas não estaria nessa situação tão grave se tivesse recebido a vacina quando teve a oportunidade pela sua faixa etária. Os parentes expressam o sentimento de culpa, estão muito abalados, e nosso papel é oferecer apoio psicológico por meio de uma equipe especializada”, diz Rangel.
Ele destaca o caso de um pai e seu filho que ficaram internados ao mesmo tempo no hospital. Pelas idades, a família toda poderia ter se vacinado, mas eles e todos os parentes próximos recusaram o imunizante. “O filho, um homem de 35 anos com algumas comorbidades, acabou falecendo. Quando o pai acordou e já estava com a saúde estável, tivemos que dar a notícia para ele”, explica o diretor do Ronaldo Gazolla. A culpa tomou conta dele, que repetiu várias vezes a mesma frase ‘mesmo eu não me vacinando, deveria ter feito ele se vacinar’”, completou.
“Como intensivista, tenho visto cada vez mais pacientes internados arrependidos de não terem sido vacinados. Eles chegam com a forma grave da doença, se arrependem, porém, já é tarde”, diz Ludmila Hajjar.
Um outro exemplo de arrependido por ter recusado a vacina é o do comediante Christian Cabrera. Cabrera morreu por complicações da Covid-19 nos Estados Unidos no último dia 21, aos 40 anos. Dias antes de morrer, ele disse para o irmão que se arrependia de não ter se vacinado. “Não consigo respirar de novo. Eu realmente me arrependo de não ter tomado a vacina. Se eu pudesse fazer tudo de novo, eu tomaria para salvar minha vida. Estou lutando por minha vida aqui e queria que tivesse me vacinado. Está muito doloroso hoje, muito difícil de respirar. Falamos mais tarde”,
Além do risco à própria vida, não se vacinar contribui para a transmissão mais acelerada do vírus e o surgimento de novas variantes, que podem representar para o sistema de saúde o mesmo cenário vivenciado com a ômicron: alta taxa de positivados pela Covid-19 e sobrecarga nos hospitais. “Tivemos um momento, no ano passado, em que achamos que poderíamos respirar com a vacinação, mas estamos vendo os números aumentarem novamente. É um período de bastante cansaço”, diz a médica intensivista Fernanda Caputo, da Santa Casa de Belo Horizonte. Em Minas Gerais, janeiro já foi responsável por mais casos de Covid-19 do que todo o segundo semestre de 2021. “No início do mês, tínhamos quatro pacientes positivos, e agora são quase cem”, conta a enfermeira Camila Rodrigues Souza.
Os 49 leitos de enfermaria destinados a pacientes de Covid na unidade não ficam vazios. “A cada nova onda a gente se questiona se vai dar conta. As pessoas perderam o medo da doença e não entendem que não é só a vida delas que muda”, lamenta Camila.
Apesar do trabalho intenso em janeiro, a enfermeira ressalva que o tratamento tem exigido menos recursos que em fases anteriores da pandemia. “Quem evolui para quadro grave são pacientes não vacinados, com comorbidades e jovens de 35 a 60 anos”, observou.
O técnico em enfermagem Felipe Augusto de Souza, 25, começou a trabalhar na Santa Casa pouco mais de um ano antes do início da pandemia. “O desafio maior foi essa inconstância de protocolos. Uma semana uma medicação era usada, na outra, não”, relata. Próximo à marca de dois anos do início da pandemia no Brasil, ele diz que o momento é de cuidar melhor de si mesmo.
“Cuidamos muito dos outros e, às vezes, nos esquecemos da gente. Precisamos cuidar do emocional, do psicológico, nos alimentar melhor”. Ele faz um alerta a população sobre o futuro da pandemia. “É gritante a diferença do perfil de pacientes antes e pós-vacina. Acreditem e confiem na ciência, porque ela se esforça muito para trazer resultados”, completou.
“O momento atual acaba despertando uma mistura de frustração e tristeza por vermos vidas sendo perdidas e pacientes em estado grave que poderiam não estar nessa situação se tivessem aceitado a vacinação. É angustiante para nós que estamos tratando a doença há tantos meses”, lamenta Rangel.
O adoecimento e demandas por profissionais de saúde é grande. Em fases mais críticas, o Ronaldo Gazolla chegou a contar com plantões de mais de 3,2 mil profissionais de saúde de diferentes especialidades.
Quando a vacina finalmente chegou ao Brasil, em janeiro do ano passado, Rangel disse que imaginava que logo o país retomaria a rotina anterior à pandemia do novo Coronavírus, o que, infelizmente, não se confirmou.
“Depois de muito esforço para atender milhares de pessoas, demos alta ao nosso último paciente internado por covid em novembro de 2021. Foi um alívio, uma emoção e motivo de festa para toda a equipe. Aí, de repente, voltamos a ver tudo de novo, lamenta o médico.