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Documentos reforçam que o governo federal só passou a tratar com urgência a crise sanitária no Amazonas após pressão do Supremo Tribunal Federal (STF). Crise matou 2.195 pessoas só em janeiro de 2021, muitas delas, por asfixia
Documentos inéditos confirmam o descaso com que o governo Jair Bolsonaro tratou internamente um dos momentos mais críticos da pandemia: o colapso da saúde em Manaus, que matou 2.195 pessoas só em janeiro de 2021, muitas delas, por asfixia.
Diante das novas evidências, os senadores que comandaram a CPI da Pandemia em 2021 vão pedir a reabertura de inquéritos arquivados pela Procuradoria-Geral da República (PGR) com base nos documentos revelados pela Agência Pública.
As atas de reuniões secretas, ocorridas entre diversos ministérios e órgãos no Palácio do Planalto no período, registraram a omissão do Ministério da Saúde, sob a gestão do então general da ativa Eduardo Pazuello diante a tragédia anunciada.
De acordo com a publicação eletrônica da Agência ‘A Pública’, que teve acesso aos documentos, o Ministério da Defesa, ainda sob chefia do também general da reserva Fernando e Silva, se empenhou completamente na produção de cloroquina durante a pandemia, medicamento ineficaz apresentado como a solução para o enfrentamento da tragédia sanitária na capital do Amazonas.
Os documentos reforçam que o governo federal só passou a tratar com urgência a crise sanitária no Amazonas após pressão do Supremo Tribunal Federal (STF), quando o ministro Ricardo Lewandowski determinou que o ex-presidente Bolsonaro apresentasse ao tribunal um “plano compreensivo e detalhado acerca das estratégias que está colocando em prática ou pretende desenvolver para o enfrentamento da situação de emergência”.
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Assim, o Centro de Coordenação das Operações do Comitê de Crise da Covid-19 (CCOP), chefiado pelo general da reserva Walter Braga Netto, responsável por supervisionar e monitorar os impactos da Covid-19, se reuniu pela primeira vez em 16 de janeiro para elaborar uma resposta ao Supremo e discutir a “situação no Estado do Amazonas” e as “vacinas contra Covid-19”.
A Pública iniciou uma série de reportagens sobre a documentação, até então sigilosa, de 233 reuniões realizadas entre março de 2020 e setembro de 2021, que reunia representantes de 26 órgãos federais, entre ministérios, agências reguladoras, bancos públicos, a Polícia Federal e a Agência Brasileira de Inteligência (Abin).
Enquanto a imprensa e os relatos dos profissionais de saúde na época evidenciavam a urgência da adoção de medidas concretas para combater o vírus, os documentos internos mostram que o governo não “enxergava” a gravidade do momento.
“Era comum, por exemplo, a apresentação, pela Secretaria de Governo (SEGOV), de demandas urgentes por parte dos estados, conforme estes eram assolados por seguidos picos de contágio da doença. Mas tais pedidos ficavam de fora da lista de tarefas e encaminhamentos aos integrantes do CCOP, geralmente compilados ao fim dos encontros”, cita a Agência Pública.
Em 27 de dezembro de 2020, o Ministério da Saúde identificou um aumento substancial no número de hospitalizados em Manaus, que se multiplicou de 36 casos no dia 20 para 88 casos no dia 27, conforme informações enviadas pela pasta à CPI da Covid no Senado Federal. O assunto, porém, não foi incluído na pauta de uma reunião do Ministério da Saúde, realizada no dia seguinte.
No dia 28, porém, Pazuello reuniu seu secretariado e principais assessores para debater a situação de Manaus e “planejar ações compatíveis com essa evolução das hospitalizações”, de acordo com os documentos da CPI.
Somente no dia 30, por solicitação do Subchefe Adjunto de Gestão Pública, o Ministério da Saúde informou ao comitê os números de óbitos e de contaminação no Estado do Amazonas, mas a gravidade do que ocorria na capital seguiu omitida.
Além de esconder o aumento das internações em Manaus, o órgão passou a falsa impressão de que a situação estava sob controle, com a redução de contaminações no município. “A capital do estado (Amazonas) apresentou redução de casos entre a semana epidemiológica 51 (13/12 a 19/12) e a semana epidemiológica 52 (20/12 a 26/12) de 11,8%, sendo 2.503 casos novos e 2.208 casos novos, respectivamente”, mas o número de óbitos, também identificados, haviam aumentado em 48%, passando de 50 para 74.
A Saúde registrou ainda que entregou 470 ventiladores para 13 estados na data, mas apenas 40 foram enviados para o Amazonas.
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Na reunião do comitê de crise realizada em 30 de dezembro, o representante da Secretaria de Governo também relatou que o estado do Amazonas havia pedido reforço no fornecimento de EPIs, habilitação de leitos, disponibilização de profissionais de saúde, entre outros. Disse ainda que o pedido havia sido repassado ao Ministério da Saúde e à Casa Civil da Presidência da República. Apesar disso, ficou decidido que a Saúde deveria apenas “avaliar a demanda” do Amazonas.
Em 3 de janeiro, uma comitiva do Ministério da Saúde, forçada pelo agravamento da crise em Manaus, se deslocou até a cidade para, mais uma vez, apenas “avaliar as demandas do estado”, mas o que se queria saber realmente era se o Amazonas estava aplicando o tratamento precoce.
“Em resposta ao questionamento apresentado pelo Subchefe Adjunto Executivo da SAM acerca da implementação/incremento, pelo Estado do Amazonas, de tratamento precoce para a Covid-19, o representante do MS informou que o estado não tem adotado, a contento, essa estratégia”.
“Há a possibilidade iminente de colapso do sistema de saúde, em 10 dias”, alerta documento enviado pela Advocacia Geral da União (AGU) ao STF, conforme reportagem da Pública em 18 de janeiro de 2021. O dado não foi levado ao comitê de crise, conforme as atas obtidas pela reportagem.
E a aposta em medicamentos comprovadamente ineficazes para combater o vírus seguiu em voga. “Senhores, senhoras, não existe outra saída: nós não estamos mais discutindo se esse profissional ou aquele concorda. Os conselhos federais e regionais já se posicionaram, os conselhos são a favor do tratamento precoce, do diagnóstico clínico”, disse Pazuello durante entrevista em Manaus em 11 de janeiro.
“Olha o que estava acontecendo em Manaus agora. Vamos falar Amazonas porque Amazonas se resume, em grande parte, a Manaus. São poucas cidades lá. Mandamos ontem o nosso ministro da Saúde para lá. Estava um caos. Não faziam tratamento precoce”, disse Jair Bolsonaro a apoiadores no Palácio da Alvorada.
Em 14 de janeiro, a cidade já enfrentava o colapso sanitário, com um pico de enterros: 213 sepultamentos em 24 horas. A média diária de mais de cem sepultamentos se manteve por pelo menos 45 dias seguidos.
Em “resposta” a isso, no dia 13 de janeiro o representante do Ministério da Saúde registrou durante a reunião do comitê de crise que a pasta enviou, dentre outros itens, 120 mil comprimidos de Hidroxicloroquina para o estado do Amazonas.
Além disso, faltava oxigênio para manter os pacientes em estado grave internados nas unidades de saúde e não havia mais covas disponíveis para enterrar os mortos. Para tentar frear o vírus, o governo do Amazonas instaurou um toque de recolher e proibiu a circulação de pessoas entre 19h e 6h na cidade.
Apesar do caos na capital amazonense, o governo continuo insistindo no tratamento ineficaz. Na reunião do CCOP de 16 de janeiro, o então diretor de Programa do Ministério da Saúde, Marcelo Pires, disse que, entre os problemas identificados pelo ministério estava a “falta de atendimento precoce” no município de Manaus.
REABERTURA DAS INVESTIGAÇÕES
Segundo a Pública, os senadores Omar Aziz (PSD-AM), que presidiu a CPI da Covid, e Renan Calheiros (MDB-AL), que foi o relator da comissão, ressaltaram a importância de a imprensa continuar investigando a atuação do governo Bolsonaro ao longo da pandemia para que os inquéritos arquivados sejam reabertos. “Muito importante a continuidade da investigação, fatos novos continuarão aparecendo”, destacou Calheiros. “Nós vamos pedir ao STF para reabrir algumas investigações que a própria PGR arquivou, com base nesses documentos que estão sendo divulgados”, acrescentou.
O senador defende, no entanto, que o pedido seja feito após a saída do procurador-geral Augusto Aras, em setembro, uma vez que ele é visto como aliado de Jair Bolsonaro. Segundo Omar Aziz, a cúpula que comandou a CPI vai se reunir após o carnaval para discutir os encaminhamentos que serão adotados.
“É uma pena que para as autoridades competentes que nós encaminhamos o relatório da CPI, como para a PGR, as coisas não andaram. É lógico que tendo fatos novos, eles podem ser estendidos àquilo que já tínhamos tratado”, ressaltou. “Fatos novos são importantes para pedirmos a reabertura das investigações”, acrescentou.