Em documento usado para justificar a rejeição de diretrizes de tratamento da Covid-19 ao Sistema Único de Saúde (SUS), o Ministério da Saúde contraria entidades científicas e defende que há eficácia e segurança no uso da hidroxicloroquina contra a Covid-19. A pasta, chefiada por Marcelo Queiroga afirma ainda que as vacinas não demonstram essas características e não tem efetividade e segurança demonstradas.
A nova manifestação antivacina foi feita em tabela dentro de documento assinado pelo secretário de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos, Helio Angotti, uma liderança de ala do governo defensora das bandeiras negacionistas de Jair Bolsonaro.
As diretrizes rejeitadas haviam sido elaboradas por especialistas de entidades médicas e científicas e aprovadas pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias ao SUS (Conitec) de não usar medicamentos do “kit Covid” para tratamento em pacientes do SUS.
Desde o início do desenvolvimento das vacinas contra a Covid-19, cientistas fizeram estudos, incluindo pesquisas de padrão ouro, para confirmar a segurança e eficácia contra o coronavírus. Todas as vacinas em aplicação no Brasil obtiveram resultados que comprovaram a segurança para a aplicação e uma boa resposta de anticorpos contra o coronavírus.
No caso da hidroxicloroquina, pesquisadores da área passaram a não recomendar o uso do medicamento por falta de evidências científicas e, mais do que isso, a chance de causar algum efeito adverso grave em pacientes com a Covid-19.
Na mesma tabela, o ministério também considera que a hidroxicloroquina é barata, não tem estudos “predominantemente financiados pela indústria”, mas não é recomendada por sociedades médicas. Já a vacina, segundo a pasta, é cara, tem estudos bancados pela indústria e é recomendada por essas entidades.
Esse argumento reforça distorções já levantadas pelo presidente Bolsonaro de que há interesses impróprios na aprovação das vacinas.
A diretora da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) Meiruze de Freitas reagiu à nota da Saúde e disse em entrevista ao jornal Folha de S. Paulo a que “todas as vacinas autorizadas no Brasil passaram pelos requisitos técnicos mais elevados no campo dos estudos clínicos randomizados (fase I, II e III) e da regulação sanitária”.
“Não é esperado e admissível que a ciência, tecnologia e inovação no Brasil estejam na contramão do mundo”, afirmou a diretora. “É preciso que todos estejam unidos na mesma direção, ou seja, salvar vidas”, completou.
O Ministério da Saúde aponta que não há demonstração de efetividade da vacina “em estudos controlados e randomizados” nem de segurança “em estudos experimentais e observacionais adequados”.
Ainda afirma que outros tratamentos contra a Covid não têm resultado, como manobra de prona e ventilação não invasiva. Na tabela, a pasta diz que anticorpos monoclonais funcionam.
NEGACIONISMO
Ao assumir o Ministério da Saúde, em março de 2021, Queiroga anunciou que promoveria o debate na Conitec para encerrar a discussão sobre o uso do kit Covid. Ele indicou o médico e professor da USP Carlos Carvalho, contrário aos fármacos ineficazes, para organizar o grupo que iria elaborar os pareceres. Queiroga, porém, modulou o discurso e tem investido em agrados a Bolsonaro para se agarrar ao cargo.
Gestores do SUS cobram que Queiroga, além de atuar na compra das doses, faça campanha de estímulo à imunização das crianças.
Nas redes sociais, porém, a Saúde aposta em reforçar que a imunização dos mais jovens é uma decisão dos pais e responsáveis.
Especialistas e sociedades médicas que participaram da elaboração da diretriz preparam um recurso ao ministério para reverter a decisão de rejeitar o texto.
Entidades como a Associação de Medicina Intensiva Brasileira (Amib), a Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI), a Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia (SBPT) e a Associação Médica Brasileira (AMB) já se manifestaram para assinar o documento.
“Não tem lógica e base técnica nenhuma essa análise [do ministério]”, afirma o infectologista Julio Croda, pesquisador da Fiocruz e professor da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS). “Mostra claramente que é uma decisão política [rejeitar a diretriz] e não técnica”.
“Já passou do ato de ato de autonomia médica para algo criminoso, de indução do uso de medicações sem nenhuma comprovação científica”, disse ainda Croda.
“Essas vacinas que são alvos de ataque por parte do secretário estão autorizadas em todas as agências do mundo”, também disse Nelson Mussolini, presidente-executivo do Sindicato da Indústria dos Produtos Farmacêuticos (Sindusfarma).
“Todos os estudos são patrocinados pelo detentor da patente”, afirmou ainda, sobre menção do ministério ao patrocínio da indústria às pesquisas sobre vacinas. Mussolini é membro da Conitec como representante do Conselho Nacional de Saúde (CNS).
Em movimento liderado pelo secretário, o governo tentou boicotar o debate da Conitec. Agora, o mesmo grupo quer retirar do comando da comissão a servidora Vania Canuto, que votou a favor do texto que contraindica a hidroxicloroquina, entre outros medicamentos.