“Os próprios laboratórios oficiais, como o da Fiocruz, inclusive, tiveram uma instrução para parar de produzir os insumos porque teriam muitos testes e, agora, mandam de novo que voltem a produzir”, disse Costa ao comentar a perda de 6,8 milhões de testes. “Está uma baderna geral”, denunciou
O epidemiologista e professor da Fundação Oswaldo Cruz, Eduardo Costa, faz, nesta entrevista ao HP, uma avaliação abrangente da situação de momento da pandemia no Brasil e no mundo.
Para ele, pelo menos no Brasil, não há elementos suficientes que sustentem a tese do surgimento de uma “segunda onda” da Covid-19. “As epidemias de um modo geral seguem o caminho onde há possibilidades de transmissão. Onde tem gente com seus contatos”, disse o professor.
Eduardo Costa avalia que o episódio da perda de validade de 6,8 milhões de testes contra a Covid-19, mostra a bagunça que está o Ministério da Saúde. “Nós estamos no meio de um desastre com muitos parceiros desse desastre”, alertou o especialista.
Ele falou também sobre o surpreendente fenômeno que ocorreu com a vacina da Universidade de Oxford e AtraZeneca, que apresentou uma eficácia maior quando a primeira dose foi reduzida à metade.
Costa apontou também as vantagens comparativas da vacina desenvolvida pelo Instituto Butantan em parceria com o laboratório chinês Sinovac.
Veja a íntegra da entrevista:
HORA DO POVO: Este episódio dos testes se perdendo no Aeroporto de Guarulhos. Que você achou disso?
EDUARDO COSTA: Eu tenho informação que a baderna é geral. O Ministério da Saúde anda mudando de novo cargos. Essa distribuição deve estar toda complicada. Soube que os próprios laboratórios oficiais, como o da Fiocruz, inclusive, tiveram uma instrução para parar de produzir os insumos porque teriam muitos testes ou coisa parecida e agora mandam de novo que voltem a produzir os testes. Nós estamos no meio de um desastre com muitos parceiros desse desastre. Há uma desorganização total no ministério. Até brincam que esse Pazzuello é de logística. Não dá para ficar alterando certas coisas que funcionam, teria apenas que aprimorar.
“Há uma desorganização total no ministério”
HORA DO POVO: Segundo alguns analistas, já haveria sinais de uma segunda onda da pandemia de coronavírus na Europa e nos EUA. Você concorda com essa avaliação?
EDUARDO COSTA: Segunda onda é uma coisa que sempre ficou com uma conotação de que alguma coisa independente acontece, porque teve uma segunda onda lá na época da “gripe espanhola” três meses depois de ocorrerem muitos casos. Mas, mesmo naquele caso da “espanhola”, não foram para os mesmo lugares. Quer dizer, a verdade é a seguinte, as epidemias de um modo geral seguem o caminho onde há possibilidade de transmissão. Onde tem gente com seus contatos.
Então a doença se desloca no espaço e no tempo. E não é incomum que volte aos lugares onde esteve, mais forte, porque nem sempre pega todos os susceptíveis ali, ou nascem novos susceptíveis, etc. E aí há um aumento de novo. O aumento que nós estamos assistindo no Brasil, muito particularmente, não tem a ver com aquele da Europa, porque lá, a transmissão foi quase que zerada. Então tem uma grande parte da população que está susceptível. Eles fizeram medidas muito gerais de um modo geral, porque os países são menores e mais homogêneos.
“O aumento que nós estamos assistindo no Brasil, muito particularmente, não tem a ver com aquele da Europa”
De qualquer maneira, eles agora estão vivendo um momento de pressão de volta porque vieram as férias, etc, o pessoal viajou, foi para lá e para cá, eventualmente se contaminou, possibilitando uma reintrodução, a segunda onda é uma reintrodução onde não havia mais, ou onde o vírus estava circulando em muito baixo nível, com muito poucos casos. Isso acontece sempre com todas as doenças, mas não quer dizer que pode ser uma segunda, terceira ou quarta onda, dependendo do tempo que se esticou no tempo.
HORA DO POVO: Aqui no Brasil também aparecem alguns indicadores de elevação de internações pela doença. Há quem já esteja alertando para uma segunda onda no Brasil também. Qual sua opinião a respeito disso?
EDUARDO COSTA: Agora, o que a gente está vendo aqui no Brasil é um aumento, sem dados, os dados estão difíceis da gente ter uma clareza melhor, porque eles são muito ruins. Houve apagão, houve mistura do sistema de gripe, de registro de gripe. Nós não estamos com muita clareza sobre o que está acontecendo. Falar numa segunda onda no Brasil representa dois tipos de coisa. Um é que sempre tem essa cópia da Europa, dos Estados Unidos, tem que se passar aqui como acontece lá.
A segunda coisa é que nós temos um fenômeno um pouco diferente. O pessoal costuma criticar quem vai para a praia, etc, mas é o lugar com menos transmissão, tem o sol, tem o vento e nem sempre a concentração é tão grande como se diz. O pessoal gosta de exagerar com umas fotos de baixo que aparentam uma enorme concentração, isso não quer dizer que não tenha. Passear nas calçadas e tal. A questão é a seguinte, é que a classe média mais alta, as classes superiores médias não aguentavam mais ficar trabalhando em casa e fazendo tudo de lá.
“A praia é o lugar com menos transmissão, tem o sol, tem o vento”
Eles começaram a chamar as domésticas de volta, as diaristas, etc. Mesmo restaurantes votaram a ser frequentados, e nós temos uma reinseminação. Me parece, como uma das hipóteses, é que no meio dessa classe que, felizmente, não é tão grande assim, felizmente não, queríamos que fosse muito maior, mas não é tão grande, não haverá tanta transmissão. Até porque ela se resguarda de novo e vai ficar circulando mais dentro das casas.
O terceiro fato é o seguinte. Está ficando mais claro a cada dia que essa doença está voltando aqui, especialmente tem um pico mais claro no sul. Está mais claro que no sul tem um pico de casos que não corresponde ao número de óbito, mas de casos e são muito benignos. Em todos os lugares tem dado maior benignidade. No sul também podem estar ocorrendo registros de mais casos porque eles estão testando mais, ao fazerem busca ativa de casos rastreio de contatos.
“No sul também podem estar ocorrendo registros de mais casos porque eles estão testando mais ao fazerem busca ativa de casos rastreio de contatos”
Nós podemos aventar duas possibilidades para esta maior benignidade e para o aumento de internações. A primeira é que, pegando esse tipo de classe social que está sendo atingida, até pela natureza do estado alimentar, imunidade e tal, são pessoas mais protegidas e têm casos menos graves.
O segundo é que a rede hospitalar que estava muito ociosa passa então a internar gente com quadro mais benigno. E notifica os casos. Até porque esses hospitais conveniados ou privados diretos, eles vivem disso, de internar gente, não é. Os próprios hospitais públicos estaduais e municipais, para melhorar, dentro daqueles critérios que são de cotas, eles têm que apresentar resultados. É por procedimento que eles recebem do governo federal. Existem mecanismos que podem estar pressionando a ocupação hospitalar.
Há uma outra coisa que a gente tem que pensar que é essa hipótese cada dia mais forte, de que nós estamos lidando neste momento com uma situação em que a pandemia está misturada com as endemias de coronavírus tradicionais. Essa é uma hipótese muito interessante. Tem um trabalho muito bom, feito agora, seria exaustivo falar dele aqui, mas ele mostra que estamos diagnosticando misturando um com outro, porque dão positivos igualmente para certos testes diagnósticos. Acontece que são cruzados. Nós estamos engolindo diagnósticos equivocados, de precisão pelo menos.
“Estamos lidando neste momento com uma situação em que a pandemia está misturada com as endemias de coronavírus tradicionais”
HORA DO POVO: Saiu o resultado da eficácia da vacina da AstraZeneca/Oxford. Pareceu meio baixa (70%). O Butantan também anunciou que chegou no número mínimo de participantes infectados. Qual é a sua expectativa em relação às vacinas em teste?
EDUARDO COSTA: A vacina de Oxford é o seguinte. O resultado surpreendente que eles tiveram, já havia a possibilidade de acontecer. Quando eles deram duas doses de vacina completa, eles tiveram menos eficácia do que quando deram primeiro meia e depois uma dose inteira. Eles ficaram muito surpresos. Agora tem gente aí, inclusive um vice-presidente da Fiocruz, que disse que, agora, então vão poder economizar mais porque vão dar meia dose e imunizar mais gente. Não é má ideia como eventualmente pode acontecer.
Temos que ter clareza do porque isso acontece. Temos que pensar melhor. Isso pode acontecer porque, ao se dar – essa é uma discussão antiga sobre esta questão do chimpanzé – esses resíduos eventualmente, ou radicais que ficam embutidos, que são diferenciados do vetor do humano. A questão do vetor não humano é que teria uma vantagem de não haver nenhuma imunidade antiga que de alguma maneira atrapalhasse a imunogenecidade (capacidade de uma substância provocar uma resposta imune, como o desenvolvimento de anticorpos anti-medicamentos biológicos pelo sistema imune do paciente).
Se você der a primeira dose e cria isso, porque ele é diferente na primeira dose, a segunda vai reagir anulando a primeira. Ou seja, você vai ter anticorpos não dirigidos exatamente para a eficácia da vacina, mas dirigido a abafar a produção de anticorpos porque, na origem, já existem anticorpos circulando que inibem a produção de mais anticorpos.
A primeira dose provoca uma reação que é dupla, de um lado contra o coronavírus e de outro lado contra ela mesma porque essa espícula que ela está injetando tem pedacinhos que são daquele adenovírus do chimpanzé. E aí vai ter uma reação inibindo o conjunto do anticorpo. Este é um problema que pouca gente está falando mas existe e eles foram obrigados a procurar isso na literatura porque ele poderia ocorrer com o adenovírus humano.
Temos que ver o que pode acontecer, porque essas imunidades não são de longa duração e precisam de mais de uma dose. No futuro que ela reaja e não consiga fazer, digamos, em doses anuais fazer anticorpos suficientes. Esse é um risco, risco por enquanto, teremos que avaliar mais a longo prazo se isso não vai provocar a redução de produção de anticorpos.
Esses dados são só de dois a três meses de avaliação, acho que não está correto. Tinha que ser no mínimo de seis meses e, mesmo assim, não dá para prever o que acontece depois de seis meses. É claro, depois de seis meses, você já pode usar pelo menos para diminuir o impacto, mas não quer dizer que elas possam ser imunogênicas por mais tempo. Ou pelo menos que produzam imunidade necessária por mais tempo.
“Esses dados são só de dois a três meses de avaliação, acho que não está correto. Tinha que ser no mínimo de seis meses’
Sobre o caso do Butantan, eles tiveram que entrar numa situação onde predomina a questão propagandística. Eles fizeram de uma maneira muito elegante porque avisaram antes. Os outros não. Depois de examinar para saber se estava tudo legal ou não, eles estão divulgando, e mesmo assim, teria que se estudar melhor como é que estão sendo esses procedimentos. Mas, enfim, vamos acreditar que está tudo dentro da melhor técnica possível. O que nem sempre é verdade, haja visto situações que a gente conhece como a vacina de dengue da Sanofi, de grandes multinacionais que empurram as coisas como dá, para não perder todos os investimentos.
Existe uma vantagem latente também na vacina do Butantan. Ela, ao ser com o vírus inteiro, contém outros elementos virais que são até da família do coronavírus, que podem proteger junto contra essas gripezinhas sazonais que nós temos de coronavírus. Ela pode ser muito menos específica para o Sars-CoV-2, podendo abranger inclusive o que nós estamos vendo agora, possivelmente a associação de um surto com o outro. Foi arriscado eles anunciarem que só com 74 casos eles vão fazer a análise, mas eu acredito que eles vão conseguir o que seria uma eficácia de 90%.Mas, temos que ver o que vai dar.
SÉRGIO CRUZ