A insistência no julgamento sobre a “suspeição” do então juiz Moro, quando da condenação de Lula no processo do triplex de Guarujá – mesmo depois que o relator da Operação Lava Jato no Supremo Tribunal Federal (STF), Edson Fachin, declarou inexistente a sentença de Moro, ao remeter o caso à Justiça Federal de Brasília – mostra que o objetivo dos patrocinadores dessa “suspeição” é menos beneficiar Lula do que liquidar com o legado da Operação Lava Jato no combate à corrupção.
O que é “liquidar com o legado da Operação Lava Jato no combate à corrupção”?
Por óbvio – como dizem os advogados -, somente pode ser a anulação de todas as condenações e demais sentenças proferidas no âmbito da Operação.
Certamente, existem, como quase sempre, pessoas de boa fé, que são a favor do prosseguimento desse julgamento na Segunda Turma do STF – momentaneamente interrompido pelo pedido de vista do ministro Kassio Nunes Marques – por um deslocado sentimento de justiça, considerando o que se disse das conversas hackeadas dos procuradores e de Moro.
Mas não são essas pessoas os mais encardidos “patrocinadores” da suspeição de Moro – a rigor nem mesmo são estes os advogados de Lula, apesar da ação ser de sua lavra.
Para os mais encardidos, beneficiar Lula foi apenas o meio que encontraram para tentar acabar com as condenações e demais decisões tomadas pela Operação Lava Jato. Para isso, tomaram carona na ação dos advogados de Lula, que pedia – e pede – a suspeição de Moro.
Quanto a este último, como já expressamos mais de uma vez, seu maior erro não está nas conversas que foram hackeadas, ainda que estas fossem tão inadequadas que serviram – e servem – aos que queriam – e querem – anular todas as decisões da Lava Jato.
O erro fatal de Moro foi entrar para um governo corrupto, para ser ministro de um presidente corrupto, que juntou-se aos inimigos da Lava Jato na primeira oportunidade, mesmo àqueles que eram seus inimigos políticos, para destruir o combate à corrupção.
Com isso, Moro prejudicou sua reputação e sua causa – de uma maneira que está fazendo com que pague muito caro o erro que cometeu. Infelizmente, o máximo que podemos dizer sobre isso é que não foi por falta de aviso (v., p. ex., HP 01/11/2018, Bolsonaro quer usar Moro para dar respeitabilidade de fachada a um governo sem nenhuma; e HP 08/11/2018, Moro e o risco que Bolsonaro representa para a democracia).
PAÍS
Porém, em vez de abordar o problema sob o ângulo pessoal, ainda que político – a simploriedade lastimável de Moro, a sanha de Gilmar Mendes por livrar seus amigos das garras da Lava Jato, aproveitando-se de um inimigo (Lula), etc. -, vamos partir, então, do que mais interessa ao Brasil, ou seja, do que mais interessa para a Nação e o povo brasileiro nessa questão.
O ex-presidente Lula pode ter – e tem, pela decisão do ministro Fachin – direito a outro julgamento. Mas isso não elimina, obviamente, o direito da sociedade de saber o que aconteceu com os bilhões desviados pela corrupção.
O direito de Lula a novos julgamentos é líquido e certo – ainda que dependa de confirmação pelo Pleno do STF.
Mas o direito a investigar e punir a corrupção não é menos líquido e certo.
O que não pode existir é o direito à impunidade.
Como escreveu a ex-senadora e ex-ministra Marina Silva, “houve, sim, um monumental assalto aos cofres públicos, desvios, favorecimentos. Houve, sim, uso indevido do Estado para acobertar interesses de grupos políticos e empresariais. Há, sim, o que investigar e, certamente, há culpas que devem ser punidas. O justo é investigar todos: os de ontem e os de hoje que cometem crimes, tanto por práticas dolosas quanto por conspurcar o processo judicial. Não deve permanecer o sentimento de que tudo foi uma farsa, uma invencionice, que nada aconteceu, e vamos tocar a vida” (v. HP 10/03/2021, Monumental assalto aos cofres públicos não pode cair no esquecimento, diz Marina).
Realmente, não é pouca coisa. Em outubro de 2015, um laudo pericial incompleto da Polícia Federal chegou a uma pilhagem, somente sobre a Petrobrás, de 42 bilhões, 808 milhões, 903 mil, 596 reais e 16 centavos, nos contratos com 27 empresas e alguns outros contratados (v. LAUDO Nº 2311/2015-SETEC/SR/DPF/PR).
Esse laudo jamais foi contestado.
A ex-senadora está, portanto, perfeitamente justificada, ao falar de “monumental assalto aos cofres públicos, desvios, favorecimentos”.
Como já lembramos aqui, houve 278 condenações de 174 réus, apenas em Curitiba, como resultado das investigações da Operação Lava Jato. Foram devolvidos R$ 4 bilhões e 300 milhões de dinheiro roubado do povo brasileiro, através de sobrepreços, superfaturamentos e consequentes propinas. Acordou-se a devolução parcelada de mais R$ 14 bilhões e 700 milhões. E houve mais R$ 22 bilhões, sonegados, que foram recolhidos aos cofres da Receita. As penas somaram, ao todo, 2.611 anos de cadeia. (v. HP 15/02/2021, Duas ou três coisas sobre a Lava Jato, Lula e o infame Bolsonaro).
Isto são alguns exemplos dos resultados da Operação Lava Jato. O que eles mostram é que houve corrupção, roubo de dinheiro e patrimônio públicos, e não foi pouco – um roubo que está longe de ter sido inteiramente recuperado.
Não é justo, portanto, que, escudando-se no caso de Lula e nos erros de Moro ou de algum procurador da força-tarefa da Lava Jato, os corruptos todos escapem, com a maior parte de seu roubo – inclusive os politicamente mais notórios: Eduardo Cunha, Sérgio Cabral, Geddel Vieira Lima, etc., etc.
Um, se podemos dizer assim, adversário de Moro – e adversário, como se dizia antigamente, figadal –, que também é professor de Direito, declarou que se a suspeição de Moro for declarada, “tudo é anulado. Aí a tragédia não é desse mundo. Por que a tragédia não é desse mundo? Porque entrou o boi, passa a boiada todinha. Lá se vem Palocci, lá se vem Eduardo Cunha, lá se vem Sérgio Cabral, lá se vem Geddel Vieira Lima. Tudo o que o Sérgio Moro presidiu, tudo vai ser dito nulo. Viva a bandalheira!” (v. entrevista do ex-governador e ex-ministro Ciro Gomes a José Luís Datena, 09/03/2021).
Além de inocentar Cunha, Palocci, Geddel, Cabral e outros – por exemplo, aquele gerente que devolveu US$ 100 milhões (cem milhões de dólares), que roubara, logo nos primeiros meses da Operação Lava Jato -, com a anulação dos processos em que Moro foi juiz, também o dinheiro seria devolvido aos ladrões?
Portanto, o problema não é Lula. Se a Justiça decidiu que ele tem direito a novos julgamentos, que tenha novos julgamentos. Se a Justiça decidiu que ele é elegível, que concorra, se e quando quiser, às eleições.
O problema é que isso não faz com que o roubo monumental da coisa pública – sobretudo na maior, mais estratégica e mais popular de nossas empresas, a Petrobrás – não tenha existido. Nenhuma máquina do tempo é capaz disso, até porque não existem máquinas do tempo.
Passar por cima da decisão de Fachin sobre Lula para declarar Moro “suspeito”, tem apenas o objetivo de usar o caso de Lula para “inocentar” todos os corruptos que a Lava Jato investigou e condenou. Até porque o sr. Gilmar Mendes, na sessão da Segunda Turma do STF de terça-feira (09/03), atacou, nos mesmos termos, não apenas Moro, mas também um juiz que proferiu condenações no âmbito da Lava Jato bem longe de Curitiba – e cuja “suspeição” nem estava em pauta.
Quem esse outro juiz condenara?
Entre outros, Sérgio Cabral e Eduardo Cunha.
Entretanto, a realidade – aliás, o passado real – é o que é. Não é possível mudá-la de acordo com as conveniências de fulano, beltrano ou sicrano, ou com as crenças e fidelizações de Mendes – ou seja lá de quem for.
O que passou e chegou à consciência das pessoas, não pode e não vai ser apagado, pois sempre vai haver quem se lembre, enquanto a espécie – ou a nacionalidade – existir.
Foi o que já mostraram algumas das reações após a decisão de Fachin sobre os processos de Lula – das quais transcrevemos, acima, apenas duas.
EMPRESAS
Por fim, uma questão que apareceu em alguns artigos, depois da decisão do ministro Fachin. Gente, em geral bem intencionada, acusou a Operação Lava Jato de ter quebrado empresas nacionais. O tom é mais ou menos o seguinte: “e agora, que os processos de Lula voltaram à estaca zero, quem paga ou repara as empresas que quebraram ou diminuíram de tamanho?”.
A colocação, por mais bem intencionada que seja, é despropositada.
Pois, se essa pergunta tivesse sentido, seria como se as empresas nacionais não pudessem existir, senão afundadas em molho de corrupção, ou seja, roubando o povo brasileiro.
Não estamos nos referindo, aqui, à concessão de estatais diretamente à corrupção – como o caso da BR Distribuidora, concedida aos indicados pelo sr. Collor de Mello. Ou a contemplar o hoje bolsonarista “Centrão” com postos para a feitura de negócios nada lícitos, como no caso Janene-Paulo Roberto Costa-Youssef.
Não. Não é a isso que estamos nos referindo, porque supomos que as pessoas que acham sinceramente que a Lava Jato quebrou as empresas nacionais, também não concordam com isso.
Aliás, se mencionamos esse aspecto do problema foi apenas para não ser omisso.
A questão mais importante – porque mais difícil de deslindar – é a que diz respeito ao que é uma empresa nacional. Isto é, uma empresa privada nacional.
Existe, aqui, uma confusão entre empresa nacional e empresa monopolista. Sobretudo quando se trata de uma nação oprimida e explorada, ou seja, uma empresa em um país dependente, um país que mantém laços de subordinação com o imperialismo.
Grupos como eram, por exemplo, a Odebrecht, e, em outro setor, a JBS, apesar de pertencerem a brasileiros, perdem seu vínculo com a nação, por sua tendência ao monopólio. Esses grupos se identificam muito mais com outros monopólios – inclusive e sobretudo estrangeiros, norte-americanos – do que com a nação brasileira.
Nem sempre eles foram assim. Mas se tornaram monopolistas ou candidatos a monopólios, na medida em que seu crescimento implicou no sufocamento do mercado, da competição, da concorrência, no limite, crescentemente, asfixiando o país. O famoso “clubinho” do BNDES, que dividia os financiamentos com as multinacionais, em detrimento da maioria das empresas nacionais – as médias empresas, que são, há muito, o principal contingente da indústria nacional – é um exemplo dessa crescente asfixia, embora ainda em seus inícios.
Daí, também, a organização desses grupos em cartéis para saquear os recursos públicos, os recursos da sociedade.
Nós precisamos de empresas nacionais – mas essas são, exatamente, aquelas que competem, aquelas que estão concorrendo no mercado, e não as que monopolizam, isto é, manietam o mercado.
O monopólio privado, realmente, não pode existir senão em meio a sobrepreços, superfaturamentos – e, portanto, distribuindo propinas para obter esses sobrepreços e superfaturamentos.
Evidentemente, não combater a corrupção não pode ser o preço do crescimento, simplesmente porque isso não leva ao crescimento, mas à estagnação econômica e à dissolução moral, com gente cevando-se em propinas – e achando isso muito natural.
Essa é a razão pela qual o governo da China, hoje, é especialmente enfático na luta, sem concessões ou tréguas, contra a corrupção. Os chineses, que têm a economia que mais cresce no mundo, sabem que a corrupção pode colocar em risco tudo o que já conseguiram e mais o seu futuro.
Como já abordamos, em outro lugar, o problema geral do monopólio diante da corrupção, aqui reproduziremos alguns trechos:
“Não é novidade que monopólios privados são achacadores, corruptos e corruptores, por sua própria natureza econômica – em suma, são antissociais.
(…)
“Os sobrepreços e o superfaturamento, assim como o suborno de agentes públicos, é a regra nos cartéis, exatamente porque o objetivo de um cartel é o monopólio privado, para que as empresas integrantes obtenham superlucros através de sobrepreços, com o esmagamento de outras empresas, que não pertencem à confraria. Mas esse esmagamento de outras empresas não se dá porque as empresas monopolistas, as empresas cartelizadas, sejam mais eficientes que as outras, ou seus produtos sejam melhores, e, sim, porque têm maior poder financeiro e influência política.
“A rigor, monopólios privados não concorrem, isto é, não competem com seus produtos no mercado; o que eles fazem é quebrar a concorrência devido ao seu maior poder financeiro.
“No entanto, não é uma fatalidade que monopólios e cartéis dominem o país e corrompam os funcionários, o governo e os partidos governistas.
“Tanto isso é verdade que nos EUA, a terra dos monopólios privados e cartéis, Franklin D. Roosevelt e outros governantes conseguiram, ao menos, limitá-los. Se mais não foi feito nesse terreno, deve-se às sentenças a favor de monopólios e cartéis, emitidas pela Corte Suprema ou sob a égide desta.
(…)
“Em suma, monopólios privados eliminam ou manietam o mercado – e não porque seus produtos ou serviços sejam melhores. A propina, a corrupção de funcionários públicos, de agentes que têm por função zelar pela propriedade pública, coletiva, social, é parte dessa atividade de gângster.
(…)
“A transformação de empresas que se regem pela concorrência em monopólios é um fenômeno econômico.
“O problema é quando se considera que os monopólios privados, ao invés de levarem à estagnação, ao atraso e à pilhagem do país e do povo – como levam – são o suprassumo do que é moderno no capitalismo.
“Mas somente é possível considerar essa praga como o ápice da modernidade por submissão a esses monopólios. Essa ideologia, totalmente falsa, é a racionalização de uma submissão real, verdadeira – ou, o que é a mesma coisa, a suposta justificativa da covardia diante desses monopólios” (v. Carlos Lopes, Os Crimes do Cartel do Bilhão contra o Brasil: o esquema que assaltou a Petrobras, Fundação Instituto Claudio Campos, 2016, pp. 178-184).
Aqui, nos detivemos no fundo econômico e teórico da questão – e não na troca de favores corruptos para se perpetuar no poder – porque aqueles com quem nos interessa discutir esta questão são gente honesta, apesar de, ao nosso ver, estarem equivocados.
CARLOS LOPES
Foi difícil aceitar que o Nunes Marques votará pela suspeição do Moro.
Colocar o Moro nessa condição e estuprar a Lava Jato é a tentativa mais temerária de inviabilizar a conquista da nacionalidade.
Que nação pode ser a brasileira se um de seus mandamentos é: podes roubar!