O ex-ministro Eduardo Pazuello, durante o seu depoimento à CPI da Covid-19 no Senado Federal, negou qualquer interferência do presidente Jair Bolsonaro no Ministério da Saúde no período em que esteve à frente daquela pasta.
Disse ele:
– Em momento algum o presidente da República me orientou ou me encaminhou ou me deu ordem para fazer nada diferente do que eu já estava fazendo. Nada. Absolutamente nada. As minhas posições e as minhas ações nunca foram contrapostas pelo presidente. Em nenhum momento o presidente me desautorizou ou me orientou a fazer qualquer coisa diferente do que eu estava fazendo.
COMPRA DA VACINA CORONAVAC
Pazuello afirmou durante o seu depoimento que “nunca foi desautorizado” por Bolsonaro e “nunca o presidente da República mandou eu desfazer qualquer contrato” na aquisição da vacina CoronaVac, produzida pelo Instituto Butantan em parceria com a Sinovac.
Em outubro de 2020, o então ministro anunciou protocolo de intenção de compra de 46 milhões de doses da CoronaVac.
Um dia depois, Bolsonaro disse que o governo federal não iria adquirir “vacina da China”: “Ele [Pazuello] tem um protocolo de intenções, já mandei cancelar se ele assinou. Já mandei cancelar. O presidente sou eu, não abro mão da minha autoridade. Até porque estaria comprando uma vacina que ninguém está interessado por ela, a não ser nós”.
O Ministério, então, voltou atrás e anunciou que “não há intenção de compra de vacinas chinesas”. Depois, Pazuello participou de uma transmissão ao vivo ao lado do presidente — ambos sem máscara — e afirmou que “senhores, é simples assim: um manda e o outro obedece”
Nada melhor do que esse episódio para entender o que representou a passagem trágica do general como ministro da Saúde.
Mas temos outros, que seguem a mesma lógica.
ISOLAMENTO SOCIAL
Pazuello afirmou na CPI da Covid que sempre defendeu isolamento social.
– Eu sempre me posicionei da mesma forma: medidas preventivas, incluindo aí o distanciamento social necessário em cada situação. Essa era a minha posição em todas as nossas ações de comunicação”, sentenciou.
Ainda em maio do ano passado, o então ministro interino foi alertado pelo comitê técnico da pasta que, sem isolamento social efetivo, o país poderia levar até dois anos anos para controlar a pandemia, mas Pazuello preferiu ignorar o alerta e orientou a reabertura das atividades econômicas e, três semanas depois da reunião, o Ministério publicou uma portaria sobre o retorno das atividades, enfatizando seus benefícios.
No mesmo período, Bolsonaro também defendeu a manutenção dessas atividades: “O governo federal, se depender de nós, estava tudo aberto com isolamento vertical e ponto final”, afirmou – e não se fala mais nisso.
CRISE DE OXIGÊNIO EM MANAUS
Durante seu depoimento, Pazuello disse que ficou sabendo da crise em Manaus no dia 10 de janeiro.
– Fiquei sabendo no dia 10 [de janeiro] à noite, em uma reunião com o governador [de Manaus] e secretário de Saúde […] Chegamos no dia 10, no dia 11 abrimos o Centro Integrado de Coordenação e Controle e na sequência, no dia 12, começaram a chegar as aeronaves trazendo mais oxigênio”, disse o ex-ministro.
No entanto, quando estava à frente da pasta, em janeiro e fevereiro deste ano, o Ministério da Saúde mudou por três vezes a data em que foi informado sobre o colapso de oxigênio em Manaus: 8, 10 e 17 de janeiro.
Pazuello comunicou à Polícia Federal, no dia 4 de fevereiro, que não foi informado sobre a falta de oxigênio em Manaus no dia 8 de janeiro, e sim dois dias depois, no dia 10, na véspera da viagem que fez a Manaus. O fornecimento de oxigênio hospitalar entrou em colapso na cidade logo depois, nos dias 14 e 15 de janeiro.
No entanto, a versão contradiz um documento oficial entregue pela Advocacia-Geral da União (AGU) ao STF, assinado pelo advogado geral, José Levi. Ele afirmou que o Ministério da Saúde ficou sabendo da falta de oxigênio em Manaus no dia 8, pela White Martins. No dia 18 de janeiro, o então ministro mudou a versão inicial e disse que foi avisado pela empresa fornecedora no dia 8 de janeiro.
Em 28 de janeiro, o Ministério da Saúde mudou a data novamente. Em documento com pedido de retificação enviado ao STF, Pazuello disse que só foi informado no dia 17 de janeiro.
LIMITAÇÕES DAS AÇÕES POR PARTE DO MINISTÉRIO DA SAÚDE
O ex-ministro afirmou à CPI:
– Não há possibilidade de o Ministério da Saúde interferir na execução das ações de estado da saúde sem usurpar competências dos estados e municípios. Isso seria possível no caso de intervenção federal em algum estado”.
Todavia, isso não impediu que, em 7 de maio de 2021, a secretária da Gestão do Trabalho e da Educação da Saúde do ministério, Mayra Pinheiro – cujo depoimento será colhido esta semana pela CPI, disse que visitou Manaus em janeiro para difundir o uso de cloroquina entre médicos da capital manauara.
A integrante da equipe de Pazuello visitou unidades de saúde em Manaus pouco antes do colapso na saúde pública do Amazonas, em janeiro, que levou mais de 30 pessoas a morrerem por falta de oxigênio em dois dias.
Em depoimento ao Ministério Público Federal (MPF), Mayara afirmou que o objetivo da missão da equipe era orientar os colegas médicos. Entre as recomendações estava o uso de cloroquina e hidroxicloroquina para tratar a Covid-19. Tanto a cloroquina como a hidroxicloroquina já tiveram sua ineficácia comprovada em diversos estudos científicos.
APLICATIVO PARA DIFUNDIR A CLOROQUINA
Ao falar à CPI sobre o aplicativo TrateCOV, uma plataforma protótipo para “facilitar o diagnóstico clínico feito pelo médico”, ou seja, desenvolvida com o claro objetivo de difundir a cloroquina e outras drogas comprovadamente ineficazes no combate à pandemia, Pazuello sentenciou:
– Essa plataforma foi mostrada no dia 11, em Manaus, em desenvolvimento. Era um protótipo e não foi distribuída aos médicos.
Segundo ele, quem decidiu pelo uso da plataforma foi a mesma Mayra Pinheiro.
– Quem determinou foi a secretária Mayra. Ela me trouxe como sugestão, quando voltou de Manaus no dia 6 de janeiro, que poderia utilizar um aplicativo, uma plataforma que já é desenvolvida para isso, para facilitar o diagnóstico clínico feito pelo médico. E que ela iria iniciar esse trabalho para fechar essa plataforma.
Entretanto, no dia 11 de janeiro, durante um evento em Manaus, o Ministério da Saúde lançou o aplicativo TrateCOV, cujo evento foi noticiado pela TV Brasil.
O então ministro defendeu o chamado tratamento precoce.
– O diagnóstico não é do teste, é do profissional médico. O tratamento, a prescrição, é do médico. E a orientação é precoce. E essa é a orientação de todos os conselhos de medicina”.
Manaus e os manauaras foram escolhidos como “cobaias”, como denunciaram hoje, em tom de muita revolta, durante o depoimento de Pazuello à CPI, os senadores Omar Aziz e Eduardo Braga: “cobaias” do aplicativo e “cobaias” do tratamento precoce. Na capital amazonense, 342 profissionais de saúde já haviam sido habilitados para operar a TrateCOV, cuja plataforma recomendava explicitamente “tratamento precoce” com os medicamentos sabidamente ineficientes no combate à Covid-19: cloroquina, azitromicina e hidroxicloroquina.
Segundo especialista, o código do aplicativo estava programado para recomendar o uso dos medicamentos no tratamento precoce aos pacientes independemente de alguns campos preenchidos, o que certamente explica o crescimento exponencial das mortes naquele estado.
Devido à repercussão negativa do fato, a plataforma saiu do ar no dia 21 de janeiro.
PAZUELLO, O LUGAR-TENENTE DE BOLSONARO
Em meio ao mar de embustes e mentiras destiladas por ele ao longo de seu depoimento à CPI da Covid-19, até o momento de sua suspensão, com certeza, uma verdade: Bolsonaro nunca passou a mão no telefone e ligou para o seu subordinado e disse: “Pazuello, não quero que você compre a vacina da CoronaVac, a vacina do Dória, tá ok?”
O ex-ministro é daqueles que seguem as ordens até por telepatia, algo que, certamente, não é comum nem mesmo no meio militar, onde a disciplina e a hierarquia são valores muito poderosos. A frase “um manda e outro obedece” não foi pronunciada à toa. Ele conhecia Bolsonaro o suficiente para saber o que podia e o que não podia fazer no comando do Ministério da Saúde, e fez tudo que o chefe mandou ou não mandou diretamente.
A partir da frustração da solicitação ao Butantan encomendando as 46 milhões de doses da CoronaVac, o general entendeu a mensagem e passou a seguir cegamente as ordens do capitão.
Pazuello foi a própria encarnação de Bolsonaro no Ministério no período mais crítico da pandemia, papel negado pelos ex-ministros Mandetta e Teich.
O lado quase cômico, não fosse igualmente trágico, foi quando entrou em defesa das atitudes do presidente de desacato às medidas de prevenção contra a Covid-19, como o desrespeito ao isolamento social e ao uso de máscaras, e o incentivo às aglomerações, práticas nada recomendadas pela OMS e as autoridades sanitárias em todo mundo.
Afirmou o indulgente Pazuello:
– Eu acredito, e ai vem uma posição muito pessoal minha, que o presidente da República ele tem, na cabeça dele, outros pensamentos quando ele tá agindo dessa forma. Ele está, na minha visão, tratando também a parte do psicossocial, a parte da posição do povo em acreditar que isso ai vai passar. Isso aí é uma análise minha, não quero dizer que isso seja uma análise dele. O presidente tem que ver todos os prismas. Eu vi os prismas da Saúde”.
O fato é que Pazuello, em sua passagem funesta pelo Ministério, não viu “prisma” nenhum, muito menos os da Saúde proclamados pela sua soberba.
Os números falam por si mesmo: quando Pazuello assumiu o Ministério, em 16 de maio, o Brasil acumulava 233 mil casos e 15.633 mortes associadas à Covid-19. No dia 15 de março deste ano, quando o substituto do general foi anunciado, o número de casos passava de 11,5 milhões e o de mortes se aproximava de 280 mil, com o país ocupando o segundo lugar entre as nações com mais óbitos na pandemia.
Mais grave é atribuir a Bolsonaro a capacidade de agir em função de algum interesse “psicossocial”, quando as ações e omissões do capitão estiveram cronicamente dirigidas à propagação deliberada do vírus para atingir o estágio da imunidade de rebanho, a despeito do preço em vidas e em sacrifício do povo brasileiro.
O colunista Josias de Souza foi preciso em sua análise do perfil do general: “Ele tem um certo ‘embromation’, que é uma característica dele. Você pergunta A e ele responde B, C, D e vai até o Z, sem fornecer a resposta que você queria obter dele”.
Foi isso.
Se o show de Araújo foi o da impostura e tergiversação, o de Pazuello foi o da mentira e do embuste.
Pagará um preço caro por isso, já deixaram claro os senadores que estão dispostos a apresentar uma conclusão séria e consequente da CPI.
Ao final do depoimento inconcluso, um registro necessário, feito de forma irônica pelo ex-ministro Mandetta, diante de um general que afirmou, presunçosamente, como é de seu feitio, ter deixado o cargo por ter sua “missão cumprida”:
– “Dia D, hora H. Omissão cumprida”.
AZIZ: SESSÃO SERÁ RETOMADA NESTA QUINTA
O presidente da CPI, senador Omar Aziz, comunicou que a Comissão teve seus trabalhos suspensos em razão da sessão do plenário do Senado Federal, cuja ordem-do-dia, iniciada, suspende, regimentalmente, todas as comissões, permanentes ou provisórias, em funcionamento.
O senador e médico Otto Alencar, após atender Pazuello que sentiu-se mal após a suspensão dos trabalhos do colegiado, declarou:
– Nós já fizemos o atendimento. Ele estava muito pálido, tonto. Ele teve uma síndrome vasovagal. O sangue deixa muito o cérebro, perde a consciência, fica tonto, e estava muito pálido, e a pressão caiu também. Deitamos ele no sofá, o sangue refluiu para o cérebro, ele ficou corado, se recuperou, estava respirando muito bem, podia perfeitamente continuar a oitiva. Foi suspenso (o depoimento), mas não foi por nenhuma sequela.
Especialistas informam que a síndrome vasovagal leva a uma situação em que o sujeito não luta, mas não consegue fugir. Aí, a solução é o desmaio, a síncope. Precisamente, o caso de Pazuello, um general. Imagine se estivesse em um campo de batalha…
MAC