Com relação à China, assinala o professor e pesquisador Elias Jabbour no programa Meia Noite em Pequim, pela TV Grabois, existe uma palavra que é recorrente o tempo inteiro: “totalitarismo”.
‘Conceito’ – é entre aspas mesmo, esclarece Elias- inaugurado por Hannah Arendt nos anos 50, no livro ‘As Origens do Totalitarismo’, e desde então usado amplamente para descaracterizar experiências históricas profundas como a experiência histórica da China, ou da União Soviética.
Na terceira parte do livro, como relata Jabbour, Hannah comete uma quebra de tradição do que é mais caro ao movimento comunista internacional do século 20, a luta anticolonial. Nada – enfatiza – é tão expressão da luta anticolonial quanto a Batalha de Stalingrado, lembrando que Hitler tinha como objetivo colonizar o leste europeu e a União Soviética.
A União Soviética foi uma experiência que tinha como objetivo de sua política externa a luta pela descolonização do mundo. Foi uma entidade fundamental na luta contra o imperialismo e o colonialismo, em grande parte os movimentos de libertação nacional foram inspirados na União Soviética, bem como os movimentos antirracistas no mundo inteiro.
Jabbour expõe o primarismo de Hannah Arendt: ela coloca no mesmo saco a União Soviética de Stalin e a Alemanha Nazista, como se fossem duas experiências do mesmo pacote, que devem ser analisadas dentro dos mesmo marcos conceituais.
Não dá para colocar no mesmo balaio povos e estados com objetivos estratégicos completamente distintos, como é o caso da China e União Soviética, diante da Alemanha Nazista.
Ao mesmo tempo, Hannah coloca os Estados Unidos e sua formação como um marco na civilização humana. É no mínimo contraditório: todos sabem que os dez ou quinze primeiros presidentes dos Estados Unidos eram todos senhores de escravos.
Quanto à China, é como destaca Jabbour: um país de 5 mil anos de história, o Estado tem 2.300 anos, fez a maior revolução anticolonial da história segundo a tradição soviética, é o país que mais cresce no mundo há 40 anos e recentemente eliminou a pobreza extrema.
Uma civilização que criou uma série de invenções. O concurso público nasce na China, há 1500 anos ela seleciona os melhores quadros da sociedade para compor sua burocracia.
A China nunca foi imperialista quando governada por chineses. Tem uma tradição de desenvolvimento e planejamento econômico que remonta a 3.000 anos, ela surge como estado para realizar grandes obras para conter enchentes.
E então, alguém chega numa plateia de estudantes e troca uma formação social dessas, uma história dessas, por um conceito oco, totalitarismo, que não cabe para compreender uma sociedade dessas.
Para Jabbour, há uma crise do pensamento ocidental, que passa por não ter conseguido superar o pensamento positivista, a maior filosofia que a burguesia conseguiu criar.
Os assim chamados marxistas ocidentais não conseguem compreender a questão anticolonial e acabam tomando o lado errado o tempo inteiro. Dificilmente você vê intelectuais americanos, europeus, sendo solidários ao povo líbio, ao povo sírio, aos povos oprimidos da periferia.
O positivismo expressa essa necessidade de observar os fenômenos separadamente, na sua caixinha, separação sujeito objeto, e uma das separações mais interessantes é a separação entre liberdade real e liberdade formal.
Jabbour recomenda a seu público uma polêmica entre Adam Smith, que critica o ‘governo autoritário’ no Haiti, se referindo ao governo de escravos libertos, e o filósofo revolucionário Hegel. Que retruca a Smith, não exatamente nessas palavras: você se diz uma democracia que espalha escravidão pelo mundo, e contraditoriamente um regime que aos seus olhos é autoritário, é que é capaz de libertar esse povo.
Então a sabedoria hegeliana de não separar a liberdade real e a liberdade formal é uma chave de explicação fundamental para entender como funcionam sociedades complexas como a chinesa, que não são pautadas por noções civilizatórias ocidentais.
Jabbour lembra a caricatura comumente lançada contra a China: não tem eleição, é partido único, não pode falar. É tudo mentira, ele comenta, acrescentando que a China conseguiu eliminar a pobreza extrema.
Ou seja, liberdade enquanto expressão das possibilidades de realização material de uma pessoa estão sendo criadas na China. Certamente os chineses são muito mais livres que um cidadão colombiano, por exemplo.
Infelizmente, boa parte dos pensadores de esquerda no ocidente hoje se presta a se colocar a serviço dos objetivos estratégicos da Otan. E gostem ou não, As Origens do Totalitarismo, principalmente sua terceira parte, parece ter sido feita de encomenda para os objetivos geopolíticos do imperialismo e seus aliados, sublinha Jabbour.
Ele faz então um apelo pelo uso de conceitos como formação econômico-social, hegemonia, para não quebrar essas concepções que ainda são muito importantes para quem se diz comunista, para quem luta contra o imperialismo, contra a opressão colonial. Ou contra a recolonização. Porque, como Jabbour destaca, as guerras que os americanos promovem pelo mundo, e inclusive a guerra tecnológica contra a China, são guerras coloniais.
Elias Jabbour é professor dos Programas de Pós-Graduação em Ciências Econômicas e em Relações Internacionais da UERJ.