O Conselho Federal da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) ingressou com uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) contra “atos e omissões” do governo federal na “gestão das políticas públicas do setor cultural no Brasil”.
A ação foi apresentada ao Supremo Tribunal Federal (STF), na última quinta-feira (2), com pedido de concessão de tutela de urgência antecipada (quando o juiz antecipa a decisão de mérito).
Segundo a OAB, o setor cultural vem sofrendo com “a inobservância sistêmica, ou aplicação deliberadamente inconstitucional, dos principais mecanismos de fomento e incentivo previstos em lei”. A ADPF também menciona a ocorrência de atrasos e paralisações que inviabilizam o uso da política pública por seus destinatários.
O Conselho Federal da Ordem manifesta preocupação, por exemplo, com a paralisação, para efeitos práticos, do Fundo Setorial do Audiovisual (FSA), principal mecanismo de fomento do setor, lembrando que não há novos editais desde 2019.
“Sem acesso a esse fundo, boa parte da atividade audiovisual, especialmente a de produção independente, se inviabiliza”, destaca a ação.
O documento faz duras críticas em relação à atuação da Ancine (Agência Nacional do Cinema). O texto aponta que, na gestão de programas de fomento, são observados bloqueios institucionais semelhantes aos impostos aos mecanismos da Lei Rouanet. O volume de novos projetos no setor caiu para “uma fração do que era há bem pouco tempo”, usando como pretexto “uma suposta orientação do TCU já afastada pelo próprio tribunal”.
“A pretexto de cumprir determinações do Tribunal de Contas da União, que o próprio tribunal nega ter feito, a Secretaria Especial de Cultura, que deveria zelar pelo apoio, incentivo, valorização e difusão das manifestações culturais, promove, sem constrangimentos, o estrangulamento econômico e artístico do setor. O faz, não raro, acompanhado de declarações públicas as mais deletérias, que em nada condizem com a função constitucional desses agentes”, diz o texto.
“Sustar um canal de investimentos públicos previsto em lei, sem uma motivação juridicamente sólida, viola direitos culturais de caráter fundamental. Isso restringe as condições objetivas para a produção de novas obras brasileiras, as mesmas que nos termos do art. 216 da Constituição integrariam, caso realizadas, o patrimônio cultural compartilhado por toda a sociedade”, argumenta a OAB.
Outra irregularidade apontada pelo Conselho Federal diz respeito ao passivo de prestação de contas existente na Secretaria Especial de Cultura e na Ancine, que se deve não aos produtores, que em sua imensa maioria realizaram os projetos e prestaram contas nos termos da Lei. Segundo o documento, é a administração pública que deixa de concluir os processos de análise, em descumprimento do Artigo 37 da Constituição Federal.
De acordo com a ADPF, há casos de prestações pendentes de análise há mais de uma década, cujos proponentes ainda hoje são instados a apresentar documentos fiscais de 15 anos atrás, perpetuando uma situação de insegurança jurídica. Para sanar a situação, a OAB pleiteia o reconhecimento da aplicação da prescrição quinquenal, tanto para a guarda de documentos quanto para a prestação de contas de recursos dos projetos.
O documento lembra ainda que a cota de tela nas salas de exibição cinematográfica não foi implementada durante todo o ano de 2019, o que se repetiu nos anos seguintes, em prejuízo da vigência da cota de tela prevista na Medida Provisória 2.228-1.
A OAB denuncia que a reprovação sumária pela Secretaria Especial de Cultura de projetos que cumprem todos os requisitos legais, muitos com anos de execução dentro do mesmo arcabouço normativo e com patrocinadores estáveis, tem ameaçado a continuidade de programas essenciais à formação artística em diversas áreas. Na peça encaminhada ao STF, o Conselho Federal observa que, em certos casos, a decisão se dá “por critérios absolutamente ilegais, que vão da censura velada ao dirigismo explícito, por vezes com indisfarçável viés religioso”.
“Essa postura constitui uma violação frontal não apenas à extensa série de dispositivos constitucionais que tutelam a livre manifestação das ideias, mas ao próprio princípio da laicidade do Estado, ao qual todos os atos de qualquer agente público obrigatoriamente se vinculam”, assinala a ADPF.
O documento segue, apontando que atos similares ocorrem na Fundação Palmares, instituição voltada à promoção da afro-brasilidade, onde o presidente do órgão [Sérgio Camargo], fundamentado em portaria editada em novembro de 2020, baniu de documentos e arquivos oficiais referências a autores e personalidades amplamente reconhecidas como essenciais para a memória da cultura negra, por motivos puramente político-ideológicos.
“Em outras palavras, age como se acreditasse que detém competência legal para adulterar registros e repositórios públicos segundo a própria vontade, como se tais arquivos lhe pertencessem, pessoalmente. E ainda fazê-lo ao arrepio dos consensos doutrinários mais comezinhos do campo de estudo que constitui a própria razão de ser de seu cargo: o combate ao racismo e às desigualdades raciais. Em nosso ordenamento jurídico constitucional, isso é inadmissível”, assinala o texto.
A OAB avalia que os impactos negativos da política desenvolvida pelo governo de Jair Bolsonaro na cultura são enormes, lembrando que o setor movimenta algo em torno de 2,5% do PIB (Produto Interno Bruto) e emprega mais de 5 milhões de pessoas. Para a Ordem, do ponto de vista do desenvolvimento econômico do país, a interrupção ou redução drástica da produção cultural equivale a solapar as bases de um dos poucos setores intensivos em capital intelectual nos quais o país é competitivo.
O Conselho Federal aponta que o objeto da ação é o reconhecimento dos atos em série do governo atual “em clara violação a diversos preceitos fundamentais”, tais como os princípios da liberdade de expressão, liberdade de iniciativa, a cidadania, a dignidade da pessoa humana e os princípios da separação de poderes e da administração pública.