O Padre Júlio Lancellotti, coordenador da Pastoral do Povo da Rua de São Paulo, contestou nesta quarta-feira (5) a justificativa do prefeito Ricardo Nunes (MDB) para retirar barracas de pessoas que vivem nas calçadas do Centro da cidade.
O prefeito disse “que rua não é endereço e barraca não é lar”, além de argumentar que seus ocupantes ficam expostos ao sol e à chuva. “Barraca não é lar, mas onde está a moradia?”, questionou padre Júlio, em entrevista ao portal Uol.
O padre não aceita a explicação do prefeito de que as pessoas em situação de rua podem ir para os Centros de Acolhida municipais: “Albergue também não é moradia. A pessoa tem horário para entrar e sair, não pode receber visitas, a refeição é marmitex, o lugar é infestado de pernilongos. Isso é moradia?”, disse. Ele também não vê como solução as chamadas casas modulares.
“Só vai para essas casas quem tem menos de dois anos na rua e é preciso já estar na rede de atendimento”, diz o padre Júlio. “Quem está na barraca não é elegível pra esse programa”, continuou.
Sobre a afirmação de Ricardo Nunes de que está ampliando o número de vagas nos albergues e fazendo mais casas modulares, ele critica, dizendo que nesse caso o prefeito aplica um “gerúndio infinito”.
Equipes da prefeitura têm retirado as barracas e pertences de pessoas em situação de rua com base na decisão da Justiça que, na última sexta-feira (31), derrubou a liminar que impedia essa ação.
O coordenador da Pastoral do Povo da Rua não acha que esse despacho tenha mudado radicalmente o quadro. “Enquanto vigorou, a liminar só tornou mais discreta a ação da prefeitura. Mas eles continuaram fazendo. Essa é uma prática regular, recorrente, contínua”, diz padre Júlio.
“Toda essa história de que as barracas são tiradas com cuidado e que os donos recebem o contralacre é mentira. Eles recolhem de forma violenta e levam para o lixo”.
Padre Julio Lancellotti acredita que a solução para o problema é a locação social. “Mas algo que não seja institucional, a própria pessoa tem que escolher”, diz ele. “Uma unidade de hotel como a Prefeitura está pagando hoje custa R$ 4 mil por mês. Os grupos familiares com esse dinheiro resolvem essa questão muito melhor, porque todas essas ações são de tutela”.
O religioso não concorda com o argumento do prefeito de que as barracas estão obstruindo a passagens de pedestres. “Quem teve problema de passar na calçada da Luz, que é uma das maiores de São Paulo? É uma desculpa para ganhar adeptos”, afirma.
“Por trás de tudo isso, qual o jogo de interesse? A quem eles beneficiam? É um interesse da especulação imobiliária e de fazer um jogo de higienismo”. Para o religioso, se houvesse alguma alternativa propositiva para essas pessoas, elas aceitariam. “Não é agradável morar em uma barraca na rua, sem banheiro”, diz padre Júlio.
TRÉGUA
Júlio Lancellotti afirmou ter pedido ao prefeito uma “trégua” na ação ao menos durante a Semana Santa. Ele também afirmou que a gestão municipal não tem informado como e onde os pertences podem ser recuperados.
“Eu acabei de falar com o prefeito Ricardo Nunes, solicitando que, por ocasião da Semana Santa, haja uma trégua e que parem de arrancar as barracas da população em situação de rua.”
Segundo o padre Julio, não há pedido para desmontagem. As barracas estão sendo arrancadas.
“O prefeito diz que estão pedindo para retirar. Não é isso que estamos vendo. Eles arrancam tudo, tiram tudo”.
No decreto, só é permitido recolher objetos “que caracterizem estabelecimento permanente em local público, principalmente quando impedirem a livre circulação de pedestres e veículos, tais como camas, sofás, colchões e barracas montadas ou outros bens duráveis que não se caracterizem como de uso pessoal”.
Na última segunda (3), após liberação da Justiça, a gestão municipal retomou a retirada das barracas que estiverem armadas durante o dia em locais públicos, como calçadas e praças.
A medida estava suspensa desde fevereiro, por uma decisão da juíza Juliana Brescansin Demarchi Molina, da 7ª Vara da Fazenda Pública de São Paulo. Ela tinha acatado uma ação popular movida por Guilherme Boulos (PSOL), padre Julio Lancelloti e de outras seis pessoas.
PESSOAS EM SITUAÇÃO DE RUA
Um levantamento feito por pesquisadores da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) aponta que 52.226 pessoas viviam nas ruas da capital paulista até fevereiro deste ano.
A pesquisa do Observatório Brasileiro de Políticas Públicas com a População em Situação de Rua (POLOS-UFMG), com dados do CadÚnico, indica um aumento de 8,2% em relação a novembro de 2022, quando outro estudo foi feito.
Ele levou em consideração apenas as pessoas que estavam registradas no CadÚnico. O pesquisador André Luiz Dias, coordenador do POLOS-UFMG, explica que São Paulo sempre foi o município com maior concentração de pessoas em situação de rua desde o início do registro em CadÚnico, em 2012.
“[São Paulo] saiu de 3.842 registros em 2012 para os atuais 52.226 registros de pessoas em situação de rua.” Os dados são encaminhados pela Prefeitura de São Paulo para o Ministério de Desenvolvimento Social para repasse de recursos ao município.
A pesquisa também leva em conta que os números possam estar subnotificados em até 35%, porque a taxa de atualização do CadÚnico em SP é muito baixa. A taxa de atualização da capital está em 63,3%, sendo que a média nacional é de 81,2%.
Em todo o país, 206 mil pessoas estavam em situação de rua, o que mostra um crescimento de 7,4% desde o último levantamento. O estado de São Paulo concentra 86.782 mil pessoas dessa população. Ou seja, quase metade da população em situação de rua do Brasil vive em cidades paulistas.
O coordenador do POLOS-UFMG explica que no último trimestre de 2022 o governo de Jair Bolsonaro (PL) exigiu medidas para atualização do CadÚnico, e os números pararam de ser atualizados. Já o governo Lula (PT), segundo ele, voltou a estimular o cadastro, e os números voltaram a crescer.
“Nós não sabemos se, de fato, mais pessoas passaram a viver nas ruas a partir de novembro. O que nós vimos é que ano passado, simplesmente em três meses (outubro, novembro e dezembro), mais de 25 mil pessoas haviam sido sumariamente excluídas do CadÚnico. Agora, aos poucos estão voltando a aparecer”, disse André Luiz Dias.
A situação de rua atinge majoritariamente a população negra no nosso país. A cada 10 pessoas em situação de rua, sete são negras.