O Clube Militar foi fundado pela oficialidade abolicionista, democrática e nacionalista das Forças Armadas. Seu primeiro presidente foi o marechal Deodoro da Fonseca, o Proclamador da República; seu primeiro vice-presidente foi Benjamin Constant, luminar de várias gerações de militares e civis, primeiro ministro da Guerra da República, chamado, na Constituição de 1891, “O Fundador da República Brasileira”.
Por isso, a nota do atual presidente do Clube Militar, Eduardo José Barbosa, em defesa de Daniel Silveira e de seus crimes contra a democracia – que ocasionaram sua prisão pelo Supremo Tribunal Federal (STF) e a confirmação desta pela própria Câmara dos Deputados – é uma agressão à história da instituição que o mesmo general Barbosa preside.
Daniel Silveira é um miliciano, um marginal, um exemplar do lixo social que, infelizmente, abunda, nos últimos tempos, em certas áreas deterioradas do país, assim como abundavam nas SA de Adolf Hitler.
Nada mais oposto ao brio militar, às funções das Forças Armadas e às tradições do Clube Militar do que esse meliante contumaz.
Barbosa sabe disso. Tanto sabe que pretende defender o miliciano “sem entrar no mérito das palavras dirigidas aos integrantes do STF pelo deputado Daniel Silveira” (v. Nota completa, Clube Militar, 19/02/2021).
Como o presidente do Clube Militar pretende defender esse bandido “sem entrar no mérito” de suas palavras?
Não são suas palavras que estão em julgamento?
Não é o teor criminoso dessas palavras que provocou a prisão do delinquente?
Então, por que o general Barbosa quer defendê-lo – ou seja, defender as palavras de Silveira – sem entrar no mérito dessas palavras?
Porque sabe que essas palavras são indefensáveis. E, como disse o deputado Fábio Trad (PSD-MS), na sessão da Câmara que aprovou a prisão de Silveira, “a palavra é uma decisão. Dizer é um ato decisório, e a palavra no Parlamento é um ato preordenado, pensado, ainda que impulsivo, e não pode ser salvo-conduto para desfiar um rosário de práticas delitivas, crimes que trafegaram por todas as avenidas, por todas as vielas do Código Penal e de leis esparsas” (v. HP 19/02/2021, Câmara, por ampla maioria, mantém deputado golpista preso e derrota bolsonarismo raiz).
O general Barbosa sabe, portanto, que está tentando defender o indefensável. Por isso, diz que suas considerações são “sem entrar no mérito das palavras dirigidas aos integrantes do STF pelo deputado Daniel Silveira”. Exatamente para fugir ao fato de que está defendendo o que é impossível defender. Com essa manobra desajeitada, de eliminar o mérito, mas não as palavras que contêm esse mérito, pretende resolver o problema de defender o indefensável.
Pois que palavras são essas?
A imprensa – inclusive, nós – já publicamos essa enxurrada de crimes contra a democracia, a Constituição e o STF, mais de uma vez.
Ou não é crime ameaçar um ministro do STF com “uma surra bem dada, nessa sua cara, com um gato morto até ele miar”?
Ou dizer, depois de pregar a volta do AI-5 (ou seja, da tortura, dos assassinatos, das cassações, das perseguições políticas, da ditadura), para os membros do STF: “Claro que vocês serão presos, porque vocês serão investigados, então vocês não terão mais essa prerrogativa”?
Ou não é crime a pornografia (aliás, pornofonia), espargida como lama sobre autoridades (e mesmo que não fossem autoridades, mas apenas cidadãos)?
É isso o que Barbosa resolveu defender em sua nota, usando seu mandato de presidente do Clube Militar: pornografia fascista e atentados às instituições.
Nos dispensamos de reproduzir mais trechos do vídeo de Silveira, pois achamos que ele já está suficientemente divulgado – e porque nosso estômago, para a sujeira, tem lá o seu limite.
A nota de Barbosa é constituída por nove perguntas falsas. Na realidade, não são perguntas, mas imputações. Seu denominador comum é que a “direita” (sic) é perseguida, enquanto a “esquerda” é privilegiada com a impunidade.
A extrema-direita, no Brasil, está no poder.
Mas o presidente do Clube Militar, apesar de saber disso, diz que é a direita (e ele está se referindo ao bolsonarismo, que ocupa o Planalto e o governo federal) que é perseguida.
A questão é, evidentemente, outra. E essa é, justamente, a que o general esconde:
Qual foi o político ou liderança (ou “jornalista”, diz Barbosa), seja de esquerda, de centro ou mesmo de direita não fascista, que fez algo longinquamente parecido ao que fez o miliciano Silveira?
A resposta é fácil: nenhum. Nem político, nem liderança, nem jornalista. Ninguém fez nada parecido, ninguém perpetrou um dos crimes de Silveira, portanto, somente Silveira foi preso por cometê-los.
Quem fez isso foi, somente, um desclassificado bolsonarista. Que Barbosa, em má hora, resolveu defender – usando o prestígio de uma de nossas instituições mais históricas e patrióticas.
Ou seja, Barbosa pretende esconder que Silveira cometeu crimes – e, portanto, passar esses crimes como atividade política legítima.
Pode ser que ele não tenha consciência do que está fazendo, mas nem por isso deixa de ser um mau uso de seu cargo de presidente do Clube Militar.
O cunho falso das “perguntas” de Barbosa e sua deformação tendenciosa (ou seja, o pouco apego à verdade) estão claros no conjunto delas, porém, mais ainda, na sexta dessas “perguntas”:
“Por que os ilustres Ministros do STF pensam que apoiar o Regime Militar que foi instaurado a partir de 1964 é crime quando uma grande parcela da população tem saudades daquela época? A Democracia que temos hoje no Brasil começou em 1964….”
Tem gente no Brasil que ainda tem saudades da escravidão. Nem por isso deixa de ser crime defender – e, pior ainda, praticar – a escravidão.
Porém, o mais revelador é o conteúdo da última frase: “A Democracia que temos hoje no Brasil começou em 1964”.
O golpe de Estado de 1º de abril de 1964 rasgou a Constituição, mutilou e depois fechou o Congresso, cassou ministros do STF, expulsou das Forças Armadas todos os que foram contra a ditadura, transformou universidades e escolas em um campo de batalha, interveio nos sindicatos, instalou a censura às manifestações artísticas e acabou com a liberdade de imprensa e expressão.
Depois do AI-5, em 13 de dezembro de 1968, o regime promoveu um banho de sangue no Brasil, uma ditadura terrorista, com base na tortura e no assassinato, que durou 10 anos (v. HP 16/04/2014, Figuras e figurinhas em 1964: antes e depois do golpe contra o Brasil).
Por que se instalou uma ditadura?
Porque não era possível, aos golpistas, conviver com a democracia.
Porque a política implementada a partir de 1964 era, em geral, contrária aos interesses do povo brasileiro, portanto, impossível de ser instaurada mediante métodos democráticos – a exceção, a política econômica do II PND, hoje tão vilipendiada pelos bolsonaristas, serve para confirmar a regra.
Da mesma forma, a explosão popular que derrubou a ditadura e levou à Constituinte e à Constituição de 1988, às grandes conquistas populares da década de 80 do século passado, foi uma demonstração de que o regime que durara, ao todo, 21 anos, fora estabelecido contra a democracia, contra o povo brasileiro.
Por isso, na época, era consenso, inclusive entre os oficiais-generais, que a ditadura deveria acabar, para dar lugar à democracia no Brasil.
Somente elementos indisciplinados, toscos e marginais do tipo Bolsonaro propugnavam pela continuação da ditadura – mas seu “protesto” não passou de um esperneio (v. HP 16/08/2018, Terrorismo de baixa potência).
É lamentável que um oficial muito mais disciplinado venha, agora, apoiar o lixo bolsonarista – e com o argumento, que somente serve para colocá-lo em pungente ridículo, de que “a Democracia que temos hoje no Brasil começou em 1964”.
Por essa lógica, certamente que os escravos conheceram a liberdade quando foram capturados e enfiados dentro de um navio negreiro…
C.L.