A live mentirosa de Bolsonaro contra as urnas eletrônicas foi montada sem nenhum critério, buscando boatos de internet, sem checar as informações e, por fim, ignorando alertas de peritos criminais da Polícia Federal (PF) sobre erros nos dados.
A live foi ao ar no dia 29 de julho com um monte de falsidades como se fossem provas contra as urnas eletrônicas.
As informações fazem parte do relatório da PF com depoimentos de alguns dos envolvidos no caso. A PF propôs investigar Bolsonaro no inquérito das milícias digitais.
De acordo com a delegada da Polícia Federal, Denisse Ribeiro, Bolsonaro teve uma atuação “direta e relevante” para gerar desinformação contra o sistema eleitoral e as urnas eletrônicas.
De acordo com a delegada, Bolsonaro aderiu “a um padrão de atuação já empregado por integrantes de governos de outros países”. O descrédito sobre as eleições foi o método principal de Donald Trump, ex-presidente dos EUA, para negar o resultado eleitoral em que saiu derrotado e incitar a invasão violenta ao capitólio, em 6 de janeiro, por uma horda de apoiadores tresloucados, que resultou na morte de 5 pessoas.
“Nesse aspecto específico, este inquérito permitiu identificar a atuação direta e relevante do Exmo. Sr. Presidente da República Jair Messias Bolsonaro na promoção da ação de desinformação, aderindo a um padrão de atuação já empregado por integrantes de governos de outros países”, diz a chefe do inquérito no relatório.
“Em resumo, a tive presidencial foi realizada com o nítido propósito de desinformar e de levar parcelas da população a erro quanto à lisura do sistema de votação, questionando a correção dos atos dos agentes públicos envolvidos no processo eleitoral (preparação, organização, eleição, apuração e divulgação do resultado), ao mesmo tempo em que, ao promover a desinformação, alimenta teorias que promovem fortalecimento dos laços que unem seguidores de determinada ideologia dita conservadora”, diz o texto.
“Significa dizer que há identificação de que esse grupo de pessoas atua, com dolo, consciência e livre vontade, na produção e divulgação, por diversos meios, de narrativas sabidamente não verídicas ou sem qualquer lastro concreto, com o propósito de promover mais adesão de apoiadores e outros difusores aos interesses dessa organização”, continua.
A delegada ainda enviou o caso para a Controladoria-Geral da União (CGU) e o Ministério Público Federal (MPF).
Os depoimentos apontaram que o tema da live transmitida simultaneamente nas redes sociais e pela TV Brasil foi escolhido pelo próprio Bolsonaro.
O então ministro-chefe da Casa Civil, Luiz Eduardo Ramos, organizou o evento e delegou a responsabilidade da coleta e produção de conteúdo ao ex-assessor especial da pasta, Eduardo Gomes da Silva. Ele é quem aparece ao lado de Bolsonaro e apresenta os vídeos.
Gomes negou ter conhecimento das áreas de informática, programação, matemática ou estatística, nem sobre o funcionamento das urnas eletrônicas. Para subsidiar a apresentação, declarou ter procurado por “vídeos e assuntos da internet”.
Ele admitiu que “não checou a veracidade dos fatos” e se justificou dizendo que este “não era o objetivo” da live.
O presidente sequer procurou o resultado das investigações da Polícia Federal sobre uma denúncia de fraude no Maranhão, em 2008, apresentada por meio de uma notícia antiga da TV. O caso surgiu com uma coligação derrotada no pleito e depois foi descartado em um laudo da corporação.
A PF menciona diversas vezes, nos depoimentos, um vídeo falso publicado por Naomi Yamaguchi que mostra um suposto “especialista” — que se diz “autodidata” e alega possuir uma empresa de informática — argumentando que um algoritmo teria manipulado votos nas eleições de 2014.
A prova seria uma suposta alternância de votos entre Dilma Rousseff (PT) e Aécio Neves (PSDB), o que é falso, versão originada de um cálculo mirabolante completamente equivocado e que a planilha não mostra nada disso.
Dois peritos criminais da PF participaram de uma reunião prévia, no dia 23, com Bolsonaro, Ramos e Gomes, entre outros. Nela, alertaram para o fato de que havia inconsistências no método e pediram que a planilha fosse enviada para análise mais aprofundada.
O ministro da Justiça e Segurança Pública, Anderson Torres, também prestou explicações sobre a sua participação na live de Bolsonaro. Ele aparece lendo trechos de três relatórios produzidos pela PF por meio dos testes públicos de segurança, quando o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) convoca especialistas para que estes tentem quebrar mecanismos de segurança da urna e proponham melhorias no sistema.
Torres declarou que não fez a leitura da íntegra dos documentos antes de dar a sua contribuição no evento porque “eram extensos e de conteúdo técnico e de difícil entendimento para aqueles que não são da área especializada”.
Os relatórios da PF rechaçam possibilidade de fraude ou adulteração no resultado da eleição e os problemas identificados nos testes públicos são depois resolvidos pelo TSE.
A PF concluiu em seu relatório que a preparação da live foi feita de “maneira enviesada” para espalhar desinformação.
“Restou caracterizado pelas narrativas das pessoas envolvidas que a chamada live presidencial foi um evento previamente estruturado com o escopo de defender uma teoria conspiratória que os participantes já sabiam inconsistente”, diz trecho do documento.
O relatório da PF foi obtido e divulgado pelo Estadão.
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