No Supremo Tribunal Federal (STF), o ministro Alexandre de Moraes, na quinta-feira (21/11), “abriu divergência” (ou seja, discordou) do voto de Dias Toffoli, no dia anterior (v. HP 20/11/2019, No STF, Toffoli revela que Flávio Bolsonaro não está em julgamento).
Disse, no julgamento, o ministro Alexandre de Moraes:
“Os direitos fundamentais não podem servir como verdadeiro escudo protetivo para prática de atividades ilícitas; não é essa a finalidade das garantias individuais, das liberdades públicas, possibilitar uma verdadeira redoma protetiva para que os criminosas possam atuar.”
Existe mais de uma pessoa a quem poderia se aplicar, no Brasil, essa carapuça de usar supostos direitos fundamentais como escudo para o crime.
Mas é óbvio, no julgamento do STF de quarta e quinta-feira, que isso é a cara de Flávio Bolsonaro, a quem Dias Toffoli concedeu uma liminar para impedir as investigações do Ministério Público do Rio de Janeiro e da Polícia, às custas de paralisar investigações em todo o Brasil.
Antes da sessão ser suspensa – será retomada na quarta-feira (27/11) -, depois do questionamento de vários ministros (Rosa Weber, Edson Fachin e Marco Aurélio Mello), além do próprio Alexandre de Moraes, o presidente do Supremo, Dias Toffoli, admitiu que a liminar que beneficiou Flávio Bolsonaro irá cair:
ALEXANDRE DE MORAES [respondendo ao ministro Edson Fachin]: Pela minha tese, pela minha conclusão, a liminar não subsiste mais.
DIAS TOFFOLI: A liminar… a liminar, por óbvio, na medida em que o meu voto de mérito em relação a esse aspecto é no sentido de permitir o compartilhamento, dentro dos padrões do sistema, a liminar cai.
EDSON FACHIN: Apenas a diferença está no plano da premissa. Se se entender que o compartilhamento do Coaf/UIF não integra o objeto dessa representação, também cai, embora o sentido seja o de reconhecer que houve uma expansão, digamos assim, demasiada do objeto da repercussão geral. No outro sentido, ela cai como consequência do voto de mérito.
É algo desavergonhada a tentativa de Toffoli de atribuir a seu voto a queda da liminar que ele mesmo concedeu – e que foi um dos maiores escândalos jurídicos que já houve neste país.
Mas, se ele concordou que a liminar irá cair de qualquer jeito, é porque ela é insustentável.
Note-se que a primeira hipótese de Fachin (“houve uma expansão, digamos assim, demasiada, do objeto da repercussão geral”) significa que Toffoli, que é presidente da instância máxima da Justiça, passou por cima da lei.
Além disso, não somente paralisou investigações em todo o Brasil, como deformou completamente um julgamento do Supremo, para impedir que as irregularidades de Flávio Bolsonaro fossem investigadas.
O STF está julgando se é constitucional a Receita (e também a UIF – ex-Coaf –, o Banco Central e outros departamentos) enviar casos suspeitos – isto é, as informações desses suspeitos – para a Polícia ou para o Ministério Público, sem prévia decisão judicial.
Na quarta-feira, Toffoli, depois de horas e horas de péssima leitura de um voto confuso, manifestara-se a favor de que somente “informações e movimentações globais” – isto é, aqueles dados que servem pouquíssimo para qualquer investigação – podiam ser passadas para a Polícia e o Ministério Público sem autorização judicial.
O voto de Toffoli foi tão confuso que fez um dos ministros, Luís Roberto Barroso, dizer que era necessário chamar um “professor de javanês” para explicá-lo. A referência é ao conto “O homem que sabia javanês”, de Lima Barreto, em que um vigarista sobe na vida dando aulas de uma língua que desconhecia tanto quanto seus alunos.
Quanto ao discretíssimo ministro Fachin, dessa vez, ao ser perguntado pelos repórteres sobre o que entendeu do voto de Toffoli, algo cansado, retrucou: “Tem uma pergunta mais fácil?”.
O resultado é que depois de falar horas e horas na quarta-feira, Toffoli divulgou, na quinta, um documento explicando o seu voto da véspera.
Toda a confusão do dia anterior, disse um jurista, era um modo de manter a liminar que beneficiou Flávio Bolsonaro.
O interessante é que quase todos os ministros não gostaram da tentativa.
O documento da quinta-feira, segundo Toffoli, seria para “explicar as premissas” de seu voto da quarta-feira. Na verdade, ele tentou um recuo, mais aparente que real, em relação à posição da véspera, mantendo a impossibilidade dos órgãos de investigação (Polícia e Ministério Público) consultarem os órgãos de inteligência e fiscalização (Coaf/UIF, Receita) – e restringindo as informações que podem ser passadas sobre os suspeitos.
Em suma, o documento era mais um pergaminho escrito em javanês.
Alexandre de Moraes demorou pouco tempo para demolir (não estamos exagerando) o voto de Toffoli, que, incomodado, interrompeu várias vezes para esclarecer que sua posição não era bem aquela, etc. Disse o ministro Alexandre de Moraes:
1) Em relação à Receita:
“A prova obtida pela Receita Federal no procedimento administrativo fiscal é lícita ou ilícita? Tanto é lícita que permite o lançamento definitivo do tributo [isto é, a cobrança de imposto]. Se a prova é lícita, foi obtida mediante procedimento regular, garantido o contraditório, com o contribuinte que será o réu na ação, é a típica prova emprestada, lícita.
“Não há nenhuma inconstitucionalidade, nenhuma ilegalidade no compartilhamento entre Receita e Ministério Público de todas as provas, todos os dados necessários para a conformação e lançamento do tributo.”
2) Sobre a UIF/Coaf:
“Em princípio, a atuação de coleta de dados da UIF não muda se é a pedido ou espontaneamente. Até porque, se alguém pede, ela é um banco de dados pré-existente. A pergunta é: ‘UIF, o que você tem em relação a isso?‘”
E exemplificou com os pedidos feitos ao Coaf nas investigações sobre o crime organizado, quando era secretário de Segurança de São Paulo.
SEM LEI
Dias Toffoli acedeu a um pedido de Flávio Bolsonaro e o incluiu no caso que está sendo julgado – que diz respeito à sonegação fiscal dos donos de um posto de gasolina no interior de São Paulo.
Como Flávio Bolsonaro não tinha queixa contra a Receita, mas contra o Coaf (hoje UIF) – que detectou suas transações, digamos, anômalas, e as de seu “motorista”, Fabrício Queiroz – o resultado foi a ampliação do julgamento ao Coaf, ao Banco Central, à CVM e a todo e qualquer órgão fiscalizador que possa detectar algum indício de lavagem de dinheiro obtido ilegalmente – até às joalherias, como lembrou o ministro Alexandre de Moraes, pois elas também são obrigadas a relatar compras suspeitas.
É isso o que o ministro Fachin chamou de “uma expansão, digamos assim, demasiada do objeto da repercussão geral”. Ou a ministra Rosa Weber, ao frisar que, nos autos do caso que estava sendo julgado, não havia nem uma linha, nem sequer uma linha, sobre o Coaf/UIF.
Com a liminar concedida para impedir as investigações sobre Flávio Bolsonaro, dezenas de milhares de investigações no país – 935 no Ministério Público Federal – estão paradas. São investigações sobre corrupção, tráfico de drogas, sonegação, etc. & etc.
Toffoli não tinha base legal alguma para fazer isso. Somente a vontade de bajular Jair Bolsonaro.
A base legal era tão inexistente que, na quinta-feira, ele mesmo disse que a liminar cairá, inclusive de acordo com o seu voto.
Mas, se é assim, o que Toffoli está reconhecendo?
Que concedeu uma liminar ilegal – e somente para beneficiar Flávio Bolsonaro?
Pode ser que seja cedo demais para soltar um ou dois foguetes, mas parece existir algo auspicioso: a reação do conjunto do STF a essa tentativa indecente de conchavo com Bolsonaro ao preço de achincalhar a lei.
De qualquer modo, esperemos o resultado final do julgamento.
C.L.