Previdência dos brasileiros sob risco
Chefe da Casa Civil está oferecendo milhões por voto contra Previdência, dizem líderes partidários
Na quarta-feira à noite, Bolsonaro ocupou a TV – não por muito tempo, porque, felizmente, ele não consegue articular mais que uma ideia e meia – para mentir sobre a Previdência e a “reforma” que pretende.
1) “Se nada for feito o país não terá recursos para garantir uma aposentadoria para todos os brasileiros”.
Não existe ainda, infelizmente, aposentadoria para todos os brasileiros.
Mas o que a “reforma” de Bolsonaro quer estabelecer é, precisamente, que os brasileiros não se aposentem ou que recebam, depois de envelhecer, proventos de fome, em vez de aposentadorias.
Portanto, o que ele quer não é “garantir uma aposentadoria para todos os brasileiros”, mas tirar a aposentadoria – ou rebaixá-la – daqueles brasileiros que têm direito a ela.
Quanto à sustentabilidade do sistema atual, ela está plenamente garantida – não apenas por suas fontes de financiamento ou porque as aposentadorias são despesas obrigatórias, mas também por uma questão ainda mais básica: é o próprio governo que emite a moeda na qual as aposentadorias são pagas.
O que coloca as aposentadorias em risco é a política do governo Bolsonaro, de afundar economicamente o país, e a sua tentativa de acabar com a Previdência Social, com a previdência pública.
2) “Sem mudanças o governo não terá condições de investir nas áreas mais importantes para as famílias como saúde, educação e segurança”.
As aposentadorias são parte essencial do mercado interno, isto é, do dinheiro disponível para o consumo.
Elas, portanto, são uma das bases para o crescimento – e, portanto, do aumento de verbas disponíveis para a saúde, educação e segurança.
O que impede que haja mais recursos para esses setores não é a Previdência, mas as transferências ao setor financeiro, sob a forma de juros – transferências que Bolsonaro quer continuar a fazer, estrangulando o Orçamento do governo.
Tanto assim que escolheu, como ministro da Economia, um típico parasita do setor financeiro, incapaz, em toda a sua carreira, de qualquer empreendimento produtivo.
Aliás, qual é o plano de investimento do governo Bolsonaro para a saúde? Ou para a educação? Ou para a segurança?
Bem, são apenas algumas perguntas…
3) “Temos certeza que a nova previdência vai fazer o Brasil retomar o crescimento, gerar emprego e principalmente a reduzir a desigualdade social, porque com a reforma os mais pobres pagarão menos”.
Bolsonaro, para começo de conversa, não tem certeza de nada. Apenas repete alguns chavões, como um papagaio descerebrado.
Além disso, a relação da Previdência com o crescimento é a oposta: retirar R$ 1 trilhão da Previdência, como diz que quer fazer o ministro da Economia, Paulo Guedes, é encolher o mercado interno – a possibilidade de produzir, portanto – em R$ 1 trilhão.
Até porque é óbvio qual seria o destino desse R$ 1 trilhão: o setor financeiro, parasitário, da economia.
A “reforma” da Previdência de Bolsonaro nada tem a ver com “crescimento”, “gerar emprego” – e, muito menos, “reduzir a desigualdade social”. Exceto em direção e sentido oposto.
Não é verdade que os pobres “pagariam menos”. Essa mentira apenas é um modo de esconder que eles ganhariam menos.
Logo, a desigualdade social aumentaria – e o rebaixamento ainda maior da renda seria um obstáculo extra para o crescimento, e, portanto, para gerar empregos.
Aliás, não somente o governo sabe de tudo isso, como escancarou que sabe, com sua oferta de suborno para que parlamentares votem a favor desse estupro (v. Bolsonaro oferece R$ 40 milhões a deputados que votarem a favor do desmonte da Previdência e Major Olímpio: “é criminosa” a oferta de R$ 40 milhões por voto).
Seria a primeira vez que, no Brasil, há uma tentativa de suborno para aprovar algo que beneficia o povo…
A DISCUSSÃO
O ataque de Guedes e Bolsonaro contra a Previdência passou na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara – o que, apesar dos atropelos, quer dizer apenas que a maioria dos deputados da comissão acharam que era admissível que ele fosse analisado pela Casa – com um desgaste e desmoralização inéditos.
Pelo menos não nos lembramos de algo semelhante na CCJ – nem encontramos ninguém que lembrasse.
Normalmente – ou seja, se fosse um projeto ou emenda constitucional normal – sua tramitação real, verdadeira, começaria agora, com o exame de seu conteúdo. A passagem pela CCJ, em quase todos os casos, é um trâmite mais formal do que real.
Entretanto, não foi o caso da emenda constitucional votada na sessão da CCJ de terça-feira.
Se existe algo que ficou desmoralizado, durante a discussão na CCJ, foi a falcatrua de que a necessidade da “reforma” da Previdência era para combater privilégios.
Que privilégio a emenda de Guedes suprime?
Nenhum. Rigorosamente, trata-se de um ataque aos que trabalham – e, muitas vezes, também aos que estão na miséria.
No aperto – ou, se o leitor preferir uma expressão mais elegante: em meio ao embate – até o vice-líder do governo, o quase deputado Darcísio Perondi (na verdade, um suplente, um ex-deputado que não foi reeleito após sua atuação em apoio à “reforma” de Temer), confessou que o ataque é contra os mais pobres (v. Vice-líder do governo admite na CCJ que ‘reforma’ da Previdência sacrifica os mais pobres).
O projeto de Guedes e Bolsonaro passou na CCJ às custas de expor que o governo não tem qualquer base real, racional, social – ou seja, que diga respeito aos interesses do país e do povo – para propor esse crime.
Não é uma figura de linguagem.
A emenda constitucional de Guedes e Bolsonaro acaba, rigorosamente, com a previdência pública, com o direito à aposentadoria, com aquilo que os povos civilizados – inclusive nós, brasileiros – chamam, há muito, por esse nome.
Não estamos, aqui, falando da famigerada “capitalização” – essa, até o próprio presidente da Câmara, Rodrigo Maia, garante que não passa (“O sistema chileno não vai ser aprovado aqui na Câmara dos Deputados”, disse Maia).
Nem estamos nos referindo aos aspectos aparentemente mais escandalosos do projeto: o rebaixamento (de um salário mínimo para R$ 400,00) dos benefícios para os idosos mais pobres – aqueles cuja renda per capita familiar não chega a ¼ do salário mínimo – ou à extinção, devido à extinção da vida, da aposentadoria para as trabalhadoras e trabalhadores rurais, se fossem aprovados os critérios que o governo pretende.
Há um consenso, inclusive entre os deputados mais conservadores da Câmara, que tais novidades não têm a mínima chance de serem aprovadas.
Não é a esses dispositivos, que parecem elaborados em algum campo de concentração nazista, portanto, que estamos nos referindo.
A questão é que, mesmo sem a “capitalização”, mesmo sem o rebaixamento para menos de um salário mínimo dos benefícios daqueles que mais precisam, mesmo sem a transformação da aposentadoria rural numa morte sob tortura, a “reforma” de Bolsonaro e Guedes continua a ser uma tentativa de genocídio.
Tanto para o Regime Geral da Previdência Social (RGPS), que reúne os trabalhadores das empresas privadas, quanto para o Regime Próprio (RPPS), que reúne os funcionários públicos, os critérios de “idade mínima” para se aposentar, que estão na emenda, são um modo de matar o trabalhador antes que ele se aposente – ou logo depois.
Quantos trabalhadores conseguirão, aos 65 anos (ou 62, no caso das mulheres), ter 40 anos de contribuição, para que possam receber não 100% do que recebiam na ativa, mas 100% da média das contribuições, incluindo as mais baixas – aquelas que foram descontadas no início de sua vida no trabalho, quando o salário era muito mais baixo?
As condições mínimas que Guedes quer exigir para a aposentadoria – 20 anos de contribuição e 65 (ou 62) anos de idade – somente dariam direito, se esse projeto fosse aprovado, a 60% da média das contribuições.
Restaria, para a maioria dos trabalhadores: ou aceitar uma miséria para a última fase da sua vida, ou continuar trabalhando, mais ou menos como aquele personagem da lenda grega, infinitamente – no caso dos trabalhadores, até a morte ou a véspera da morte.
Há muito, desde o primeiro governo Getúlio Vargas, a palavra “aposentadoria” tem o significado de um provento suficiente para que o trabalhador possa viver sua velhice com alguma dignidade.
Guedes quer transformar isso em um sopão aguado para os idosos – ou em um cemitério.
A aposentadoria, por muitos trabalhadores, sempre foi considerada uma espécie de carta de alforria – e somente não entende isso quem jamais trabalhou ou quem se tornou muito distante do mundo do trabalho.
Pois existe gente que não consegue imaginar o que é acordar, cinco vezes por semana, às quatro da manhã, levar duas horas ou mais dentro de um transporte superlotado, trabalhar dentro de uma fábrica, no meio do ruído das máquinas durante oito horas (sem contar as horas extras), numa rotina estafante e repetitiva, aguentar um contramestre (quer dizer, um chefe) que zela mais pela empresa do que o dono da empresa, sair zonzo do trabalho, levar mais duas horas dentro do transporte outra vez superlotado – e sabendo que tudo isso vai acontecer outra vez no dia seguinte.
Existe gente que não sabe e não consegue imaginar o que é fazer isso durante 30 anos, 35 anos, 40 anos.
Existe gente que não sabe o que é aguentar ondas periódicas e constantes de desemprego – e, sem poder contribuir para a Previdência, ter que arrumar algum expediente, fazer algum conserto aqui e ali, para não passar fome, para não ser despejado da casa, para não ver os filhos tangidos para a marginalidade.
É natural, portanto, que os trabalhadores considerem a aposentadoria como uma meta a atingir – e como uma carta de alforria.
O projeto de Guedes é acabar com a possibilidade dessa alforria. E não por amor ao trabalho – já que, ele mesmo, nunca trabalhou, mas por ganância, para saquear os mais pobres, para pilhar os que fazem alguma coisa no país.
O QUE FAZ MAL
O presidente da Associação Nacional dos Auditores Fiscais (ANFIP), Floriano Martins de Sá Neto, disse algo importante – aliás, essencial – em seu depoimento na Comissão de Trabalho da Câmara dos Deputados:
“Reformar a Previdência faz mal para a Previdência. Ninguém é contra aperfeiçoar o sistema, mas existem outros caminhos para isso.”
O presidente da ANFIP apontou que a preocupação em “cortar”, em reduzir direitos e o valor das aposentadorias, é acompanhada por nenhuma preocupação com “as desonerações, as renúncias fiscais, as anistias pelos eternos refinanciamentos, a sonegação, a fraude e uma certa leniência na cobrança dos devedores da Previdência”.
A Previdência, tal como existe no Brasil, não tem um problema estrutural. Por isso, não precisa de reforma. O que precisa é que deixem de roubar o seu dinheiro – e que deixem de atirar e manter o país em um pântano econômico.
Desde a Constituição de 1988, houve oito modificações na Previdência e quatro grandes “reformas” – todas elas, contra a Previdência e contra os aposentados.
É verdade que nenhuma tentativa foi tão selvagem quanto a atual, onde a falta de vergonha de seu promotor é tanta, que até os números do governo são “sigilosos”.
Na presença de Rogério Marinho, secretário da Previdência de Bolsonaro e Guedes, o presidente da ANFIP relatou: “Ontem recebemos a resposta que fizemos do pedido de informação dos microdados ao governo e os dados não foram entregues”.
Na hora, Marinho nada falou. Depois, deu uma declaração: “Não há sigilo, são documentos preparatórios com restrição momentânea”.
Logo, agora sabemos que a “reforma” de Bolsonaro não é um achaque ao povo. É somente uma “restrição momentânea” ao direito a se aposentar.
Por que “momentânea”?
Porque, na verdade, a coisa é pior.
Se com esse critério de “idade mínima” – e 40 anos de contribuição – isso significa que a maioria dos brasileiros largará o couro no trabalho (ou se “aposentará” para passar fome), isso seria apenas a “transição” (e, mesmo na “transição”, está embutido um aumento da “idade mínima” a cada quatro anos).
Mas, a “idade mínima” de verdade, Guedes pretende instituir por “lei complementar”, se conseguisse tirar a Previdência da Constituição.
Estamos de pleno acordo com o presidente da ANFIP, quando ele diz que, sobre o Regime Geral da Previdência Social, “não tem conversa”.
O que temos a fazer é impedir que esse ataque passe, não inventar “propostas alternativas”, que são apenas a rendição – ainda que parcial – a esse esbulho.
C.L.
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