Com medo de que as investigações em curso contra seus filhos atrapalhem a campanha para tentar se reeleger, Jair Bolsonaro já estaria antecipando que não pretende participar de debates eleitorais se for questionado a respeito de familiares e aliados.
“É para falar do meu mandato. Até a minha vida particular, fique à vontade. Mas que não entrem em coisas de família, de amigos, porque vai ser algo que não vai levar a lugar nenhum”, alegou. A informação foi publicada domingo (2) pelo jornal “Correio Braziliense”.
O temor do chefe do clã, que ganhou notoriedade pela prática recorrente da “rachadinha” e outras falcatruas, tem motivos. Além das acusações que pesam contra ele próprio, os filhos Flávio, Carlos, Eduardo e Jair Renan estão atolados em negociatas mal explicadas.
O senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ) foi denunciado pelo Ministério Público do Rio de Janeiro por desviar salários de funcionários do gabinete – a popular “rachadinha” – no período em que foi deputado estadual, entre 2003 e 2018, quando cumpriu quatro mandatos consecutivos.
Ele foi acusado de cometer crimes de peculato, organização criminosa e lavagem de dinheiro. As acusações vieram à tona no final de 2018, com a revelação de um relatório do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), apontando movimentações vultosas de recursos por Fabrício Queiroz, assessor do parlamentar na Assembleia Legislativa do Rio.
A quebra do sigilo bancário de Queiroz também mostrou que a primeira-dama Michelle Bolsonaro recebeu R$ 72 mil em 21 cheques diferentes em sua conta, depositados entre 2011 e 2018.
A defesa de Flávio conseguiu, no Tribunal de Justiça do Rio, garantir o foro privilegiado do parlamentar e a transferência da investigação para segunda instância. O MP recorreu ao Supremo Tribunal Federal (STF), mas a Segunda Turma da Corte manteve o foro especial. Por três votos a um, os ministros também anularam as provas colhidas na investigação.
No início do ano passado, o senador comprou uma mansão, avaliada em R$ 6 milhões, em um dos bairros mais caros de Brasília.
O vereador Carlos Bolsonaro (Republicanos-RJ) também é investigado pelo Ministério Público do Rio, desde julho de 2019, por prática semelhante à do irmão mais velho e pela contratação de funcionários fantasmas em seu gabinete na Câmara Municipal.
A apuração corre em segredo de Justiça.
O deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) está na mira de inquérito em andamento no STF, que apura organização criminosa digital no âmbito das fake news.
Em novembro, a Procuradoria-Geral da República (PGR) arquivou uma apuração preliminar aberta sobre o uso de R$ 150 mil em espécie na compra de imóveis pelo deputado. Em fevereiro de 2011, época em que ainda não tinha mandato, ele adquiriu um apartamento em Copacabana por R$ 160 mil — pagou R$ 110 mil com um cheque administrativo e o restante em espécie. Em dezembro de 2016, já como parlamentar, comprou um apartamento em Botafogo por R$ 1 milhão: deu um sinal de R$ 81 mil e pagou R$ 100 mil em espécie. O restante seria quitado por meio de financiamento imobiliário.
Jair Renan é alvo de um inquérito da Polícia Federal que apura tráfico de influência e lavagem de dinheiro. A investigação apura suspeita de pagamento de propina por empresários com interesses na administração pública.
O inquérito aponta que ele está associado com outras pessoas “no recebimento de vantagens de empresários com interesses, vínculos e contratos com a Administração Pública Federal e Distrital sem aparente contraprestação” de serviços justificáveis em relação aos valores recebidos. “O núcleo empresarial apresenta cerne em conglomerado minerário/agropecuário, empresa de publicidade e outros empresários”, destaca o documento.
As suspeitas envolvem o uso da empresa de eventos de Jair Renan, a Bolsonaro Jr Eventos e Mídia, para promover articulações entre a Gramazini Granitos e a Mármores Thomazini, grupo que atua nos setores de mineração e construção, e o ministro do Desenvolvimento Regional, Rogério Marinho.
Em setembro de 2020, Jair Renan e o empresário Allan Lucena, um dos parceiros comerciais do filho do presidente, receberam de presente do grupo empresarial um carro elétrico avaliado em R$ 90 mil. Um mês depois, representantes das empresas se reuniram com o ministro.
Bolsonaro se irritou recentemente e abandonou uma entrevista ao programa Pânico, da TV Jovem Pan News, quando foi questionado pelo humorista André Marinho se “rachador teria de ir para cadeia”.
BOLSONARO
Segundo a revista IstoÉ, o esquema de rachadinha começou quando Bolsonaro deu o primeiro passo na sua carreira política como vereador, eleito para a Câmara Municipal do Rio de Janeiro, em 1989. Ele cumpriu dois anos de mandato e, a partir de 1991, iniciou sua trajetória de deputado federal.
Um advogado que era muito próximo ao clã Bolsonaro disse que o esquema vem desde essa época. Conforme essa fonte, o presidente começou a fazer isso para compensar o soldo, depois que saiu do Exército, e passou a experiência para os filhos.
Uma conversa vazada pela ex-cunhada de Bolsonaro, a personal trainer Andréa Siqueira Valle, irmã de sua ex-mulher Ana Cristina Valle, mãe de Jair Renan, o filho 04, mostra que Bolsonaro é a matriz do esquema.
Testemunhos confirmam que o esquema se originou com o próprio presidente nos anos 1990 e que Ana Cristina teve um papel central. São mais de 100 pessoas envolvidas nos desvios, em núcleos familiares diretamente ligados ou próximos ao chefe do Executivo, incluindo milicianos.
Andréa Siqueira Valle foi a primeira a vincular Bolsonaro diretamente ao estratagema criminoso. Ela contou que Bolsonaro chegou a demitir seu irmão, André Siqueira Valle, após ele recusar a entregar 90% de seu salário quando estava empregado no gabinete do então deputado federal.
“André dava muito problema porque nunca devolvia a quantia certa de dinheiro”, disse.
De acordo com uma decisão unânime do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), publicada em setembro, o esquema de “rachadinha” é uma clara e ostensiva modalidade de corrupção.
Outra testemunha-chave confirma a participação de Bolsonaro e da sua ex-mulher Ana Cristina do Valle a partir dos anos 2000. Trata-se de Marcelo Luiz Nogueira dos Santos, que trabalhou para a família desde 2002 e foi empregado no gabinete do então deputado Flávio, quando era obrigado a devolver parte de seus salários.
Antigo babá de Jair Renan, ele trabalhou até recentemente na mansão para a qual Ana Cristina acaba de se mudar, em Brasília. Ele fez uma revelação sobre o imóvel que confirma outra prática recorrente do clã, a de negociações imobiliárias obscuras.
Oficialmente, ela alugou a casa no Lago Sul. Rompido com ela, Santos revelou que a casa, avaliada em R$ 3,2 milhões, foi na verdade comprada em nome de laranjas (alugou por R$ 8 mil mensais, mesmo ganhando um salário de R$ 6,2 mil).