Determinação veio após 11 horas de reunião entre os comandantes militares chineses e indianos
“Não há nenhum pedaço da Índia invadido ou ocupado”, admitiu o primeiro-ministro Modi
“Modalidades de desmobilização em todas as áreas de atrito em Ladakh Oriental foram debatidas e serão levadas adiante pelos dois lados”, afirmou porta-voz da Índia, após reunião de 11 horas entre os comandantes militares chineses e indianos na contestada região na fronteira entre os dois países. O que também foi confirmado pelo porta-voz da chancelaria chinesa, Zhao Lijian, que disse que os dois lados concordaram em adotar medidas para apaziguar as tensões.
O diálogo entre os dois comandos de segunda-feira (22) ocorreu em uma “atmosfera cordial, positiva e construtiva”, acrescentou a fonte indiana. O encontro foi realizado do lado chinês da chamada “Linha de Controle Efetivo”, a divisa de fato entre os dois grandes países.
Em outro desdobramento positivo, realizou-se por videoconferência a reunião do RIC – Russia-Índia-China -, com a participação dos respectivos ministros das Relações exteriores Sergei Lavrov, S. Jaishankar e Wang Yi, por motivo do 75º Aniversário da Vitória sobre o Nazismo. Reunião cuja principal importância, como registrou um comentarista indiano, o ex-embaixador MK Bhadrakumar, foi ter ocorrido nesse contexto.
CONFRONTO MORTAL
Na semana passada, confronto na inóspita região no lado ocidental do Himalaia, cuja fronteira ainda carece de demarcação, causou a morte de 20 soldados indianos e um número não divulgado de soldados chineses, que se enfrentaram a socos, pedradas e paus com arame farpado.
Apesar de tudo, o protocolo de não-uso de armas de fogo nas patrulhas na fronteira comum foi respeitado. Pequim e Nova Delhi, ambas armadas nuclearmente, trocaram acusações de culpa pelo embate.
A Rússia, que mantém relações fraternais com a China e a Índia, aos quais considera parceiros essenciais para seu projeto de integração euroasiática e de um mundo multilateral sob égide da Carta da ONU, disse que os dois países “não necessitam de qualquer ajuda de fora” e podem “resolver por sua conta” a crise. Trump se oferecera para “intermediar”.
Boatos que circularam na Índia chegaram a falar em 40 chineses mortos, inclusive um comandante, o que foi desmentido por Pequim como “fake news”. O governo chinês decidiu não divulgar suas baixas para “não acirrar os ânimos”.
Em 1962, os dois países chegaram a travar uma guerra nessa mesma região, mas atualmente ambos participam do Brics, da Organização do Tratado de Shangai e do RIC, enquanto a China é o segundo maior parceiro comercial da Índia.
CONTENÇÃO DE DANOS
Na sexta-feira, ao se reunir com todos os partidos indianos para discutir o impasse, o primeiro-ministro indiano, Narendra Modi, afirmou que “não há nenhum pedaço da Índia invadido ou ocupado”, jogando para uma solução negociada do impasse, apesar de setores mais extremados indianos promoverem queima de cartazes do presidente chinês Xi Jinping e convocarem “boicote a produtos chineses”. Desde 2016, Xi e Modi se reúnem informalmente todos os anos para discutir uma pauta comum.
O confronto ocorreu na noite do dia 15. No dia 16, depois de se reunir com o primeiro-ministro Modi, o chanceler indiano Jaishankar entrou em contato com o chanceler chinês Wang Yi, e chegaram a um entendimento inicial sobre a contenção da crise no vale de Galwan.
Na sexta-feira (19), em reunião com todos os partidos indianos, o primeiro-ministro Modi afirmou que “nem eles [os soldados chineses] invadiram nossa fronteira, nem nenhum posto foi tomado por eles”, depois de ter homenageado os “vinte mártires” e acrescentado que os chineses “tomaram uma lição”.
“RESOLVER DISPUTAS PELO DIÁLOGO”
Porta-voz do Exército de Libertação Popular ressaltara que a soberania sobre a região do vale do Galwan era “da China” e denunciara a violação dos acordos obtidos no nível mais alto, e infringindo os sentimentos do povo em ambas as nações. Ele convocara a Índia a “restringir estritamente suas tropas na fronteira, parar todas as ações provocativas, encontrar o lado chinês no meio do caminho e voltar ao caminho correto de solver as disputas via diálogo”.
O processo de partilha da Índia milenar e da independência, e do reerguimento da China milenar depois do século de humilhação, deixou como herança uma área estratégica de terras contestadas, fronteiras por demarcar, envolvendo a Índia, Paquistão e China, numa região montanhosa onde uns poucos corredores nas montanhas são a única ligação entre áreas de cada um dos países.
ELO TÊNUE
Como lembra o ex-embaixador Bhadrakumar, que foi o último chefe da diplomacia indiana na União Soviética, no impasse de Doklan em 2017, que também envolvia o Butão, a construção de uma estrada chinesa causou temor em Nova Delhi de que pudesse vir a ameaçar o Passo Siliguri, o elo tênue da Índia com suas regiões do nordeste.
Agora, em Ladakh, segundo analistas citados pelo ex-embaixador, o que gerou a tensão foi a construção de estradas pela índia que poderiam ameaçar Aksai Chin e a frágil rodovia Xingiang-Tibete.
Bhadrakumar observa que em 2008, quando a Índia reabriu a base aérea de Daulat Beg Oldie, abandonada há quarenta anos, a China não protestou. Pequim também não protestou quando a estrada Darbuk-Shyikh-Daulat Beg Oldide (DSDBO), de 255 km, foi concluída, apesar de reduzir o tempo para envio de tropas e equipamentos de dois dias para seis horas. Note-se que a base fica a apenas 8 km ao sul da fronteira chinesa e a 9 km da divisa de fato de Aksai Chin entre os dois países e a apenas 10 km do Passo Karakoram que separa o Tibete de Xingiang.
Um ex-comandante do Exército Indiano, o tenente-general HS Panag, escreveu recentemente que o objetivo da China na área é “manter o status quo ao longo da LAC em seus próprios termos, que é impedir qualquer ameaça, por mais remota que seja, para Aksai Chin e NH 219” – isto é, ao Tibete e a Xingiang.
VIÉS ANTI-ISLÂMICO
Por seu viés antimuçulmano, os supremacistas hindus do BJP, o partido de Modi, passaram a ver convergências com o anti-islamismo norte-americano e de Israel e, sem romper a relação estratégica com a Rússia, como visto na aquisição do sistema antiaéreo S-400, a Índia tem desenvolvido vínculos com a política dos EUA de cerco e contenção da China.
O que Bhadrakumar chamou, apropriadamente, de “amarrar a Índia de alguma forma no estábulo americano”. No caso, Nova Delhi abriu portos e bases aéreas aos norte-americanos, e se integrou às manobras militares dos EUA, Japão e Austrália no assim chamado Quad, cuja abrangência é o Indo-Pacífico. Fanaticamente neoliberais, os supremacistas hindus acreditam que podem tornar o país numa espécie de alternativa aos monopólios norte-americanos, caso o “desacoplamento” com a China aconteça.
À DERIVA
Para o ex-embaixador, a política indiana para a China está “à deriva”. A decisão tomada pelo governo indiano de suprimir o artigo 370 da Constituição indiana para impor controle federal sobre a única região indiana de maioria muçulmana, a Cashemira, demonstrou a concepção do governo de resolver questões políticas complexas pela força, com óbvias implicações, quando questões históricas permanecem sem solução.
“Complicamos ainda mais a situação ao proclamar Aksai China como parte integrante da Índia e cruzamos a linha vermelha desenhando um mapa para afirmar nossas intenções de longo prazo”, assinalou.
“Tudo isso enquanto esperamos estabelecer ‘jurisdição física sobre a Cashemira paquistanesa e (Gilgit-Batistan) um dia”, como o ministro das Relações Exteriores expressou. Através dos quais passa o Corredor Econômico China-Paquistão de US$ 60 bilhões, o abre alas da Iniciativa Cinturão Estrada – cujo derradeiro objetivo é furar, pelo Oceano Índico, qualquer tentativa de bloqueio à China no Mar do Sul. Para piorar, Nova Delhi vem até mesmo estudando visitas ministeriais a Taiwan.
MODI
Segundo Bhadrakumar, Modi, com seu vasto capital político, pode tornar em ímpeto para uma solução duradoura do problema de fronteira com a China os acontecimentos traumáticos em Ladakh.
“Somente Modi é capaz de pegar o touro pelos chifres. É improvável que a política indiana testemunhe o surgimento de uma figura tão altiva no futuro próximo que possa tomar decisões difíceis e – mais importante – fazê-las serem aceitas pelo país”, enfatizou.