A destacada revista científica inglesa “The Lancet” publica, em editorial, intitulado “Covid-19 no Brasil: E daí?”, alerta para o genocídio em marcha no Brasil e aponta para o descaso de Bolsonaro como o maior fator de risco aos brasileiros. Devido à importância das denúncias, publicamos o editorial.*
A pandemia da doença do coronavírus de 2019 (COVID-19) chegou à América Latina mais tarde do que em outros continentes. O primeiro registro no Brasil foi em 25 de fevereiro de 2020. Mas agora, o Brasil tem a maioria dos casos de morte na América Latina (105.222 casos e 7.288 mortes até 4 de maio – 9.190 até 7 de maio, segundo as secretarias de Saúde dos Estados), e estes são provavelmente substancialmente subestimados. E ainda mais grave, a taxa de mortandade acontece a apenas cada 5 dias e um estudo recente do Imperial College (Londres, Reino Unido), que analisou a taxa de transmissão ativa em 48 países, mostrou que o Brasil é o país com a mais elevada taxa de transmissão (2,81). Cidades grandes como São Paulo e Rio de Janeiro são os principais focos agora, mas a preocupação e os primeiros sinais são de que as infecções estão se movendo para o interior com provisão inadequada de leitos de terapia intensiva e ventiladores.
E ainda, talvez a maior ameaça, em termos de reação ao Covid-19 no Brasil, é o seu presidente, Jair Bolsonaro.
Quando perguntado por jornalistas, na semana passada, sobre o rápido crescimento dos casos de COVID-19, ele respondeu: “E daí? O que vocês querem que eu faça?”. Ele não apenas continua a abertamente desdenhar e desencorajar as medidas sensíveis de distanciamento físico e de lockdown implantadas pelos governadores e prefeitos, mas perdeu dois ministros influentes nas últimas 3 semanas. Primeiro, em 16 de abril, Luiz Henrique Mandetta, o respeitado e bem avaliado ministro da Saúde, retirou-se depois de uma entrevista na televisão na qual criticou firmemente as ações de Bolsonaro e chamou à unidade ou, em caso contrário, haveria o risco de deixar os 210 milhões de brasileiros completamente confusos. Depois, em 24 de abril, logo após o afastamento do chefe da Polícia Federal por Bolsonaro, o ministro da Justiça, Sérgio Moro, uma das figuras mais poderosas do governo direitista e apontado por Bolsonaro para o combate à corrupção, anunciou sua renúncia. Esta debandada no coração do governo é uma distração mortal em meio à emergência na Saúde Pública e é também um sinal forte de que a liderança do Brasil perdeu seu compasso moral, se alguma vez o teve.
Mesmo sem o vácuo em ações políticas federais, o Brasil teria um momento difícil no combate ao COVID-19. Cerca de 13 milhões de brasileiros vivem em favelas, é muito comum que haja mais de três pessoas por quarto e pouco acesso a água potável. O distanciamento físico e as recomendações de higiene são praticamente impossíveis de serem seguidas nestes ambientes — muitas favelas têm se organizado sozinhas para implementar estas medidas da melhor forma possível. O Brasil possui um grande setor de emprego informal, sendo este responsável por muitas das fontes de renda que não se colocam os têm agora como opção. A população indígena tem estado sob ameaça séria já antes do surto de COVID-19 porque o governo tem ignorado ou até encorajado a mineração ilegal na floresta tropical da Amazônia. Estes grileiros e mineradores agora apresentam o risco de trazerem o COVID-19 para as populações remotas. Em carta aberta de 3 de maio, uma coalizão mundial de artistas, celebridades, cientistas e intelectuais, organizada pelo fotógrafo brasileiro Sebastião Salgado, alerta para um genocídio em marcha.
O que a comunidade científica e sanitária e a sociedade civil estão fazendo em um país conhecido por seu ativismo e oposição expressiva à injustiça e desigualdade e com a Saúde como um direito constitucional?
Muitas organizações científicas como a Academia Brasileira de Ciências e a Associação Brasileira de Saúde Coletiva – ABRASCO, têm, há tempo, se oposto a Bolsonaro por seus severos cortes no orçamento para a ciência e uma mais generalizada demolição da Previdência e dos serviços públicos. Neste contexto de COVID-19, muitas organizações lançaram manifestos direcionados ao público – tal como o Pacto pela Vida e pelo Brasil — e produzido declarações e apelos a funcionários do governo chamando à unidade e soluções conjuntas. Panelaços das varandas como protesto durante pronunciamentos presidenciais acontecem com frequência. Há muita pesquisa em andamento, de ciência básica à epidemiologia, e produção rápida de equipamento de proteção pessoal, respiradores e kits de testes.
Estas são ações que trazem esperança. No entanto, a liderança no nível mais alto de governo é crucial em rapidamente evitar o pior resultado desta pandemia, como evidenciam experiências de outros países. Em nossa série de 2009, de matérias sobre o Brasil, os autores concluíram: “O desafio, em última instância é político, requer o engajamento contínuo da sociedade brasileira como um todo para garantir o direito à saúde para todo o povo brasileiro”. O Brasil, como um país, precisa se unir para dar uma resposta clara ao “E daí?” de seu presidente. Ele deve tomar uma drástica mudança de curso ou deve ser o próximo a ir.
*Edição do dia 9 de maio, já disponível para assinantes, tradução de Nathaniel Braia