Publicamos abaixo a carta dirigida pelo sacerdote Ernesto Cardenal, poeta e ex-ministro da Cultura da Nicarágua (1979-1987), ao ex-presidente do Uruguai, José Pepe Mujica, na qual faz um alerta que Daniel Ortega e Rosário Murilo “não podem seguir encontrando legitimidade nos movimentos de esquerda aos quais, com seus atos sem escrúpulos, traíram”.
O mundo deve saber e se pronunciar a respeito do que está ocorrendo na Nicarágua: uma verdadeira crise de direitos humanos e terrorismo de Estado.
Reconhecendo que és um defensor dos direitos humanos, da luta pela dignidade e fonte de inspiração para toda a América Latina, a juventude e o povo que luta nas ruas da Nicarágua, necessitamos que somes a tua voz à nossa causa, que é digna e justa.
Desde abril de 2018, os jovens nicaraguenses voltaram às ruas para exigir democracia e liberdade. Cumpriram a profecia de um dos principais artífices da cruzada nacional de alfabetização na Nicarágua, o padre Fernando Cardenal, que nunca se cansou de assegurar que assim ocorreria. Lamentavelmente, o ímpeto e determinação da juventude foram respondidos com a mais violenta repressão governamental que este país jamais viu em sua história.
Em 19 de abril, há dois meses, o governo de Daniel Ortega e Rosario Murillo tirou a vida do primeiro de mais de 180 nicaraguenses, na sua maioria jovens e inclusive crianças. Há mais de 1.500 feridos, muitos desaparecidos e presos políticos. Estes números aumentam a cada dia que Ortega continua no poder.
No sábado, 16 de junho, uma família completa foi calcinada em um incêndio provocado pelos esquadrões da morte do regime em represália por não permitir que franco-atiradores entrassem em sua casa para, desde aí, matar a quem protestava nas ruas.
Apesar da repressão, a mobilização cidadã tem se mantido firme, obrigando Daniel Ortega e Rosario Murillo a sentarem-se em um diálogo nacional com interlocutores para além do grande capital. Pela primeira vez, em onze anos, tiveram que se sentar com estudantes universitários, com o movimento camponês e a sociedade civil.
A estratégia do regime orteguista tem sido a de estancar o diálogo para desatar sua estratégia de terror nas ruas. Ainda é incerto se o diálogo nacional poderá dar resposta ao clamor popular que demanda que saiam imediatamente do poder e que haja justiça.
A pressão popular também permitiu que se materializasse uma visita de trabalho da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), cujo informe preliminar coincide com o informe da Anistia Internacional a respeito das graves violações aos direitos humanos ocorridas na Nicarágua nas mãos do regime orteguista. Ambos os organismos conseguiram documentar o uso excessivo da força e a violência por parte dos corpos de segurança do Estado e das forças de choque para-policiais armadas, incluindo franco-atiradores que têm lançado disparos mortais a muitíssimas vítimas, incluindo o jornalista Ángel Gahona e várias crianças.
Ortega e Murillo não podem seguir encontrando legitimidade nos movimentos de esquerda aos quais, com seus atos sem escrúpulos, traíram. Os heróis e mártires da revolução sandinista não merecem que sua memória seja manchada pelos atos genocidas de um ditador que os traiu. As vítimas de Ortega e Murillo merecem justiça.
Abaixo, Ernesto Cardenal lê a carta para Mujica: