Existe, no mundo, certa espécie de pessoa que vive advertindo (e reprovando) os outros quanto ao uso de questões pessoais – aquelas que são chamadas de “questões privadas” – na luta política, isto é, na vida pública, em especial nas disputas por mandatos ou cargos.
Aparentemente, elas consideram tabu a menção a essas questões no meio dessas disputas. Porém, só aparentemente. Basta que seus próprios interesses – ou aqueles que julga que são os seus interesses – estejam em causa, para que esqueçam quase qualquer limite no uso dessas questões, desde que se refiram a adversários.
A isso se chama farisaísmo.
Estas considerações são inevitáveis para quem examine, com espírito isento – isto é, livre –, os ataques da campanha do sr. Guilherme Boulos (Psol) ao candidato a vice-prefeito da chapa de Bruno Covas (PSDB).
Já voltaremos a esse uso farisaico de questões pessoais – antes, é necessário abordar os motivos de Boulos para fazer do candidato a vice-prefeito de Bruno Covas o seu alvo.
Obviamente, o fato de Boulos concentrar-se no candidato a vice-prefeito do adversário, sugere falta do que dizer – ou do que criticar com alguma substância – sobre o titular da chapa. Afinal, quem é candidato a prefeito é Bruno Covas, e não seu vice, Ricardo Nunes (MDB).
Algo que torna-se mais ridículo, ainda, quando Boulos enfatiza a diferença entre sua candidata a vice, Luiza Erundina, e o candidato a vice de Bruno Covas.
Não é apenas – como disse Covas – que o objetivo dessa comparação, tão ressaltada pela campanha de Boulos, seja esconder o despreparo e inexperiência do candidato, ocultando-as atrás da figura de Erundina.
Existe algo ainda mais ridículo do que isso: a própria Erundina é um exemplo do que significa o vice.
Pois, quando Erundina concorreu, também para a Prefeitura de São Paulo, em 2004, seu vice-prefeito chamava-se Michel Temer (PMDB): “Com a coligação, a ex-prefeita passa a ter o terceiro maior tempo na propaganda de rádio e TV, atrás de José Serra (PSDB) e de Marta Suplicy (PT)”, noticiou, na época, um jornal paulista (v. PMDB leva a vice de Erundina e ressuscita quarta via em SP, Folha de S. Paulo, 01/07/2004).
Não há nada, aqui, que desabone Erundina. Mas o fato mostra como é hipócrita a campanha de Boulos, ao fazer do vice de Bruno Covas o seu alvo principal. Por que Erundina podia ter Michel Temer como vice, mas Bruno Covas não pode ter Ricardo Nunes como vice?
Por que Nunes seria, como vice, um problema para Covas, mas Temer não era um problema para Erundina?
Boulos, ou seus marketeiros, fazendo alvo no candidato a vice-prefeito de Bruno Covas, no entanto, percebem – mal ou bem – essa fraqueza do seu ataque.
Esta é a razão porque expuseram, na TV, a teoria de que o vice de Covas é que iria governar, e não o próprio Bruno Covas, se este for eleito.
Porém, isso torna a propaganda de Boulos especialmente repugnante – pois significa prognosticar a morte do adversário e atual prefeito de São Paulo, aproveitando-se da batalha que este recentemente travou, e até agora venceu, contra o câncer.
Daí, como disfarce desse lado repugnante de sua propaganda, Boulos estendeu sua teoria a todo o partido do candidato adversário. Usando exemplos conhecidos (Serra e Kassab, Doria e o próprio Covas), a ideia é esconder o prognóstico de morte para Bruno Covas atrás da suposta propensão do PSDB a entronizar seus vice-prefeitos em São Paulo.
Resta, evidentemente, provar que isso é aplicável ao prefeito Bruno Covas. Como isso é impossível (o futuro continua pertencendo a Deus), a propaganda não se sustenta como verdade. Então, recorre-se a esculhambar com o candidato a vice-prefeito de Covas, pois essa é a forma de obscurecer a falta de sustentação das acusações por um futuro, que, obviamente, não aconteceu.
Mas isso é, precisamente, o que se pode dizer desse aspecto (aliás, o principal) da propaganda de Boulos: acusa-se Covas por um suposto futuro – e não por algo que ele tenha feito no passado.
Acusa-se Bruno Covas de morrer e deixar a Prefeitura para Ricardo Nunes – quando o prefeito está vivo e vencendo a luta contra o câncer.
Da mesma forma, com outra contorção, o acusado diretamente é o candidato a vice-prefeito – e não o candidato a prefeito.
Mas… de que o candidato a vice-prefeito de Bruno Covas é acusado pela campanha de Boulos?
TRANSFORMISMO DA REALIDADE
Trata-se, aqui, de transformar problemas conjugais de dez anos atrás, entre Ricardo Nunes e sua esposa, Regina Carnovale Nunes, em “violência doméstica”.
Todo mundo sabe o que significa – ou o que se entende, comumente – por “violência doméstica”.
Em geral, esse termo designa violência física – surras, espancamentos ou coisa ainda pior – do homem em relação à mulher, do marido em relação à esposa.
Assim é entendido habitualmente pelas pessoas.
Entretanto, não é esse o conteúdo do que a campanha de Boulos apresenta, como se fosse prova, contra Ricardo Nunes.
Em 2011, quando o casal estava separado, devido a uma crise conjugal, Regina Nunes registrou um Boletim de Ocorrência (B.O.), na 6ª Delegacia da Mulher, localizada no bairro paulistano de Santo Amaro.
Nele, o que está relatado é que o marido não se conformava com a separação – Regina Nunes estava residindo na casa de sua mãe.
Não há relato de violência física, mas de que Ricardo Nunes, “inconformado com a separação, não lhe dá paz” – e referência àquilo que Nelson Rodrigues chamava de “bate-boca” entre marido e mulher (“o bate-boca entranha na carne”, escreveu Rodrigues).
Este B.O. tem a data de 18 de fevereiro de 2011.
Existe outro B.O., este registrado por Ricardo Nunes, quase um mês após – no dia 14 de março de 2011. Nele, existe o relato de uma discussão do casal, então separado, sobre pensão alimentícia, em que teria havido uma agressão, mas não de Ricardo Nunes à esposa, pelo contrário.
Esses acontecimentos são de uma crise conjugal de 10 anos atrás.
Depois disso, o casal se reconciliou – e hoje vive bem, segundo o testemunho de Regina e de Ricardo Nunes.
Em especial, Regina Nunes nega que tenha sido agredida pelo marido.
Não houve, após os B.O., nenhum processo ou decorrência posterior.
Fomos sucintos sobre essa questão, porque não é nosso objetivo expor a vida pessoal de quem quer que seja – exceto quando isso tem importância para a vida pública.
Nesse caso, não tem. Somente entramos nessa questão porque o candidato Boulos usou-a em sua propaganda eleitoral.
Resta saber com que direito se recorre a um problema já superado por um casal, ocorrido há dez anos, contra o que diz a própria suposta vítima: “Isso foi há dez anos. Estão falando disso agora para atrapalhar a campanha. Por que estão falando de uma briga de casal? Nem teve agressão. Foi um desentendimento de casal. Se ele tivesse me agredido eu não estaria mais casada com ele. Ninguém aguenta ficar apanhando tanto tempo. Estamos casados há mais de 20 anos. Eu costumo falar que é mais fácil eu bater nele. Ele nunca levantou a voz para mim. É óbvio que casais têm desentendimentos. A gente não estava bem. Eu fui passar uns dias na casa da minha mãe” (v. entrevista de Regina Nunes ao jornal “O Estado de S. Paulo”, 26/11/2020).
Quem acha que, para ganhar uma eleição, não se deve respeitar esse limite, no mínimo, não merece ganhar a eleição.
RECORRENTE
Os ataques ao vice de Bruno Covas não estão, portanto, no campo da política. Não somente nesse caso, mas na questão das creches, também.
Ricardo Nunes é um defensor do sistema de creches conveniadas, pelo qual a Prefeitura paga a organizações privadas, que fornecem vagas para crianças.
Boulos, em debate com Bruno Covas, afirmou que, se eleito, não acabará com esse sistema. Por isso, não pode criticar em Ricardo Nunes a sua defesa do sistema de convênios da Prefeitura para oferecer creches às famílias.
Então, o ataque a Nunes tem sido o de que ele tem relação com as entidades privadas que mantêm creches conveniadas com a Prefeitura de São Paulo.
Nunes não nega esse relacionamento (“Relacionamento existe. A vida é de relacionamentos, mas isso não é errado e antiético”, disse ele, em entrevista ao jornal “O Estado de S. Paulo”).
Empresário que lida sobretudo com tratamento fitossanitário de mercadorias exportadas e importadas, sua empresa, a Nikkey Serviços, fez dedetização em prédios de creches conveniadas, o que ele, também, não nega.
Quanto ao suposto superfaturamento no aluguel de creches da Sociedade Beneficente Equilíbrio de Interlagos, declarou Nunes:
“Quando me tornei vereador a entidade já existia. Os prédios já estavam alugados. Tem uma matéria que disse que sou investigado por superfaturamento de aluguel. Não existe isso. Eu não defino aluguel. Há uma negociação entre o proprietário e a secretaria de Educação baseada em critérios. Não tenho participação no processo do valor de locação.”
Boulos não contestou as declarações do vice de Bruno Covas – ou seja, não provou que ele fez algo ilegal. Entretanto, isso é o que se espera, e é imprescindível a quem acusa alguém.
Ou é isso, ou resvala-se para o pântano da difamação e da calúnia, travestidas de denúncia.
Porém, aqui, existe algo que é recorrente em Boulos – o frequente recurso a acusações que são imprecisas, que não são verdadeiras ou que são, claramente, uma distorção da realidade.
Foi assim até mesmo em relação a alguém que tem tanto para ser criticado, quanto Bolsonaro, em 2018: “No debate da Band, o candidato Guilherme Boulos afirmou que o candidato Jair Bolsonaro fora expulso do Exército. Pelo jeito, Boulos resolveu conceder a Bolsonaro um atestado de honestidade. Porque a verdade é que Bolsonaro não foi expulso do Exército” (v. HP 16/08/2018, Terrorismo de baixa potência).
Foi assim, já no primeiro turno da atual eleição, com o candidato Márcio França, em que Boulos, no primeiro debate da campanha, deformou a posição do adversário, aliás, de uma maneira muito parecida com a mutação de desavenças conjugais em “violência doméstica”, que vimos acima (v. HP 07/10/2020, Guilherme Boulos recorre à falsificação no debate com Márcio França).
E é assim agora, em relação a Ricardo Nunes – por consequência, em relação a Bruno Covas.
Entretanto, não se pode combater a injustiça ou as desigualdades com a mentira. Esta, somente pode conduzir a mais injustiças e a mais desigualdades.
C.L.