A decisão que anulou o julgamento em primeira instância de Aldemir Bendine, presidente do Banco do Brasil no governo Lula e da Petrobrás no governo Dilma, não é absurda. Mas somente pode ser entendida no meio de uma situação política em que existe um inimigo da democracia – e, portanto, das leis e das instituições, a começar pela Justiça – na Presidência da República, e em que o juiz que condenou Bendine aceitou ser ministro (e da Justiça!) desse inimigo da democracia.
As mensagens publicadas por The Intercept Brasil, entre Moro e o procurador Deltan Dallagnol, completaram, por enquanto, o quadro de desgaste, inclusive dentro do Judiciário.
Um dos ministros mais ilustres que já passaram pelo STF declarou que “sendo o Supremo um órgão também político, suas decisões evidentemente têm um conteúdo político” (cf. Evandro Lins e Silva, O Salão dos Passos Perdidos: depoimento ao CPDOC, Nova Fronteira/FGV, Rio, 1997, p. 470).
Moro declarou, depois que aceitou ser ministro de Bolsonaro, que o fez porque estava “cansado de levar bola nas costas” – isto é, decisões de instâncias superiores do Judiciário, do Legislativo ou do Executivo, que se contrapunham às suas (v. HP 06/12/2018, Sérgio Moro e o caso Onyx Lorenzoni/JBS).
Agora, talvez, esteja descobrindo que jamais levou tantas bolas nas costas quanto no governo Bolsonaro – e do Bolsonaro.
Na terça-feira (27/08), o voto decisivo, na segunda turma do STF, para anular a condenação de Bendine – e enviar o processo outra vez à primeira instância – foi da ministra Cármen Lúcia, que até agora, essencialmente, votou a favor da legalidade dos processos oriundos da Operação Lava Jato, especialmente aqueles com origem na 13ª Vara Criminal de Curitiba, onde Moro era juiz titular, até aceitar o convite de Bolsonaro para o Ministério.
Saber qual foi a decisão da segunda turma do STF permite compreender como o próprio Moro acabou por defenestrar boa parte do respeito que antes conquistara.
Diante das provas contra Bendine, a questão que levou à anulação da sentença de Moro, para a maioria das pessoas, parece uma filigrana – ainda que tenha consequências graves, se mantido, e estendido aos outros processos, esse novo entendimento.
Bendine foi condenado a 11 anos de cadeia, em primeira instância, na 13ª Vara Criminal de Curitiba, e a 7 anos e nove meses no julgamento em segunda instância, do mesmo processo, no Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4).
O motivo da condenação foi o recebimento, por Bendine, de uma propina de R$ 3 milhões, pagos pelo Setor de Operações Estruturadas – o departamento de propinas – da Odebrecht. Além das provas documentais, pesou contra Bendine a confissão de seu próprio operador, André Gustavo Vieira da Silva (v. HP 10/03/2018, Executivo favorito do PT leva a mesma pena de Al Capone e HP 20/06/2019, TRF-4 confirma condenação de Bendine por corrupção).
Além disso, Marcelo Odebrecht, presidente do Grupo Odebrecht, e Fernando Luiz Ayres da Cunha Santos, presidente da Odebrecht Ambiental, confirmaram que receberam o pedido de propina de Bendine, assim como Álvaro Novis, o transportador do dinheiro, confirmou a entrega ao operador de Bendine.
Os documentos apreendidos pela Polícia Federal (PF) no Setor de Operações Estruturadas da Odebrecht, e com Marcelo Odebrecht, confirmaram a transação. Como já mencionamos, a condenação de Bendine foi baseada, sobretudo, nesses documentos, que eram “prova de corroboração” de depoimentos dos outros réus do processo, que firmaram acordos de colaboração premiada.
No julgamento da última terça-feira, a segunda turma do STF não anulou quaisquer das provas que levaram à condenação de Bendine. Toda a discussão foi em torno de qual seria a ordem das “alegações finais” de Bendine.
No Brasil, o réu – ou sua defesa – tem direito, em um julgamento, a apresentar as suas alegações finais após conhecer as alegações finais da acusação. Em termos práticos: o réu tem direito a contestar as acusações contra si, o que somente pode ser feito se a acusação faz as suas alegações antes da defesa.
No julgamento em primeira instância, o pedido da defesa de Bendine para que fizesse suas alegações finais depois de conhecidas as alegações finais dos outros réus – aqueles que tinham confessado e revelado a corrupção de Bendine – foi negado, com base em que esse procedimento não consta da lei (“não tem previsão legal, forma ou figura em Juízo”), o que é verdade.
O que a lei prevê é que a defesa faça suas alegações finais depois da acusação – e não depois dos outros réus.
Mais extensamente:
“O acusado colaborador não se despe de sua condição de acusado no processo. Apenas optou, com legitimidade, por defender-se com a pretensão de colaborar com a Justiça. Acolher o requerimento da Defesa de Aldemir Bendine seria o equivalente a estabelecer uma hierarquia entre os acusados, distinguindo-os entre colaboradores e não colaboradores, com a concessão de privilégios aos últimos por não terem colaborado” (cf. Sentença, pp. 23-24, 07/03/2018, processo n.º 5035263-15.2017.404.7000).
Ou seja, a colaboração premiada é um recurso da defesa e não da acusação. Se esse recurso é conflitante com a estratégia da defesa de outros réus, não é possível resolver esse conflito considerando que a colaboração premiada (e os colaboradores que fizeram acordo para confessar) fazem parte da acusação.
Foi esse o entendimento de Moro, em sua sentença; do TRF-4, quando também julgou o caso; e do respeitado ministro Edson Fachin, do STF, que defendeu essa tese na terça-feira: a colaboração premiada não transforma um réu em acusador ou em parte da acusação. Portanto, o réu que não fez acordo para confessar não pode ser tratado de maneira diferente dos outros, apresentando suas alegações finais depois de conhecer as alegações finais dos outros réus.
Remoemos o quanto pudemos esse assunto porque não é fácil, inclusive para nós, entender essas questões. Mas, voltemos ao caso de Bendine: sua defesa, derrotada, nessa questão, na primeira e na segunda instância, recorreu ao STF.
O que a segunda turma do STF, por agora, decidiu, é que Bendine tinha o direito de fazer as suas alegações finais por último, depois de conhecer as alegações finais dos demais réus – aqueles que firmaram acordos de colaboração premiada.
O argumento – colocado pelo ministro Ricardo Lewandowski – é que, apesar dos réus que firmaram acordos de colaboração premiada não passarem a fazer parte da acusação, existe uma “carga acusatória que permeia suas acusações” (sic).
Entretanto, não nos deteremos nos votos dos ministros Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski, porque é conhecida a sua posição contra a Operação Lava Jato (na terça-feira, o ministro Gilmar Mendes fez um discurso que estaria melhor em um palanque do que em uma turma do STF).
A ministra Cármen Lúcia, porém, depois de reconhecer que não está previsto na lei que um réu possa apresentar suas alegações finais depois dos outros réus, considerou que “nesse caso, temos uma grande novidade no direito. Não vejo que [os réus que firmaram acordo de colaboração e os que não firmaram] estejam na mesmíssima condição”.
No caso específico de Bendine, disse ela, “o processo chegou onde chegou por causa do colaborador”.
E concluiu com a observação de que, apesar de não estar explícito na lei, um juiz pode estabelecer prazos diferentes para cada réu apresentar suas alegações finais, pois também não existe lei que o proíba.
O outro membro da segunda turma do STF, o ministro Celso de Mello, não votou porque encontra-se enfermo, com pneumonia.
O leitor pode estranhar que o mérito da questão – a culpa ou não de Bendine – não tenha sido abordada.
Mas o STF, da mesma forma que o STJ, não julga questões de mérito. Somente questões de procedimento dos processos – aquelas que afetam a Constituição, no caso do STF, ou a lei abaixo da Constituição, no caso do STJ.
Não nos parece absurdo que um réu, denunciado por outros, possa fazer suas alegações finais após aqueles que o denunciaram.
Embora, trata-se de algo, antes de tudo, formal, pois é evidente que o conteúdo da “colaboração premiada” de cada um, já era conhecida antes pela defesa de Bendine.
A importância dessa decisão é que ela muda o entendimento anterior, e, como aponta a nota da força-tarefa da Lava Jato, “se for aplicado nos demais casos da Operação Lava Jato, poderá anular praticamente todas as condenações, com a consequente prescrição de vários crimes e libertação de réus presos”.
É verdade. E a responsabilidade cai sobre aqueles que colocaram a Operação Lava Jato em risco: antes de tudo, Moro; mas, também, Dallagnol.
Na nota, a força-tarefa “expressa sua confiança de que o Supremo Tribunal Federal reavaliará esse tema, modulando os efeitos da decisão”.
C.L.
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