Política bolsonarista para a Educação “pode ter efeitos irreversíveis e até fatais”, alertam seis ex-ministros
Ex-ministros da Educação dos governos Fernando Collor, Itamar Franco, Lula e Dilma se encontraram, nesta terça-feira (4), no Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (IEA-USP), para discutir as propostas do governo Bolsonaro para a Educação. Os ministros demonstraram uma “grande preocupação com as políticas públicas para a educação”, uma vez que os cortes do ministro da Educação Abraham Weintraub no orçamento das universidades e institutos federais “podem ter efeitos irreversíveis e até fatais”.
A reunião contou com os ex-ministros José Goldemberg, do governo Collor, que também foi reitor da USP, Murílio Hingel, do governo Itamar, Cristovam Buarque, Fernando Haddad, ambos ex-ministros de Lula, Aloizio Mercadante e Renato Janine Ribeiro, ambos do governo Dilma, e estabeleceu o Observatório da Educação Brasileira, que será sediado no próprio IEA.
Os ministros presentes redigiram uma nota pública consensual sobre a educação no governo Bolsonaro e os desafios que deveriam ser enfrentados. Nela, afirmam ser “impressionante que, diante de um assunto como a educação que conta com especialistas e estudiosos bem formados, o governo atue de forma sectária, sem se preocupar com a melhoria da qualidade e da equidade do sistema, para assegurar a igualdade de oportunidade. Numa palavra, a educação se tornou a grande esperança, a grande promessa da nacionalidade e da democracia. Com espanto, porém, vemos que, no atual governo, ela é apresentada como ameaça”.
PERSEGUIÇÃO
Para Goldemberg, que também foi reitor da USP, a nota pública “representa um consenso entre vários ex-ministros que viveram o problema da educação em períodos melhores e piores. Ele é um documento em defesa da educação, basicamente. O que nós chamamos a atenção é que a educação é fundamental nesse país e por isso deve ser prestigiada”.
“O esforço [do ministro Weintraub] não está sendo feito na direção correta. Ele está sendo feito em aspectos secundários, como em medidas de caráter alheio à educação, com ‘doutrinação’, ‘Escola Sem Partido’ e ‘balbúrdia’”.
O ministro da Educação de Itamar Franco, Murílio Hingel, chamou a atenção para o fato de que a nota conjunta dos ex-ministros “é muito importante e destaca um ponto fundamental que é a garantia de recursos para que a educação se desenvolva em todos os municípios e estados, ou seja, em todo o país”.
“Não há educação de qualidade se não houver recursos disponíveis; não há professores eficientes e qualificados se não houver professores bem remunerados. Não há, portanto, como se imaginar que pudéssemos melhorar a qualidade [da educação] para o desenvolvimento do país se não pudéssemos contar com os recursos indispensáveis”, contou.
O primeiro ministro do governo Lula, Cristovam Buarque, afirmou que o grupo de ministros tem a característica de “ter tentado com que o Brasil saísse da tragédia de sua educação. Tanto ao que se refere às exigências dela em relação ao mundo moderno, como também o atraso de sua desigualdade”.
“Esse grupo se reuniu porque nós sentimos uma ameaça nessa marcha que foi feita ao longo dessas décadas, sentimos o risco em relação à autonomia universitária, à contribuição do Governo Federal na educação de base nos estados e municípios. Sentimos um risco em relação a uma intervenção sectária tentando tirar a liberdade de cátedra dos professores. Nós estamos aqui porque sentimos uma ameaça”, afirmou.
“O que sucedeu à eleição é muito pior do que poderíamos imaginar, não somente no que se refere à educação, mas ao meio ambiente e outras área. Está aqui nossa contribuição para que marcha lenta das últimas décadas não seja interrompida, pelo contrário, que ela seja acelerada com o Brasil tomando as medidas necessárias para que o país descubra o importância da educação”, ressaltou Cristovam.
Para o ex-ministro e ex-prefeito de São Paulo Fernando Haddad, “o alarme está soando. Não somente na área da educação, mas em várias áreas. Hoje mesmo tivemos a manifestação de 11 ex-ministros da Justiça em artigo publicado na Folha de S.Paulo. O mesmo acontece na economia, segurança pública, meio ambiente, relações exteriores, direitos humanos. O desafio da educação é correr atrás do atraso”, disse.
“Temos que garantir os recursos do FUNDEB, que efetivamente dialoga com o anseio histórico dos educadores. Não importando onde a pessoa nasceu, de que família ela provenha; ela tem que ter seu direito à educação assegurado”, disse Haddad.
Segundo ele, a nota conjunta “se soma a outras publicadas por ex-ministros de outras pastas igualmente preocupados com o desmonte de setores estratégicos para o desenvolvimento nacional, documentos escritos à muitas mãos para alertar o país dos riscos que se correm desnecessariamente”. Haddad afirmou que o Observatório será aberto para as figuras da educação, tais como os reitores, para que as forças sejam somadas e para que a “educação e as políticas públicas possam ser aperfeiçoadas”.
Aloizio Mercadante acredita que “a educação deve ser preservada mesmo durante crises econômicas. Deve, inclusive, ser preservada das disputas político-partidárias, seguindo uma trajetória de ampliação e aprofundamento de suas capacidades”. “A pluralidade é fundamental, por isso a autonomia acadêmica, pedagógica, docente, universitária é tão importante na história da educação. É a partir da pluralidade, do dissenso, do debate entre as diversas corrente teóricas, que o conhecimento se desenvolve”.
O ministro afirmou que, caso os planos de Bolsonaro e Weintraub se concretizem, “o risco que corremos é do desmonte de todo o acúmulo histórico que temos na educação”. “Eles têm a ideia de que a educação é uma mercadoria e quem não tem dinheiro recebe um voucher, mas esse modelo já faliu em diversos países”.
“A defesa da universidade pública é o que une essa mesa e o que nos separa desse governo”, concluiu.
Para Renato Janine Ribeiro, a tarefa dos que defendem a educação é impedir os planos de Weintraub, caso contrário “o resultado será catastrófico. Os reitores já estão prevendo fechamento de turmas, de campi, falta de dinheiro para pagar contas, como de água e luz”.
“O que nos une aqui é uma agenda civilizatória que atravessa a direita e a esquerda. Nós construímos um consenso através dos anos que atravessa os governos federal, estaduais e municipais, que abrange fundações, sindicatos, movimentos, universidades, um consenso precioso que elegeu a educação como a grande promessa do século XXI. Dentro desse consenso nos causa muita preocupação termos hoje uma política de governo que vê a educação não como uma promessa, mas como uma ameaça”.
“Nós, da educação, queremos alertar para o risco que tem do Brasil se atrasar profundamente no desenvolvimento econômico se ele não valorizar a educação devidamente. Educação é cidadania, educação é a formação da pessoa e é formação da economia”.
AUTONOMIA UNIVERSITÁRIA
Para José Goldemberg, “A educação precisa de certas garantias fundamentais. A autonomia dos professores e a liberdade de cátedra são questões absolutamente inegociáveis, não podem haver perseguições desse tipo. Os professores perderam prestígio justamente por ingerência externa nessas questões. A função do Estado é a de garantir a qualidade e as condições para que os professores exerçam sua função”, disse.
“Agora, os ministros quando quiseram nomear alguém para seu corpo gestor deverão pedir permissão para o Palácio do Planalto. Isso me lembra muito a estrutura do Serviço Nacional de Informações (SNI) da época da ditadura militar”.
Fernando Haddad acredita que a autonomia universitária é uma questão emergencial. Ela “está, nesse momento, em jogo, com verdadeiros atentados retóricos por parte do Ministério em relação a quem produz conhecimento nesse país, que são as universidades públicas, mantidas por governos estaduais ou pelo governo federal”.
PEDRO BIANCO
Leia na íntegra a nota divulgada pelos ex-ministros da educação:
Nós, ex-ministros da Educação que servimos o Brasil em diferentes governos, externamos nossa grande preocupação com as políticas para a educação adotadas na atual administração. Nas últimas décadas, construiu-se um consenso razoável sobre a educação, que se resume numa ideia: ela é a grande prioridade nacional.
Contingenciamentos ocorrem, mas em áreas como educação e saúde, na magnitude que estão sendo apresentados, podem ter efeitos irreversíveis e até fatais. Uma criança que não tenha a escolaridade necessária pode nunca mais se recuperar do que perdeu. A morte de uma pessoa por falta de atendimento médico é irreparável. Por isso, educação e saúde devem ser preservadas e priorizadas, em qualquer governo.
Uma educação pública básica de qualidade forma bem a pessoa, o profissional e o cidadão para desenvolverem, com independência e sem imposições, suas potencialidades singulares.
A educação é, ainda, crucial para o desenvolvimento social e estratégico da economia do Brasil. A economia não avança sem a educação, que é a chave para nosso país atender às exigências da sociedade do conhecimento.
O consenso pela educação como política de Estado foi constituído por diferentes partidos, por governos nas três instâncias de poder, fundações e institutos de pesquisa, universidades e movimentos sociais ou sindicais. Em que pesem as saudáveis divergências que restaram, foi uma conquista única, que permitiu avançar no fortalecimento da educação infantil, na universalização do ensino fundamental, na retomada da educação técnica e profissional, no esforço pela alfabetização e educação de adultos, na avaliação da educação em todos os seus níveis, na ampliação dos anos de escolaridade obrigatória com aumento expressivo das matrículas em todos os níveis de ensino, na expansão da pós-graduação, mestrado e doutorado e, consequentemente, na qualidade da pesquisa e produção científica realizada no Brasil.
É impressionante que, diante de um assunto como a educação que conta com especialistas e estudiosos bem formados, o governo atue de forma sectária, sem se preocupar com a melhoria da qualidade e da equidade do sistema, para assegurar a igualdade de oportunidade.
Em nenhuma área se conseguiu um acordo nacional tão forte quanto na da educação. A sociedade brasileira tomou consciência da importância dela no mundo contemporâneo.
Numa palavra, a educação se tornou a grande esperança, a grande promessa da nacionalidade e da democracia. Com espanto, porém, vemos que, no atual governo, ela é apresentada como ameaça.
Concordamos todos que a educação básica pública deve ser a grande prioridade nacional, contribuindo para superar os flagelos da desigualdade social gritante, da falta de oportunidades para os mais pobres e do atraso econômico e social. Ela implica o aprimoramento da formação dos professores, do material didático, a constante atenção à Base Nacional Curricular Comum,a valorização das profissões da educação, inclusive no plano salarial, a reforma do ensino médio, o aperfeiçoamento da gestão educacional, a construção de diretrizes nacionais de carreira de professores e diretores do ensino público. Requer a constante inovação nos métodos, deslocando-se a ênfase no ensino para a aprendizagem, que deve ser o centro de todos os nossos esforços.
Exige também o empenho na educação infantil e na alfabetização na idade certa, a melhora das escolas e dos laboratórios e bibliotecas e, mais que tudo, o respeito à profissão docente, que não pode ser submetida a nenhuma perseguição ideológica. A liberdade de cátedra e o livre exercício do magistério são valores fundamentais e inegociáveis do processo de aprendizagem e da relação entre alunos e professores. Convidar os alunos a filmarem os professores, para puni-los, é uma medida que apenas piora a educação, submetendo-a a uma censura inaceitável. Tratar a educação como ocasião para punições é exatamente o contrário do que deve ser feito.Cortar recursos da educação básica e do ensino superior, no volume anunciado, deixará feridas que demorarão a ser curadas.
Não menos importante é o fortalecimento da cooperação e da colaboração entre União,Estados, Municípios e o Distrito Federal e o respeito à autonomia das redes, como determinam a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional e a própria Constituição Cidadã de 1988. Não
podemos ignorar o Plano Nacional de Educação, aprovado por unanimidade pelo Congresso Nacional, os Planos Estaduais e os Planos Municipais de Educação, já pactuados entre a sociedade, os governos e a própria comunidade escolar. Ele decorre de iniciativas que já vinham de longe, como o Plano Decenal de Educação para Todos (1993/2003), elaborado pelo MEC com apoio dos estados, dos municípios, do Distrito Federal, de entidades representativas da área educacional e que atendia a compromisso internacional assumido pelo Brasil na Conferência realizada em 1990 em Jomtien (Tailândia), de que o Brasil participou, promovida pela UNESCO, pelo UNICEF, pelo PNUD e pelo Banco Mundial.
Enfim, e para somar esforços em vez de dividi-los, é indispensável que se constitua e se organize um efetivo Sistema Nacional de Educação.
Ademais, a prioridade à educação básica demanda que cresçam os repasses do governo federal para os estados e municípios, responsáveis pelo ensino infantil, fundamental e médio, sendo prioridade a renovação e, se possível, ampliação do FUNDEB – Fundo de Manutenção
e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação, que expira em 2020. Sem ele, a situação do ensino nos municípios e estados mais pobres, que já é inadequada, se tornará desesperadora.
No tocante à expansão do ensino superior, é fundamental se assegurar o ingresso e permanência dos estudantes, especialmente dos egressos das escolas públicas e das famílias de baixa renda. O ensino superior necessita ter qualidade, o que requer tanto constantes avaliações quanto recursos, garantindo seu papel insubstituível na formação de profissionais qualificados para um mercado de trabalho cada vez mais exigente, impactado pelos desafios das inovações e das novas tecnologias. A autonomia universitária é uma conquista que deve ser mantida para garantir a liberdade e qualidade na pesquisa, formação e extensão.
O Brasil dispõe, hoje, de uma lista de políticas devidamente estudadas e estruturadas, de medidas e instrumentos que permitem progredir significativamente na educação. Nada disso é ou será fácil, mas o consenso obtido e o aprimoramento das medidas clamam pela junção de
esforços em prol de uma educação que se equipare, em qualidade, à dos países mais desenvolvidos.
Muito tem de ser feito, tudo pode ser aprimorado, mas a educação depende da continuidade ao que já foi conseguido ou planejado. Educação é política de Estado: nada se fará se a ênfase for na destruição das conquistas, no desmonte das políticas públicas implementadas e no
abandono dos planos construídos pela cooperação entre os entes eleitos e a sociedade.
Vimos a público defender esta causa estratégica para as futuras gerações e propomos a formação de uma ampla frente em defesa da educação. Nós, neste momento, estamos constituindo o Observatório da Educação Brasileira dos ex-ministros da Educação, que se coloca
à disposição para dialogar com a comunidade acadêmica e científica, sociedade e entidades representativas da educação, com parlamentares e gestores, sempre na perspectiva de aprimorar a qualidade da política educacional.
Assinam este documento os ex-ministros da Educação:
José Goldemberg
Murílio Hingel
Cristovam Buarque
Fernando Haddad
Aloizio Mercadante
Renato Janine Ribeiro