“Mesmo que o agente constate a infração em flagrante, este não deverá lavrar a multa ou qualquer outro termo e sim emitir um relatório, sendo que não há prazo para emissão da análise deste relatório pela autoridade hierarquicamente superior”, diz trecho do manifesto
Às vésperas da Cúpula de Líderes sobre o clima, marcada para quinta (22) e sexta-feira (23), mais de 400 servidores de carreira do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) assinaram um ofício, publicado na segunda-feira (19), no qual denunciam que todas as atividades de fiscalização de infrações ambientais desenvolvidas pelo órgão estão paralisadas.
O manifesto desmascara a política ambiental do governo Bolsonaro que, ao contrário do que ele disse em carta enviada ao presidente Joe Biden, organizador do evento internacional, é uma política que estimula o desmatamento, a grilagem de terras indígenas, o garimpo ilegal e outros crimes cometidos contra as populações indígenas e contra o meio ambiente.
Endereçado ao presidente do Ibama, Eduardo Bim, o documento afirma que a interrupção dos serviços se deve a uma instrução normativa conjunta do Ministério do Meio Ambiente, do Ibama e do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), publicada em 12 de abril de 2021. “(…) Mesmo que o agente constate a infração em flagrante, este não deverá lavrar a multa ou qualquer outro termo e sim emitir um relatório, sendo que não há prazo para emissão da análise deste relatório pela autoridade hierarquicamente superior”, denunciam os servidores.
De acordo com a nova instrução normativa, as infrações ambientais agora terão que ser autorizadas por um superior do agente que aplicar a multa. Na prática, os servidores dizem que a nova regra cria a figura de “uma espécie de censor, com ampla e irrestrita discricionariedade”, que deverá validar e comprovar toda sanção ambiental feita pelos fiscais. Ainda de acordo com o ofício, as constatações do fiscal em campo, a partir de agora, serão um mero “relatório”, que deverá ser analisado pelo superior, mas sem prazo para emitir qualquer conclusão.
A medida, segundo os servidores, criou um ambiente de “insegurança jurídica e administrativa para todos os servidores envolvidos neste rito, fiscais, técnicos, analistas ambientais e administrativos”. Esta medida, na verdade, praticamente impede a autuação de criminosos ambientais.
Confirmando a farsa do Planalto, recentemente, o ministro do Meio Ambiente de Bolsonaro foi alvo de notícia-crime enviada ao Supremo Tribunal Federal pelo então superintendente da Polícia Federal no Amazonas, Alexandre Saraiva. Ele afirma que Salles dificultou ação de órgãos ambientais. Saraiva aponta a possibilidade de ocorrência dos crimes de advocacia administrativa, organização criminosa e o crime de “obstar ou dificultar a ação fiscalizadora do Poder Público.”
Os servidores afirmam ainda que as medidas necessárias para implementação das mudanças não foram aplicadas internamente, e por isso, “sistemas corporativos” não estão preparados para o processamento da nova burocracia estatal.
“Em face disso, todos os servidores que assinam o presente carta declaram que estão com suas atividades paralisadas pelas próprias autarquias, IBAMA e ICMBio, que não providenciaram os meios necessários junto aos sistemas e equipamentos de trabalho disponíveis para o exercício da atividade de fiscalização ambiental federal, análise e preparação para julgamento de processos de apuração de infrações ambientais”, diz trecho do ofício. Segue abaixo a íntegra da carta.
CARTA ABERTA AO PRESIDENTE DO IBAMA E À SOCIEDADE BRASILEIRA (POR SERVIDORES ESPECIALISTAS EM MEIO AMBIENTE)
Nós, servidores do Estado Brasileiro, da carreira de especialistas em meio ambiente, pautados pelo dever de lealdade à instituição a qual servimos, bem como pelo compromisso assumido pela execução da Política Nacional de Meio Ambiente e um serviço público de qualidade, nos dirigimos ao Sr. Presidente do IBAMA, por ser a autoridade máxima da autarquia, e à sociedade brasileira, para a qual prestamos nossos serviços, para nos manifestar a respeito da publicação da Instrução Normativa Conjunta MMA/IBAMA/ICMBIO Nº 1, de 12 de abril de 2021, esclarecendo os prejuízos sem precedentes à devida proteção ambiental do país dela decorrentes.
Primeiramente, é válido lembrar que os servidores já vêm alertando a administração do IBAMA e o governo federal das medidas necessárias para que a política pública ambiental atenda os preceitos a nós confiados pela sociedade brasileira, como se comprova na Carta dos Servidores nº 384/2019/SUPES-TO e Manifestação Técnica nº 2/2020-NMI-CE/DITEC-CE/SUPES-CE. Embora os servidores não tenham sido convidados a participar da construção dessa nova norma, condição que tem se repetido com frequência na atual gestão, listamos e discorremos sobre as inovações por ela trazidas para que o Presidente do IBAMA e a sociedade tenha ciência, pelo olhar dos servidores, da situação atual frente à nova ordem administrativa que se apresenta.
É importante dizer que os servidores viram com perplexidade a paralisação de todo o processo sancionador ambiental ocasionado pela publicação desta norma. As medidas necessárias para implementação das mudanças trazidas junto aos sistemas corporativos não foram tomadas previamente pela administração central do IBAMA e ICMBio, antes da entrada em vigor da INC MMA/IBAMA/ICMBIO 01/2021. Em face disso, todos os servidores que assinam o presente carta declaram que estão com suas atividades paralisadas pelas próprias autarquias, IBAMA e ICMBio, que não providenciaram os meios necessários junto aos sistemas e equipamentos de trabalho disponíveis para o exercício da atividade de fiscalização ambiental federal, análise e preparação para julgamento de processos de apuração de infrações ambientais.
Todo este embaraço acabou resultando na orientação formal de alguns gestores junto ao IBAMA Sede para que os servidores continuem utilizando os sistemas da forma em que se encontram disponíveis e que permaneçam seguindo o rito processual da Instrução Normativa Conjunta revogada, a saber INC MMA/IBAMA/ICMBIO 02/2020. Por óbvio, consideramos que se trata de orientações irregulares, uma vez que estão em conformidade com norma que já não existe no ordenamento, o que fere o princípio da legalidade do ato administrativo, posto que, mesmo estes atos sendo discricionários da administração pública, eles são dirigidos pelos princípios que conduzem o direito.
Tais orientações, esposadas no Ofício-Circular nº 1/2021/DICAM/CNPSA/SIAM (nº SEi 9719852) e Ofício-Circular nº 10/2021/COFIS/CGFIS/DIPRO (nº SEi 9723046), na verdade soam como tentativa de dividir com os servidores a responsabilidade pelas sérias consequências causadas pela publicação dessa INC pela atual gestão do MMA, IBAMA e ICMBio que sem qualquer medida prévia para garantir seu cumprimento, criou um ambiente de insegurança jurídica e administrativa para todos os servidores envolvidos neste rito, fiscais, técnicos, analistas ambientais e administrativos. Por isso, invocando o princípio da precaução, seguiremos aguardando as administrações do IBAMA e ICMBio evoluírem para a disponibilização dos meios para que o trabalho seja realizado conforme a norma válida.
Com isso, para evitar responsabilização aos servidores e de forma preventiva, estes estão apresentando suas razões no presente documento, à administração das autarquias executoras, IBAMA e ICMBio, para exercer o direito de recusa em iniciar procedimentos com a norma vigente e, muito menos com norma administrativa revogada, tendo em vista que não há meios disponíveis para o cumprimento dos prazos e, com o não cumprimento, há sanções previstas na Lei Federal 8.112/1990, podendo até o servidor ser demitido. Num completo descompasso com a situação das autarquias executoras da Política Nacional de Meio Ambiente, que vem sofrendo há anos com a diminuição no quadro de servidores, ao invés de realizar concurso público e assim prover os cargos vagos, a administração aprova norma que, sem meios para cumprir, pode levar a demissão de mais servidores.
Diante do patente risco de demissão e por não estarem de acordo com todo o imbróglio trazido pela INC MMA/IBAMA/ICMBIO 01/2021, alguns servidores já entraram com pedido de saída da Portaria 1.543/2010 que os designa para função de fiscais e há uma movimentação crescente de novos pedidos. Isso representa um verdadeiro esvaziamento da força de trabalho da fiscalização ambiental federal, sendo de conhecimento que já é pequena tal força de trabalho diante das dimensões continentais do país e os crimes ambientais que vêm crescendo de forma exponencial nos últimos dois anos, fato comprovado pelo aumento do desmatamento e queimadas na Amazônia.
Outra preocupação trazida pela INC MMA/IBAMA/ICMBIO 01/2021 está relacionada aos prazos impostos para os procedimentos, desde a fase de constatação da infração pelo fiscal em campo, até as fases de análises e julgamentos de infrações administrativas, sendo mencionado 12 (doze) vezes o prazo de 05 (cinco) dias na norma. Embora isso transpareça interesse pela celeridade do processo, tal preocupação cai por terra em outros dispositivos, uma vez que, segundo a norma, mesmo que o agente constate a infração em flagrante, este não deverá lavrar a multa ou qualquer outro termo e sim emitir um relatório, sendo que não há prazo para emissão da análise deste relatório pela autoridade hierarquicamente superior, concluindo-se que não há incômodo normativo para a conclusão da fase de persecução.
O fato é que a tecnologia atual disponível foi concebida para que a multa e os termos sejam lavrados pelo fiscal assim que constatada a infração, sendo o processo instaurado imediatamente e de forma automática após aprovação do relatório pelo coordenador da operação de fiscalização em campo, regra esta que garante toda a lisura e transparência necessárias. Neste sentido, sendo obrigatório o uso do Auto de Infração Eletrônico pelos fiscais e não havendo harmonização entre a tecnologia disponível e a norma vigente e publicada, e, não se vislumbrando alternativa para a execução do trabalho, resta configurado um verdadeiro constrangimento e embaraço, que afeta os fiscais e, por consequência, toda a nossa sociedade, que espera ver o resultado do cumprimento do nosso dever.
Em apertada análise, estas imposições se configuram em verdadeiro obstáculo à atividade de fiscalização ambiental federal, encontrando abrigo no art. 69 da Lei Federal 9.605/98 (Lei de Crimes Ambientais) com rebatimento no seu regulamento através do art. 77 do Decreto Federal 6514/2008, que tipifica como infração ambiental administrativa a conduta de “obstar ou dificultar a ação do Poder Público no exercício de atividades de fiscalização ambiental”.
Em suma, as inovações trazidas para a instauração de processos de apuração de infrações (conforme art. 15 da INC 01/2021), traz na autoridade hierarquicamente superior a existência de uma espécie de censor, com ampla e irrestrita discricionariedade, no âmbito dos órgãos de fiscalização ambiental federal, IBAMA e ICMBio; dada a comprovação de que todo ato praticado, toda propositura de apuração de ilícito e imposição de sanções pelos fiscais, deve ser validado por esta figura administrativa, apresentando um pressuposto que todo trabalho realizado pelo fiscal deva ser saneado. Consideramos isso significativamente inovador e estranho aos resultados comprovados das atividades de fiscalização ambiental feitas por nós, servidores do IBAMA e ICMBio imbuídos na função de fiscais, além de ser uma regra que inviabiliza ações de combate ao desmatamento na Amazônia, ações de fiscalização de pesca em mar aberto e zona costeira, de combate às infrações contra a fauna, entre outras, realizadas de forma costumeira em áreas remotas pela fiscalização ambiental federal.
Os processos de apuração de infrações ambientais evoluiu para a forma eletrônica e, para isso os órgãos executores, IBAMA e ICMBio, vem desde 2012 investindo em capacitação dos servidores, compra e desenvolvimento de software, compra de equipamentos, com recursos que giram em torno de milhões, cujo objetivo é consolidar e fazer funcionar o rito processual de forma eletrônica e célere. No entanto, com a publicação da INC MMA/IBAMA/ICMBIO 01/2021, apenas um ano após a publicação da norma anterior, todo esse investimento feito terá que sofrer revisões, o que demandará considerável tempo de criação, desenvolvimento e implantação. Baseado na última mudança de sistemas feita em 2019, para a realização de todos os ajustes haveria necessidade de no mínimo um ano de trabalho e mais recursos financeiros dos órgãos, frente a um orçamento disponibilizado pelo governo federal cada vez menor.
A propósito, causa estranheza aos servidores essas adequações frequentes e justamente quando todo o rito processual estava se consolidando para atender as ações de fiscalização, análise e julgamento de processos, conciliação, conversão de multas e recuperação ambiental. Todo este imbróglio resultou num verdadeiro apagão no rito processual de apuração de infrações ambientais constatadas pelo IBAMA e pelo ICMBio em todo o país.
Por isso, reafirmamos publicamente o compromisso de permanecermos firmes no combate aos delitos ambientais e em protegermos o meio ambiente brasileiro para as presentes e futuras gerações, sempre no estrito cumprimento da legislação ambiental vigente, necessitando para isso também um comprometimento imediato e inequívoco do governo e seus gestores com o fortalecimento das instituições e das normas ambientais, e não o contrário, como vem sendo feito.
Registramos que, no momento, os meios necessários para o estrito cumprimento do nosso trabalho não estão disponíveis e que todo o processo de fiscalização e apuração de infrações ambientais encontra-se comprometido e paralisado frente ao ato administrativo publicado. O resultado imediato e inevitável é a potencialização da sensação de impunidade, que é apontada como uma das principais causas do aumento do desmatamento na Amazônia, bem como de outros crimes ambientais no país
Desta forma, rogamos à toda a sociedade o apoio necessário para que haja, por parte dos gestores do MMA, IBAMA e ICMBio, uma atitude com vistas ao equacionamento do quadro de paralisação total imposto pela publicação da INC MMA/IBAMA/ICMBIO 01/2021 e para que não nos lancem convite em assumir riscos no cumprimento de atos sem a existência de norma vigente que nos ampare. Como já dito, isto é irregular, ilegal e configura mera tentativa de arrefecer uma crise administrativa sem precedentes que se instalou com a alteração da norma.
Servidores da Carreira de Especialistas em Meio Ambiente