Decisão da ministra Rosa Weber atende a pedido da Procuradoria Geral da República. Deputado e irmão, servidor da Saúde, informaram à CPI da Covid que relataram a Bolsonaro as irregularidades mas o presidente não tomou providências
A ministra Rosa Weber, do Supremo Tribunal Federal (STF), autorizou nesta sexta-feira (2) a abertura de um inquérito para investigar o presidente Jair Bolsonaro pelo crime de prevaricação no caso Covaxin. A decisão de Rosa Weber atendeu a um pedido da Procuradoria Geral da República (PGR), apresentado também nesta sexta e o prazo inicial das investigações é de 90 dias.
Prevaricação é um crime funcional, ou seja, que só pode ser cometido por alguém que tenha um determinado ofício, contra a administração pública. Ela ocorre quando um funcionário público, propositalmente, atrasa, deixa de fazer ou faz algo indevidamente em benefício próprio. “Retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício, ou praticá-lo contra disposição expressa de lei, para satisfazer interesse ou sentimento pessoal.” A pena prevista é de multa e três meses a um ano de detenção.
Ao autorizar a abertura do inquérito, Rosa Weber destacou que a investigação tem como “elementos iniciais” as informações obtidas pela CPI da Covid, como os depoimentos dos irmãos Miranda. Segundo a ministra, os depoimentos embasam a “hipótese criminal” a ser investigada.
A ministra destacou ainda que o início da investigação não significa juízo de valor a respeito da responsabilidade do presidente. “A autorização para a apuração da materialidade e autoria de fatos alegadamente criminosos não implica, em absoluto, a emissão antecipada de qualquer juízo de valor a respeito da responsabilidade criminal do investigado, em benefício do qual vigora a presunção constitucional de inocência”, afirmou.
Rosa Weber afirmou que os fatos estão relacionados com o exercício do mandato – portanto, não se aplica, neste caso, a regra constitucional que prevê a imunidade processual para o presidente, que só vale para casos ocorridos antes do exercício do mandato.
“No caso concreto, o exame da petição formulada pela Procuradoria-Geral da República permite concluir que a conduta eventualmente criminosa atribuída ao Chefe de Estado teria sido por ele perpetrada no atual desempenho do ofício presidencial, a afastar, de um lado, a norma imunizante do art. 86, §4o da CF e atrair, de outro, a competência originária desta Suprema Corte para a supervisão do procedimento penal apuratório, ex vi do art. 102, inciso I, alínea b, da CF/88”.
Inicialmente, a PGR defendeu que era preciso aguardar a conclusão da CPI sobre os fatos, mas Rosa Weber cobrou uma posição da procuradoria sobre a notícia-crime apresentada por três senadores ao tribunal pedindo a investigação das denúncias. O vice-procurador-geral, Humberto Jacques de Medeiros, que assina o pedido ao STF, avaliou que, inicialmente, era melhor esperar os indícios reunidos pela comissão para avaliar se houve crime por parte do presidente. A ministra rebateu, afirmando que a PGR não podia se abster de suas obrigações.
Jair Bolsonaro foi avisado no dia 20 de fevereiro, pelo servidor Luis Ricardo Miranda, chefe do setor de importações do Ministério da Saúde, que estava sendo pressionado para autorizar a importação ilegal de 3 milhões de doses da vacina Covaxin da Índia, com cláusulas fora do contrato e com pagamento antecipado de US$ 45 milhões para uma empresa sediada num paraíso fiscal. O servidor impediu que o crime fosse perpetrado e decidiu, junto com o irmão, o deputado Luis Miranda (DEM-DF), informar ao presidente da República.
O presidente disse ao servidor, que estava acompanhado do irmão na visita ao Palácio da Alvorada, que tomaria providências junto à Polícia Federal, mas não encaminhou à autoridades competentes o alerta das ilegalidades como havia prometido aos denunciantes. Nenhum pedido de inquérito foi registrado na Polícia Federal. O Ministério Público e a Controladoria Geral da União não foram acionados. Além de não mandar investigar, o governo iniciou uma violenta perseguição aos irmãos Miranda que chegaram a ser ameaçados publicamente pelo secretário-geral da Presidência.
Em depoimento ao Ministério Público Federal e à CPI da Covid, o servidor Luis Ricardo Miranda reafirmou as denúncias que havia encaminhado ao presidente. Ele e seu irmão, Luis Miranda, disseram aos senadores terem relatado a Bolsonaro as suspeitas envolvendo as negociações para aquisição da Covaxin. O deputado ainda informou à CPI que, ao ouvir o relato, Jair Bolsonaro afirmou que já sabia do que estava ocorrendo e disse até o nome do deputado Ricardo Barros, seu líder na Câmara dos Deputados, como operador do esquema.
Leia a íntegra do pedido de abertura do inquérito
Excelentíssimo Senhora Ministra Relatora,
O Ministério Público Federal, levando em consideração o que dispõem o artigo 102, inciso I, alínea “b” da Constituição da República e o artigo 21, inciso XV, do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal, vem à presença de Vossa Excelência, em atenção à percuciente compreensão contida no Despacho e-STF n. 002, de 1º de julho de 2021, promover
INSTAURAÇÃO DE INQUÉRITO
para a apuração dos fatos veiculados na petição em epígrafe, na qual os senadores Randolph Frederich Rodrigues Alves, Fabiano Contarato e Jorge Kajuru Reis da Costa Nasser atribuem ao Excelentíssimo Senhor Presidente da República Jair Messias Bolsonaro o cometimento, em tese, da infração penal descrita no artigo 319 do Código Penal.
- Os noticiantes reportam-se a depoimentos prestados no último dia 25 de junho pelo deputado federal Luis Claudio Fernandes Miranda e pelo seu irmão, Luis Ricardo Fernandes Miranda, durante a 27ª Reunião da Comissão Parlamentar de Inquérito da Pandemia, instaurada por meio do Requerimento n. 1371/2021 e do Requerimento n. 1372/2021.
- Na ocasião, o primeiro depoente disse ter advertido o chefe do Poder Executivo federal que o segundo – servidor público do Ministério de Estado da Saúde – sofrera “pressão” para autorizar o pagamento por parte do Ministério da Saúde para a pessoa jurídica que intermediara a aquisição de 20 milhões de doses da vacina Covaxin, produzida pela empresa indiana Barath Biotech.
- Além de ter dito, segundo o relato, que acionaria a Polícia Federal, o Presidente da República teria relacionado as irregularidades supostamente noticiadas pelos irmãos Miranda ao deputado federal Ricardo Barros, atual líder do governo na Câmara dos Deputados.
- O alerta de supostas irregularidades no contrato que visava a compra dos imunizantes, que também teria sido dado ao então titular da pasta, general Eduardo Pazuello, durante uma viagem oficial, foi feito, de acordo com os depoentes, pessoalmente pelos dois no dia 20 de março próximo passado, em uma reunião realizada no Palácio da Alvorada.
- A despeito da dúvida acerca da titularidade do dever descrito pelo tipo penal do crime de prevaricação e da ausência de indícios que possam preencher o respectivo elemento subjetivo específico, isto é, a satisfação de interesses ou sentimentos próprios dos apontados autores do fato, cumpre que se esclareça o que foi feito após o referido encontro em termos de adoção de providências.
- Por essa razão, com o objetivo de contribuir para a formação de opinião quanto à viabilidade de se promover, ou não, ação penal neste caso, indicam-se, desde já, as seguintes diligências a serem cumpridas, mediante a autorização de Vossa Excelência, pela Polícia Federal:
(a) solicitar informações à Controladoria-Geral da União, ao Tribunal de Contas da União, à Procuradoria da República no Distrito Federal, e em especial à Comissão Parlamentar de Inquérito da Pandemia sobre a pendência de procedimentos relativos aos mesmos fatos, e, em caso positivo, o compartilhamento de provas;
(b) produzir provas, inclusive através de testemunhas, sobre:
(b.1) a prática do ato de ofício após o prazo estipulado ou o tempo normal para sua execução, com infração a expressa disposição legal ou sua omissão;
(b.2) a competência dos supostos autores do fato para praticá-lo;
(b.3) a inexistência de discricionariedade quanto à prática ou omissão do ato pelo agente;
(b.4) caracterização de dolo, direto ou eventual, acrescido do intuito de satisfazer interesse ou sentimento pessoal;
(c) ouvir os supostos autores do fato.
- No aguardo da abertura do inquérito, a Procuradoria-Geral da República sugere, de início, o prazo de 90 dias para a efetivação das providências apontadas, entre outras que porventura a autoridade policial entender cabíveis, permanecendo em prontidão para dar impulso regular ao feito.
Brasília, 2 de julho de 2021.
HUMBERTO JACQUES DE MEDEIROS
Vice-Procurador-Geral da República