Un homenaje
Para tu ausencia
Lo llenas todo
Con tu presencia.
Homenaje – Pablo Milanés
Há um ano falecia Sérgio Rubens de Araújo Torres, o Serjão, como o chamávamos. A Revolução Brasileira perdia, então, um de seus mais combativos e destacados dirigentes. O Centro Popular de Cultura da UMES perdia seu idealizador, fundador e principal construtor. O Brasil – e a Humanidade, um de seus filhos mais íntegros e generosos, uma pessoa na qual as palavras patriota, comunista e revolucionário atingiam a sua mais plena dimensão. E eu perdi um amigo, um grande amigo, uma profunda amizade, daquelas que poucas pessoas conseguem ter a felicidade de desfrutar em suas vidas.
Ao completar este primeiro ano de um luto que não dá sinais de acabar, senti a necessidade de escrever algo, com o desafio de romper um bloqueio criativo que se impôs nos últimos doze meses, nos quais apenas consegui rabiscar tecnicalidades. Mas por onde começar, o que destacar?
Poderia desfilar loas – nenhuma delas vã – à sua trajetória de luta revolucionária. Poderia lembrar do jovem artista em formação, que dividia acordes no violão com Ricardo Vilas e Ronaldo Bastos e a câmera filmadora com os colegas do Colégio Pedro II – conquistando dois importantes prêmios cinematográficos –, e que foi chamado a combater o arbítrio da Ditadura de 1964. Foi preciso, e a mão que tocava o violão, fez a guerra, parafraseando os irmãos Valle. Entrou para a clandestinidade e se tornou guerrilheiro destemido – e temido. E falar sobre como se destacou pela coragem, firmeza, desprendimento e – sem nenhum paradoxo – serenidade. Mas, com certeza, outros têm mais a falar sobre isso do que eu.
Ou, então, poderia destacar seu importantíssimo papel como organizador do campo democrático, tanto na superação da Ditadura, quanto na reconstrução democrática e nos tempos difíceis que vivemos desde a eleição do Coiso, em 2018. Salientar suas extraordinárias contribuições e capacidade agregadora na construção do MR8, na reconstrução das entidades populares, na fundação e organização do Jornal Hora do Povo, na condução do Partido Pátria Livre (PPL) desde o seu nascimento até a fusão com o Partido Comunista do Brasil (PCdoB). Mas, também aqui, outros companheiros talvez possam falar mais e melhor.
Além disso, faltariam linhas. Seria preciso um livro, talvez mais de um, para dar conta destes dois aspectos de sua vida, para falar de um homem que Brecht certamente não titubearia em classificar entre os imprescindíveis. Resta-me, então, tentar relembrar, tão brevemente quanto eu conseguir, os 28 anos de convivência intensa e profícua que tivemos no processo de construção do CPC. Corro, logicamente, o risco de cair na pieguice, pelo que peço, antecipadamente, desculpas.
Não lembro exatamente quando conheci o Sérgio pessoalmente – já o conhecia como lenda desde o começo da militância, nos primeiros anos da década de 1980. Mas os contatos pessoais devem ter iniciado em meados da década, no processo de organização da Juventude Revolucionária 8 de Outubro. Por volta de 1990, em uma intensa campanha pela direção do Sindicato dos Metalúrgicos do Rio de Janeiro, fui destacado para auxiliá-lo na produção – diária! – do jornal da campanha. Na antiga sede do Jornal Hora do Povo, próximo à Cinelândia, no Rio de Janeiro, fiquei abismado com a sua capacidade de trabalho. “O cara não dorme!”, pensei. A qualquer hora, do dia ou da noite, ele estava lá, em intermináveis conversas telefônicas com Cláudio Campos, em discussões com os companheiros da chapa, escrevendo. Nenhum sinal de fadiga. Quando muito, descia do prédio, comprava um prestobarba, se barbeava e voltava ao trabalho. Entrada a madrugada, me entregava o disquete com as matérias, o boneco do jornal e me despachava, primeiro para um birô gráfico, depois para o Jornal dos Sports. E com instruções precisas sobre com quem falar e sobre os horários: o jornal precisava chegar às equipes antes das 5 da manhã! Talvez, então, descansasse um pouco. Mas quando eu voltava no outro dia, ele já ia longe no cumprimento de suas tarefas. A vida de revolucionário exige muita dedicação, aprendi…
Anos depois, em 1994, fui transferido para São Paulo. Sérgio, recuperando-se do primeiro de seus infartos, estava dando início à construção do trabalho do CPC da UMES, que já tinha editado alguns livretos, filmado “Caras-Pintadas” e “Pega Ladrão” e realizado alguns cursos. Mais uma vez o estudante de jornalismo – já quase jubilado – foi destacado para uma tarefa junto ao Serjão: fazer a divulgação e a assessoria de imprensa da peça “Querem Bater minha Carteira”, que estrearia em setembro daquele ano. Reencontro, então, o incansável trabalhador com quem havia trabalhado anos antes: atento à confecção dos materiais, dos relises, a cada conversa com a imprensa, aos atores, à equipe, aos ensaios, à estrutura do Teatro da UMES, à mobilização do público, enfim, a cada detalhe da montagem.
A partir daí nosso contato foi intenso e quase diário até o seu falecimento. Anos de reuniões todos os domingos, à tarde. Era quando fazíamos os materiais dos tantos projetos que o CPC desenvolveu: Cantarena, Serenata, Campeonatos de Repente. Mas era também a hora de fazer planos, imaginar filmes, discos, livros, novos projetos. E – talvez o que mais me agradasse – hora de um papo solto, sobre partido, política, filosofia, história, vida. Era a hora em que ele, não raro, contava, com assombrosa humildade, sobre suas peripécias na clandestinidade e sobre os personagens que o acompanharam na luta. Não é difícil, para quem conheceu o Serjão, imaginar o quanto me arrependo de não ter gravado muitos destes encontros e, principalmente, de não ter conseguido aprender ainda mais de tão generoso professor.
O trabalho do CPC foi crescendo e o Sérgio passou a chamar mais gente para os encontros de domingo. Cada vez que alguém queria propor algo novo para o CPC, era chamado para uma “domingueira” de conversa (quem não o conhecia estranhava o horário). Nos anos 2000 a produção do CPC cresceu de tal forma que conversas tête-à-tête já não davam conta de todas as demandas. Como bom organizador, Sérgio formou a Base Especial de Cultura do MR8, que teria sequência no PPL, assistida direta e diligentemente por ele. Em 2005 perdemos Cláudio Campos, grande parceiro do Sérgio na formação do MR8, o que acarretou ainda mais tarefas ao camarada. Mas nem de longe isso significou um afastamento ou desatenção com o trabalho do CPC. Parece que as vicissitudes aumentavam sua capacidade de trabalho. Se hoje o CPC da UMES é uma referência de qualidade na área da cultura isso se deve – além da parceria com tantos artistas talentosos – aos incansáveis esforços de Sérgio em fazer com que cada um de nós desse o seu melhor.
É claro que sinto um imenso orgulho de ter sido companheiro de jornada do Sérgio na construção do CPC. Mas é maior ainda a falta que ele faz! Confesso que não foram poucas as vezes, neste último ano, em que, lendo algo interessante ou assistindo alguma coisa boa, pensei: “Tenho que contar isso para o Serjão!”. E, triste, lembrar que não, não vou mais contar. E que também não vou mais oferecer uma carona e ficar, por uma ou duas horas, conversando, dentro do carro, em frente à sua casa. Às vezes parece que o telefone vai tocar – tarde da noite ou em um feriado -, e que teremos mais uma daquelas conversas que chegavam a quatro horas! Mas não toca mais… Chego a sentir uma certa raiva pelas perguntas que não fiz, pelas coisas que não consegui aprender, pelos bons momentos que hoje vão se esmaecendo na memória.
Sou absolutamente incompetente para dissertar sobre o luto ou suas fases. Sei, pelo que dizem, que ele acaba com a aceitação. Dilui-se a dor, ficam as boas lembranças. A teoria é fácil. Mas como fazer no caso de perda tão grande, que inclui, além da dor pessoal – a perda de um amigo ímpar – também a falta de um companheiro tão lúcido e valoroso? Como prescindir, em nossa luta diária, de suas análises certeiras, de seu conhecimento profundo da história e da condição humana, de sua energia, que parecia infindável? Certamente não com os argumentos da autoajuda barata: “ninguém é insubstituível”, frase cunhada pela “psicologia fordista”, que transforma o ser humano em engrenagem. Somos todos, de certa forma, insubstituíveis. E o Serjão, com certeza, não tem substitutos à altura. Resta-nos – a todos nós, seus companheiros de luta – juntar forças, lembrar seus ensinamentos, seus compromissos e continuar pela trilha que ele apontou. Manter em pé o que ele construiu. Fazer acontecer o que ele – e nós! – sonhamos. Já vencemos o coisa-ruim. A Frente Ampla, pela qual ele tanto trabalhou, configurou-se no segundo turno das eleições. Não foi pouco o esforço para conseguir isso sem o Sérgio! Mantivemos o CPC funcionando e, semana que vem daremos início a mais uma Mostra Mosfilm de Cinema Soviético e Russo, com uma programação ainda elaborada por ele. Mas tem muito mais trabalho duro pela frente. Cumpriremos, em homenagem à sua ausência – preenchida por sua indelével presença!
Acabo por aqui – em pouco mais de quatro laudas, como ele pedia nos textos que me encomendava. Escrevi como desabafo, na tentativa de desfazer o nó que não me sai da garganta há um ano. Sei que o meu sentimento é também compartilhado por todos os camaradas que com ele conviviam, no Partido, na Juventude, no CPC, na UMES, no HP. E sei, também, que para seus amados familiares – Júlia, Bernardo, Janaína, Bento, Athena e Ícaro – a falta que ele faz é ainda maior. Em um texto com tantas citações e paráfrases, encerro com mais uma, de outro Sérgio, o Bittencourt: na reunião está faltando ele, e a saudade dele está doendo em nós…
Viva Sérgio Rubens!
VALÉRIO BEMFICA
Presidente do (CPC-UMES)
Centro Popular de Cultura da União Municipal dos Estudantes Secundaristas de São Paulo