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ELIAS JABBOUR*
Temos assistido, nas últimas semanas, a uma verdadeira tempestade semiótica nos oferecendo uma série de análises sobre o inexorável declínio econômico chinês, suas consequências internas e externas. Evidente que pode gerar algum espanto nos acostumarmos com a ideia de um país crescer a dois dígitos por cerca de 30 anos para logo em seguida entrar em uma etapa onde o crescimento quantitativo deixa de ser tão relevante. Aqui está um ponto a ser levantado: a transformação do crescimento econômico chinês em algo mais qualitativo. Algo a ser exposto também é sobre as razões pelas quais os grandes veículos de comunicação e think tanks sediados nos Estados Unidos estarem concentrando energia em algo que os dados, literalmente, não comprovam. Estaríamos vivendo uma distopia?
Aos fatos, a economia chinesa tem previsão de crescimento para 2023, segundo o FMI, de 4,9%. Os Estados Unidos e Japão deverão crescer 1,3% e a União Europeia deverá ter crescimento de 1,0%. Ou seja, a China deverá crescer mais do que as três economias citadas de forma combinada. Há quem sustente que pelo fato de a China ainda contém uma grande parte de sua mão de obra ocupada na agricultura, logo existe “espaço” para maior crescimento e produtividade. Acredito que os termos da equação são outros. O primeiro deles o número de empregos urbanos a serem gerados este ano: 12 milhões na China. O país já alcançou protagonismo tecnológico em pelo menos 30 áreas sensíveis e caminha de forma mais acelerada do que se imaginava para alcançar os EUA nas chamadas infraestruturas de semicondutores.
Mas, contradições surgem e ressurgem ciclicamente como em qualquer sociedade em movimento, sendo certamente seu motor primário. O desemprego oficial entre jovens entre 18 e 24 anos alcançou 25%, o que significa algum indício de desequilíbrios sociais à vista cuja solução demandará o melhor dos cerca de dois milhões economistas e engenheiros de projetos responsáveis pela busca de solução de grandes questões levantadas pela realidade. Desde que o governo chinês decidiu furar a bolha imobiliária, o país convive com cerca de 25% de sua economia (construção civil) em sérias dificuldades, o que já começou a afetar o setor público da economia e as empresas estatais que foram assumindo pedaços de grandes companhias como a Evergrande. A leve queda das exportações, importações e dos preços internos contribuem com um quadro deflacionário que preocupa o mundo, evidente.
Outra decisão a ser levada em consideração no conjunto da análise é o enquadramento dos monopólios privados pelo Estado. A ofensiva contra o “avanço desordenado do capital” em vários setores da economia tem sido alegada como um dos motivos da queda brusca dos investimentos do setor privado. Estudo recém lançado do Peterson Institute for International Economics demonstra que, pela primeira vez nas últimas décadas, o setor público da economia passou o peso do setor privado entre as cem maiores companhias do país.
Assim sendo, mudam os termos da questão. Como a China consegue crescer quase 5% em 2023 apesar desta gama de contradições? Em primeiro lugar, o país alcançou um nível de capacidade de gerenciamento de seu próprio futuro que o pode condicionar como e quanto crescer, a depender da contradição principal pela qual está exposta a sua sociedade. Algumas ideias-força são lançadas: “crescimento com qualidade”, “civilização ecológica socialista” e principal delas, “prosperidade comum”. As questões com as quais se defronta o Estado chinês hoje são completamente diferentes daquelas do início das reformas econômicas. Atualmente o eixo da contradição principal deixou de ser o baixo nível de desenvolvimento do país em face das necessidades materiais da população para questões relacionadas ao enfrentamento das desigualdades sociais e regionais, a transição energética e o desafio geopolítico que os Estados Unidos impõem sobre o país.
Esse desafio externo que expomos explica muito da tentativa de impor a visão de um declínio chinês aos olhos dos interesses dos Estados Unidos em geral e de Joe Biden em particular. Aqui lanço dois pontos. O primeiro é conceitual e se encerra na proposta para quem os chineses deveriam investir menos investimentos e consumir mais. Esta falsa contradição é primária em termos de teoria econômica e falsa em termos práticos. Vejamos o renomado economista e prêmio Nobel, Paul Krugman para quem o crescimento anterior chinês baseou-se “em grande parte ao acompanhar a tecnologia ocidental”, mas agora enfrenta o problema de demasiada poupança, demasiado investimento e muito pouco consumo. Precisa, portanto, de “reformas fundamentais” para “colocar mais rendimento nas mãos das famílias, para que o aumento do consumo possa substituir o investimento insustentável”.
Algumas questões são fundamentais: se a China deveria ter mais carros, mas estradas ruins? Será que são necessários mais televisores, mas menos apartamentos para os instalar? Será que a população precisa de mais alimentos e roupas, apesar de já estar, na sua maioria, bem alimentada e vestida decentemente há três décadas? Ou seja: 1) a queda da taxa de investimentos no país provocaria uma verdadeira hecatombe em termos de consumo popular e 2) fundamental lembrar que os salários médios chineses cresceram 270% nos últimos dez anos, ou seja, acima do crescimento do PIB, da inflação e da produtividade do trabalho.
O outro ponto é mais político e geopolítico. É evidente que às pretensões de Biden e de seu entorno é importante vender a ideia de um declínio chinês. Afinal, diante de imensos desafios internos a agressividade externa (chinesa) serviria como boa resposta. Ou seja, montar um cenário ideal para mostrar a China como uma ameaça à segurança mundial é fundamental aos EUA e Biden, independente de não haver nenhuma base militar chinesa próxima aos EUA e não se ter notícia da passagem de algum porta-aviões chinês passeando pelo Golfo do México. O contrário é completamente verdadeiro.
Em suma, a China enfrenta uma série de pedras em seu caminho. Mas as perguntas a serem feitas estão longe da busca de resposta ao seu declínio econômico. Ao contrário.
*O autor é consultor da Presidência e da Diretoria de Pesquisas do New Development Bank (Banco dos BRICS) e professor associado licenciado da Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (FCE-UERJ), do Programa de Pós-Graduação em Ciências Econômicas (PPGCE-FCE-UERJ) e do programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais (PPGRI-UERJ)
-Matéria originalmente publicada em “Observatório Internacional do Século XXI”, publicação da UFRJ, boletim de setembro de 2023