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Em resposta ao ocorrido, o CNPq emitiu um pedido de desculpas, reconhecendo a inadequação do juízo emitido
A professora e pesquisadora Maria Carlotto, lotada na Universidade Federal do ABC (UFABC) em São Paulo, compartilhou em suas redes sociais um parecer preconceituoso recebido durante um processo seletivo para uma bolsa de produtividade em pesquisa do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Em suas postagens, ela destacou que, dentre as justificativas para a avaliação negativa, foi dito que as “gestações atrapalharam” iniciativas da sua carreira.
“Resultado preliminar da bolsa produtividade do CNPq: reconhece minha carreira, mas aponta que não fiz pós-doutorado fora. Pandemia? Governo Bolsonaro? Não… ‘Provavelmente suas gestações atrapalharam essas iniciativas, o que poderá ser compensado no futuro’. Vontade de chorar”, escreveu no X, antigo Twitter. Segundo ela, o pós-doutoramento não era critério para o benefício. Junto a esse parecer, veio outro, que foi “muito favorável”, conta a pesquisadora.
Maria Carlotto é formada em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo em 2005. Concluiu um mestrado em Sociologia, também na USP, sobre a nova Política Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação e seus efeitos sobre o sistema nacional de pesquisa e inovação em 2008. Entre 2010 e 2011, realizou um estágio na Université de Paris IV-Sorbonne, na área de sociologia do conhecimento. Em 2014, defendeu o doutorado no Programa de Pós-graduação em Sociologia da USP.
Atualmente, ela é professora do Bacharelado em Ciências e Humanidades, do Bacharelado em Relações Internacionais (BRI) e do Programa de Pós-graduação em Economia Política Mundial da Universidade Federal do ABC (UFABC), onde coordena o grupo Neoliberalismo, Democracia e Mudança Estrutural do Espaço Intelectual Brasileiro.
O caso envolvendo Maria Carlotto, expôs de forma contundente as persistentes desigualdades no ambiente acadêmico brasileiro. Após o relato da pesquisadora, diversas denúncias também foram realizadas por outras mulheres que tiveram a “gravidez” como empecilho para a carreira acadêmica.
Em resposta ao ocorrido, o CNPq emitiu um pedido de desculpas, reconhecendo a inadequação do juízo emitido e ressaltando a ausência de requisitos específicos para estágios no exterior.
O CNPq afirmou que o juízo é “inadequado”, tanto porque um estágio no exterior não é requisito para o edital, quanto por ser “preconceituoso com as circunstâncias associadas à gestação”.
Segundo a agência de fomento, a avaliação tratou-se de um parecer ad hoc, que são emitidos por especialistas, respeitando o sigilo da autoria, mas que não são corroborados comitê assessor responsável pelo julgamento. Ele serve como subsídio para esse último, mas pode ser ignorado.
“O CNPq tem como valores a busca de maior inclusão considerando dimensões de gênero, étnico-raciais e assimetrias regionais e não tolera atitudes que expressem preconceitos de qualquer natureza, sejam eles de gênero, raça, orientação sexual, religião ou credo político. Por essa razão, a agência instruirá seu corpo de pareceristas para maior atenção na emissão de seus pareceres e a Diretoria Científica levará este caso concreto à Diretoria Executiva do CNPq para o exame das providências cabíveis”, informou.
“Não é, portanto, compatível com os princípios que regem as políticas desta agência de fomento. A agência tem em suas normas, inclusive extensões de períodos de bolsa e de avaliação em decorrência de maternidade”, informou a nota.
Além disso, a agência informou que o juízo foi formulado em “parecer ad hoc”, quando são emitidos por especialistas. E que pode não ser corroborado pelo comitê assessor responsável pelo julgamento do edital.
Dessa forma, a Diretoria Científica informou que levará o caso à Diretoria Executiva do CNPq “para o exame das providências cabíveis”.
“O CNPq tem como valores a busca de maior inclusão considerando dimensões de gênero, étnico-raciais e assimetrias regionais e não tolera atitudes que expressem preconceitos de qualquer natureza, sejam eles de gênero, raça, orientação sexual, religião ou credo político”, informou a nota ainda.
Vale destacar que a professora — assim como qualquer outro proponente — pode entrar com recurso após o julgamento do edital. A medida serve para outra banca julgar o pedido de bolsa.
Maria voltou ao Twitter e classificou o posicionamento do CNPq como importante, mas, avaliou que a agência se eximiu de questões importantes. “O que mais me incomodou nesse processo é que, no caso da minha área, a Sociologia, havia um incentivo para mulheres mães submeterem projetos por uma suposta compensação das licenças maternidade. Como, então, os pareceristas não foram minimamente treinados e letrados?”, questionou;
“Foi, sim, um erro do parecerista Ad hoc, mas foi tbm do CNPq, que deveria ter interditado o parecer como um todo. Na prática, o CNPq me incentivou a submeter um projeto pós-licença-maternidade e me submeteu, depois, a uma violência de gênero”, continuou.
De acordo com ela, embora o CNPq tenha repudiado o teor preconceituoso do parecer, ele foi o considerado para o resultado final preliminar – que cabe recurso. “O parecer favorável foi totalmente desconsiderado.”
“Mesmo que eu use o meu direito ao recurso, isso não apaga a violência cometida. E, de novo, não é sobre mim e sobre este caso, que não deve ser isolado, mas sobre como vamos construir editais realmente abertos a mulheres, especialmente aberto a mulheres mães”, escreveu a professora.
Na quinta, 28, a UFABC disse estar “perplexa” e “indignada” com o que a professora da instituição havia passado, em nota assinada pela reitoria. “A UFABC discorda veementemente do exposto no parecer e rejeita de forma decidida e absoluta qualquer postura que reitere a perpetuação de estereótipos prejudiciais e discriminatórios em relação às mulheres e às mães envolvidas em pesquisas acadêmicas.”
“Não é factível que a maternidade seja encarada como um obstáculo à excelência acadêmica – o contrário, é preciso que a maternidade e a parentalidade sejam reconhecidas como vivências enriquecedoras capazes de contribuir para a diversidade e a ampliação de perspectivas críticas no âmbito da pesquisa, do ensino, da extensão e da vida universitária”, diz a nota.
QUESTIONAMENTOS
A deputada Erika Hilton (Psol) se manifestou nas redes sociais e afirmou que mulheres tem direito de ter filhos e tem direito de serem cientistas, sem que ter filhos afete negativamente sua carreira na ciência, “isso é o básico. Mas precisa ser conquistado”, pontuou. “E ignorar isso é reservar novamente às mães um trabalho de cuidado não-remunerado. Dessa vez, o cuidado com algo que devia ser preocupação de todos”.
‘Esse problema não é de hoje, e não é só do Brasil. Mas o Brasil de hoje pode, e deve, cumprir com suas obrigações com a igualdade, a não discriminação e a inclusão. Por isso oficiei o CNPq, comandado pelo Ricardo Galvão, por quem tenho grande admiração, questionando, entre outros. Quais são os programas de incentivo voltados às mulheres, especialmente mães, em curso no CNPq? Se existem mecanismos de combate à discriminação de mães pesquisadoras nos editais do órgão, e se há planos de criar novos mecanismos de proteção à elas? Os números de mulheres e mães beneficiárias das bolsas de pesquisa do CNPq?
Até o momento, o CNPq não se pronunciou sobre os questionamentos da deputada.