País está sendo sangrado em quase R$ 1 trilhão por ano em juros e porta-vozes do “mercado” inventam a falácia de que esses recursos não estão saindo dos cofres públicos
Um autor alemão muito conhecido alertou certa vez para o fato de que a maioria dos escribas que atuam nos jornais dos bancos são exímios manipuladores de dados e se esmeram em esconder da sociedade em geral os verdadeiros destinos dados aos recursos públicos. Nesse sentido, uma alegação recente de parte da mídia – de que os juros da dívida pública não impactam a Educação, e a Saúde – ilustra bem o fato.
Matéria do jornal Estadão sustentou, na última quarta-feira (20), que “não há um único real de impostos sendo gasto com juros da dívida”. O autor da matéria afirma que quem diz o contrário é mentiroso. “Mentem aqueles que dizem que há dinheiro da Saúde e da Educação sendo gasto com juros”, diz o fariseu.
GOVERNO GASTA DEMAIS
Segundo o jornal, o governo só estaria tendo que pagar esses juros altos porque “gasta demais” e, por isso, “tem que pedir dinheiro emprestado no mercado financeiro”.
A narrativa tem a intenção clara de abafar o escandaloso crescimento das despesas públicas com o pagamento de juros da dívida pública, que estão entre os mais altos do mundo. Despesas com juros já consomem quase 1 trilhão de reais de dinheiro do Tesouro por ano. Ela faz parte também da cruzada para que sejam feitos pelo governo cortes nas verbas sociais e nos investimentos públicos.
Vejamos como se dá a manipulação. Após a implantação do “Consenso de Washington”, em 1989, o orçamento foi oportunisticamente dividido em dois. O “orçamento fiscal” e o “orçamento monetário”. Receitas fiscais e despesas com a sociedade passaram a ser chamadas de “primárias”. Do outro lado, no “orçamento monetário”, passou a existir o que eles chamaram de “receitas financeiras”, que nada mais são do que os recursos obtidos pelo governo junto ao mercado financeiro para o pagamento dos juros, a rolagem e as amortizações da dívida.
Segundo os dogmas neoliberais, a “obtenção” desses recursos financeiros só pode ser feita junto ao “mercado do dinheiro”, a juros extorsivos e sem nenhum controle da sociedade. O Banco Central “independente” faz isso operando com títulos do governo e alimentando diariamente a pirâmide do endividamento público. Ao contrário das despesas primárias, essas ‘despesas financeiras’ são feitas sem nenhum limite.
DIVISÃO ARBITRÁRIA DO ORÇAMENTO
A divisão arbitrária do orçamento não ocorreu por acaso. Ela atendeu a grandes interesses. Com ela, ficou definido que os pagamentos das despesas financeiras são obrigatórios e prioritários. Já as despesas com a sociedade são limitadas e passíveis de cortes e contingenciamentos. Criou-se a “Lei da Responsabilidade Fiscal”, que deveria ser chamada “Lei de Prioridade Total aos Bancos”, por dar primazia total e absoluta às despesas financeiras.
Com isso, as despesas primárias, ou seja, aquelas destinadas ao conjunto da sociedade, Saúde, Educação, etc, passaram a ser rigorosamente limitadas por uma verdadeira ditadura fiscal e pelos tetos de gastos. Tanto o de Temer que limitava os gastos à inflação do ano anterior, quanto o atual, que limita os investimentos e gastos sociais a 70% do crescimento das receitas do ano anterior.
Os autores da tese de que os juros altos não prejudicam o país escondem – e bem escondido – que o crescimento dos gastos do governo é exatamente consequência do aumento vertiginoso dos pagamentos dos juros da dívida. E, pior, quem decide a taxa de juros e, consequentemente, o aumento dos gastos do governo, é o próprio Banco Central, instituição completamente dominada pelos representantes dos bancos e monopólios privados, que, coincidentemente, são credores do governo.
Eles decidem elevar os juros e, para pagar esses juros mais altos, promovem o aumento da dívida pública. Ao mesmo tempo, fazem um grande alarido contra o crescimento da dívida. Dizem que o governo está gastando demais com programas sociais e com a Previdência. Como o orçamento é finito e os gastos financeiros são “intocáveis”, a pressão recai – como já está recaindo – sobre os gastos com Educação, Saúde, aposentados, etc.
TRABALHANDO PELOS CORTES
O “raciocínio” da equipe econômica do governo vai nesta mesma direção, resultando na pressão que estamos assistindo sobre o presidente Lula por um pacote de cortes na Saúde, na Educação, na recuperação do salário mínimo, nos benefícios sociais e nos investimentos públicos.
Baseados na premissa falsa, alardeada pelos bancos, de que o governo gasta muito com a sociedade, os neoliberais, de dentro e de fora do governo, intensificam a cruzada pelos cortes sociais.
A cada meio ponto percentual de elevação da taxa Selic, o país é obrigado a pagar cerca de R$ 50 bilhões a mais de juros ao ano. Por outro lado, o receituário neoliberal prega a anulação das funções do Estado e praticamente proíbe que o governo obtenha recursos com emissões monetárias. Resultado: países que aceitam esse receituário são obrigados a buscar os recursos na jogatina do “mercado financeiro” e a se sujeitar à agiotagem do rentismo. É o que está ocorrendo no Brasil.
Numa análise rápida da proposta orçamentária para 2025, podemos perceber bem o que está por trás da tese defendida pelos rentistas. Fica claro que é falaciosa a versão de que não saem recursos da Saúde e Educação para o pagamento de juros.
ORÇAMENTO DE 2025
Vejamos o orçamento proposto para 2025, que é de R$ 5,9 trilhões.
A previsão é que o Governo Federal arrecade R$ 2,91 trilhões de receitas primárias. Desse valor, segundo dados do Ministério do Planejamento, 28,71% seriam provenientes do Imposto de Renda; 24,55% viriam de receitas do RGPS; 13,37% oriundos da Cofins; e 33,37% das demais receitas primárias.
Pelo lado do “orçamento monetário”, a previsão é que a União “arrecade” R$ 2,79 trilhões com as “receitas financeiras”. Desse valor, 59,30% correspondem ao refinanciamento da dívida; 30,36% à emissão de títulos; e 10,33% às demais receitas financeiras.
Como podemos ver, na parte monetária não há receita real. O que existe é apenas um aumento do endividamento público com emissão de títulos do governo. O resultado é a elevação da dívida. Isso se dá porque o governo tem que “desembolsar” recursos para o pagamento dos juros que vão vencendo no decorrer do ano.
JURO ELEVA DÍVIDA
O aumento do endividamento não ocorre em virtude de grandes obras ou grandes projetos para melhorar a vida da população. A taxa de investimento está bem abaixo do necessário para o país crescer de forma sustentada. A dívida pública cresce centralmente porque os juros – que estão entre os maiores do mundo – puxam-n cada vez mais para cima. Mais de 80% do aumento do endividamento se dá por conta da alta dos juros.
Os 30,36% computados como uma parte das “receitas financeiras” da União não passam de aumento da dívida com emissão de títulos, feita exatamente para garantir o pagamento dos juros. São precisamente os R$ 819 bilhões destinados aos juros até setembro deste ano. Em suma, o juro cresce e, para pagá-lo, a dívida cresce e, como consequência, mais juro tem que ser pago. E assim segue a bola de neve interminável da ciranda imposta ao país.
É neste ponto que está o “mandrake” na alegação dos rentistas. As despesas todas têm que ser pagas. A Saúde demanda pagamentos, a Previdência idem e os juros também. O dinheiro sai do mesmo lugar: do orçamento público. Mas há uma diferença fundamental entre o pagamento dos juros e das demais despesas públicas: não há nenhum “contingenciamento” para juros. Seu pagamento é “obrigatório”.
É um sofisma, portanto, dizer que não sai dinheiro do caixa para pagar os juros, porque as contas primárias estão negativas. Ao mesmo tempo que o pagamento dos juros é “sagrado” e intocável, há uma grita geral dos bancos e sua mídia contra a elevação da dívida pública. Resultado: há que se cortar em algum lugar. Como a despesa financeira é “intocável”, sobram os cortes na Educação, Previdência, etc.
DINHEIRO DO JURO SAI DO SOCIAL
O que os integrantes da Faria Lima querem, exatamente, que ocorram cortes sociais, como os que estão sendo exigidos do governo, no BPC (Benefício de Prestação Continuada), combate aos pisos constitucionais da Saúde e Educação, ataques ao salário mínimo, às aposentadorias, etc, etc. Dizer que não se está tirando dinheiro da Saúde, da Educação, da Ciência e Tecnologia, etc, para o pagamento dos juros é, portanto, uma enrolação sem tamanho, uma verdadeira farsa.
O fato é que o país está na verdade sendo sangrado violentamente pela especulação financeira. Os recursos estão sendo destinados ao pagamento dos juros altos praticados pelo BC. Com isso, é evidente que falta dinheiro para a tão ansiosamente aguardada melhoria das condições de vida da população. Dizer o contrário, que se gasta muito com o povo, é uma farsa. Falta dinheiro para o social, para a retomada robusta do crescimento econômico e para a reconstrução da indústria, devastada por quatro décadas de políticas neoliberais.
SÉRGIO CRUZ