O recém anunciado, pelo governo Trump 2.0, tarifaço contra os três maiores parceiros comerciais dos EUA, México, Canadá e China, a pretexto de um problema interno dos EUA, o fentanil, pode-se dizer é a primeira salva da guerra econômica contra o mundo inteiro com que a administração MAGA pretende deter e reverter o declínio dos Estados Unidos, analisa o economista Michael Hudson em seu artigo publicado pouco antes das sanções de Tump.
As consequências da desembestada política America First no mundo inteiro foram examinadas pelo respeitado articulista norte-americano, para quem Trump acha que a economia dos EUA é “como um buraco negro cósmico, ou seja, um centro de gravidade capaz de puxar todo o dinheiro e excedente econômico do mundo para si”.
Esse é o objetivo explícito do America First, sublinha Hudson: “isso é o que torna o programa de Trump uma declaração de guerra econômica ao resto do mundo”.
Não há mais – ele acrescenta – a promessa de que a ordem econômica patrocinada pela diplomacia dos EUA tornará outros países prósperos. “Os ganhos do comércio e do investimento estrangeiro devem ser enviados e concentrados na América”.
O economista alerta que nem Trump nem seus assessores econômicos “entendem o dano que essa política ameaça causar ao desequilibrar radicalmente os balanços de pagamentos e as taxas de câmbios no mundo todo, tornando inevitável uma ruptura financeira”.
“A taxa de câmbio do dólar americano vai subir no curto prazo como resultado de Trump bloquear as importações com tarifas e sanções comerciais. Essa mudança na taxa de câmbio espremerá os países estrangeiros que devem dívidas em dólares da mesma forma que o México e o Canadá serão espremidos.”
“As circunstâncias, portanto, estão forçando o mundo a romper com a ordem financeira centrada nos EUA”, sinaliza Hudson. Para se protegerem, “eles devem suspender o serviço da dívida em dólar”.
O economista observa que a “autoimagem da América é que é a única economia do mundo que pode ser totalmente autossuficiente economicamente. Produz sua própria energia, e também sua própria comida, e supre essas necessidades básicas para outros países ou tem a capacidade de fechar a torneira”, o que remonta a 1945.
Ele também se refere ao privilégio exorbitante decorrente da prevalência do dólar. “Os Estados Unidos são a única economia sem as restrições financeiras que restringem outros países. A dívida dos Estados Unidos está em sua própria moeda, e não houve limite em sua capacidade de gastar além de suas possibilidades, inundando o mundo com excesso de dólares, que outros países aceitam como suas reservas monetárias como se o dólar ainda fosse tão bom quanto o ouro”.
“E por baixo de tudo isso está a suposição de que, quase com um toque no botão, os Estados Unidos podem se tornar tão autossuficientes industrialmente quanto eram em 1945”, aponta Hudson sobre a pretensão central de Trump 2.0.
A América – ele conclui, usando uma metáfora literária – “é a Blanche duBois do mundo em Um Bonde Chamado Desejo, de Tennessee Williams, vivendo no passado sem envelhecer bem.”
Ele registra ainda como a Alemanha e a Europa “se tornarão oferendas de sacrifício em nosso esforço desesperado, mas inútil, para salvar o Império dos EUA”.
Embora a Alemanha possa não acabar imediatamente com uma população emigrando e encolhendo como a Ucrânia, “sua destruição industrial está bem encaminhada.”
Hudson transcreve o discurso de Trump ao Fórum Econômico de Davos em 23 de janeiro: “Minha mensagem para todas as empresas do mundo é muito simples: venha fazer seu produto na América e nós lhe daremos um dos impostos mais baixos de qualquer nação do mundo”. Caso contrário, se continuarem tentando produzir em casa ou em outros países, seus produtos serão cobrados com tarifas de 20% ameaçadas por Trump.
“Para a Alemanha, isso significa (minha paráfrase): ‘Desculpe, seus preços de energia quadruplicaram. Venha para a América e consiga-os por um preço quase tão baixo quanto você estava pagando à Rússia antes que seus líderes eleitos nos deixassem cortar o Nord Stream’.”
“Pode haver um final hollywoodiano para o caos que se aproxima?”, questiona Hudson, para quem a resposta “é não”, e a chave “se encontra no efeito das tarifas e sanções comerciais que Trump ameaça sobre os balanços de pagamentos”.
Para Hudson, a grande questão é a que ponto, diante da ação de Trump mudando as regras do jogo, a própria ordem baseada em regras da América, “o mundo gestará uma massa crítica de países que mude a ordem mundial como um todo”.
A seguir, o artigo de Hudson na íntegra:
MICHAEL HUDSON*
“A Estrada para o Caos – Uma Guerra Global dos Balanços de Pagamento”
A década de 1940 viu uma série de filmes com Bing Crosby e Bob Hope, começando com o Road to Singapore em 1940. O enredo sempre foi semelhante. Bing e Bob, dois vigaristas de fala rápida ou parceiros de música e dança, se encontrariam em apuros em algum país, e Bing sairia disso vendendo Bob como escravo (Marrocos em 1942, onde Bing promete comprá-lo de volta) ou comprometendo-o a ser sacrificado em alguma cerimônia pagã, e assim por diante. Bob sempre segue o plano, e sempre há um final feliz de Hollywood em que eles escapam juntos – com Bing sempre ficando com a garota.
Nos últimos anos, vimos uma série de encenações diplomáticas semelhantes com os Estados Unidos e a Alemanha (representando a Europa como um todo). Poderíamos chamá-lo de Estrada para o Caos.
Os Estados Unidos venderam a Alemanha destruindo o Nord Stream, com o chanceler alemão Olaf Scholtz (o infeliz personagem Bob Hope) concordando com isso, e com a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, fazendo o papel de Dorothy Lamour (a garota, que era o prêmio de Bing nos filmes de Hollywood) exigindo que toda a Europa aumente seus gastos militares da OTAN além da demanda de Biden de 2%, escalados para 5% de Trump. Para completar, a Europa deve impor sanções ao comércio com a Rússia e a China, obrigando-as a realocar suas principais indústrias nos Estados Unidos.
Portanto, ao contrário dos filmes, isso não terminará com os Estados Unidos correndo para salvar a ingênua Alemanha. Em vez disso, a Alemanha e a Europa como um todo se tornarão oferendas de sacrifício em nosso esforço desesperado, mas inútil, para salvar o Império dos EUA. Embora a Alemanha possa não acabar imediatamente com uma população emigrando e encolhendo como a Ucrânia, sua destruição industrial está bem encaminhada.
Trump disse ao Fórum Econômico de Davos em 23 de janeiro: “Minha mensagem para todas as empresas do mundo é muito simples: venha fazer seu produto na América e nós lhe daremos um dos impostos mais baixos de qualquer nação do mundo”. Caso contrário, se continuarem tentando produzir em casa ou em outros países, seus produtos serão cobrados com tarifas de 20% ameaçadas por Trump.
Para a Alemanha, isso significa (minha paráfrase): “Desculpe, seus preços de energia quadruplicaram. Venha para a América e consiga-os por um preço quase tão baixo quanto você estava pagando à Rússia antes que seus líderes eleitos nos deixassem cortar o Nord Stream.”
A grande questão é quantos outros países ficarão tão inertes quanto a Alemanha enquanto Trump muda as regras do jogo – a ordem baseada em regras da América. Em que ponto será alcançada uma massa crítica que mude a ordem mundial como um todo?
Pode haver um final hollywoodiano para o caos que se aproxima? A resposta é não, e a chave se encontra no efeito das tarifas e sanções comerciais que Trump ameaça sobre os balanços de pagamentos. Nem Trump nem seus assessores econômicos entendem o dano que sua política está ameaçando causar ao desequilibrar radicalmente os balanços de pagamentos e as taxas de câmbio no mundo todo, tornando inevitável uma ruptura financeira.
A RESTRIÇÃO À BALANÇA DE PAGAMENTOS E TAXA DE CÂMBIO NA AGRESSÃO TARIFÁRIA DE TRUMP
Os dois primeiros países que Trump ameaçou foram os parceiros dos Estados Unidos no NAFTA, México e Canadá. Contra os dois países, Trump ameaçou aumentar as tarifas dos EUA sobre as importações deles em 20% se não obedecerem às suas exigências políticas.
Ele ameaçou o México de duas maneiras. Em primeiro lugar, está seu programa de exportação de imigrantes ilegais e permissão de autorizações de trabalho de curto prazo para mão de obra mexicana sazonal na agricultura e nos serviços domésticos. Ele sugeriu deportar para o México a onda de imigração latino-americana, alegando que a maioria veio para a América pela fronteira mexicana ao longo do Rio Grande. Isso ameaça impor uma enorme sobrecarga social ao México, que não tem muro em sua própria fronteira sul.
Há também um forte custo de balanço de pagamentos para o México e, de fato, para outros países cujos cidadãos procuraram trabalho nos Estados Unidos. Uma das principais fontes de dólares para esses países tem sido o dinheiro remetido por trabalhadores que enviam o que podem de volta para suas famílias. Esta é uma importante fonte de dólares para famílias na América Latina, Ásia e outros países. A deportação de imigrantes removerá uma fonte substancial de receita que tem sustentado as taxas de câmbio de suas moedas em relação ao dólar.
A imposição de uma tarifa de 20% ou outras barreiras comerciais ao México e a outros países seria um golpe fatal em suas taxas de câmbio, reduzindo o comércio de exportação que a política dos EUA promoveu começando com a terceirização do emprego nos EUA na presidência de Carter usando mão de obra mexicana para manter baixos os salários dos EUA. A criação do NAFTA sob Bill Clinton levou a uma longa linha de ‘maquiladoras’ ao sul da fronteira EUA/México, empregando mão de obra mexicana de baixa remuneração em linhas de montagem criadas por empresas americanas para economizar custos trabalhistas. As tarifas privariam abruptamente o México dos dólares recebidos para pagar pesos a essa força de trabalho e também aumentariam os custos para suas empresas-mãe nos EUA.
O resultado dessas duas políticas de Trump seria uma queda na fonte de dólares do México. Isso forçará o México a fazer uma escolha: se aceitar passivamente esses termos, a taxa de câmbio do peso se depreciará. Isso tornará as importações (precificadas em dólares em nível mundial) mais caras em termos de peso, levando a um salto substancial na inflação doméstica.
Alternativamente, o México pode colocar sua economia em primeiro lugar e dizer que a interrupção do comércio e dos pagamentos causada pela ação tarifária de Trump o impede de pagar suas dívidas em dólar aos detentores de títulos.
Em 1982, o calote do México em seus títulos tesobono denominados em dólar desencadeou a bomba da inadimplência da dívida da América Latina. Os atos de Trump parecem estar forçando um replay. Nesse caso, a resposta compensatória do México seria suspender o pagamento de seus títulos em dólares americanos.
Isso pode ter efeitos de longo alcance, porque muitos outros países da América Latina e do Sul Global estão experimentando um aperto semelhante em seus balanços de comércio e pagamentos internacionais. A taxa de câmbio do dólar já está subindo em relação às suas moedas como resultado do aumento das taxas de juros pelo Federal Reserve, atraindo fundos de investimento da Europa e de outros países. Um dólar em alta significa aumento dos preços de importação de petróleo e matérias-primas denominados em dólares.
O Canadá enfrenta um aperto semelhante na balança de pagamentos. Sua contraparte às maquiladoras do México são suas fábricas de autopeças em Windsor, do outro lado do rio de Detroit. Na década de 1970, os dois países concordaram com o Pacto Automotivo alocando que unidades de montagem que trabalhariam em sua produção conjunta de automóveis e caminhões dos EUA.
Bem, “concordaram” pode não ser o verbo apropriado. Eu estava em Ottawa na época, e os funcionários do governo ficaram muito ressentidos por terem sido designados para a pior parte do negócio de automóveis. Mas ainda está acontecendo hoje, cinquenta anos depois, e continua sendo um dos principais contribuintes para a balança comercial do Canadá e, portanto, para a taxa de câmbio de seu dólar, que já vem caindo em relação à dos Estados Unidos.
Claro, o Canadá não é o México. A ideia de suspender o pagamento de seus títulos em dólares é impensável em um país administrado em grande parte por seus bancos e interesses financeiros. Mas as consequências políticas serão sentidas em toda a política canadense. Haverá um sentimento antiamericano (sempre borbulhando sob a superfície no Canadá) que deve acabar com a fantasia de Trump de fazer do Canadá o 51º estado.
OS FUNDAMENTOS MORAIS IMPLÍCITOS DA ORDEM ECONÔMICA INTERNACIONAL
Há um princípio moral ilusório básico em ação nas ameaças tarifárias e comerciais de Trump, que está subjacente à ampla narrativa pela qual os Estados Unidos procuraram racionalizar sua dominação unipolar da economia mundial. Esse princípio é a ilusão de reciprocidade que apóia uma distribuição mútua de benefícios e crescimento – e no vocabulário americano está envolto em valores democráticos e conversas sobre mercados livres prometendo estabilizadores automáticos sob o sistema internacional patrocinado pelos EUA.
Os princípios de reciprocidade e estabilidade foram centrais para os argumentos econômicos de John Maynard Keynes durante o debate no final da década de 1920 sobre a insistência dos EUA de que seus aliados em tempo de guerra europeus pagassem pesadas dívidas por armas compradas dos Estados Unidos antes de sua entrada formal na guerra. Os Aliados concordaram em pagar impondo reparações alemãs para transferir o custo para o perdedor da guerra. Mas as demandas dos Estados Unidos sobre seus aliados europeus e, por sua vez, sobre a Alemanha, estavam muito além da capacidade de serem atendidas.
O problema fundamental, explicou Keynes, era que os Estados Unidos estavam aumentando suas tarifas contra a Alemanha em resposta à depreciação de sua moeda e, em seguida, impuseram a tarifa Smoot-Hawley contra o resto do mundo. Isso impediu a Alemanha de ganhar a moeda forte para pagar os aliados e para eles pagarem aos Estados Unidos.
Para fazer o sistema financeiro internacional do serviço da dívida funcionar, Keynes apontou, uma nação credora tem a obrigação de fornecer aos países devedores a oportunidade de levantar o dinheiro para pagar exportando para a nação credora. Caso contrário, haverá colapso da moeda e austeridade paralisante para os devedores. Esse princípio básico deve estar no centro de qualquer projeto de como a economia internacional deve ser organizada com freios e contrapesos para evitar esse colapso.
Os oponentes de Keynes – o monetarista francês antialemão Jacques Rueff e o defensor neoclássico do comércio Bertil Ohlin – repetiram o mesmo argumento que David Ricardo expôs em seu depoimento de 1809-1810 perante o Comitê de Ouro da Grã-Bretanha. Ele afirmou que o pagamento de dívidas externas cria automaticamente um saldo nos pagamentos internacionais. Essa teoria de economia junk forneceu uma lógica que continua sendo o modelo básico de austeridade do FMI hoje.
De acordo com a fantasia dessa teoria, quando o pagamento do serviço da dívida reduz os preços e salários no país pagador da dívida, isso aumentará suas exportações, tornando-as menos dispendiosas para os estrangeiros. E, supostamente, o recebimento do serviço da dívida pelas nações credoras será monetizado para elevar seus próprios preços (a Teoria Quantitativa da Moeda), reduzindo suas exportações. Essa mudança de preço deve continuar até que o país devedor que sofre uma saída monetária e austeridade seja capaz de exportar o suficiente para pagar seus credores estrangeiros.
Mas os Estados Unidos não permitiram que as importações estrangeiras competissem com seus próprios produtores. E para os devedores, o preço da austeridade monetária não era uma produção de exportação mais competitiva, mas a perturbação econômica e o caos. O modelo de Ricardo e a teoria neoclássica dos EUA eram simplesmente uma desculpa para a política de credores linha-dura. Ajustes estruturais ou austeridade foram devastadores para as economias e governos aos quais foram impostos. A austeridade reduz a produtividade e a produção.
Em 1944, quando Keynes estava tentando resistir à demanda dos EUA por comércio exterior e subserviência monetária na conferência de Bretton Woods, ele propôs o bancor, um arranjo intergovernamental de balanço de pagamentos que exigia que as nações credoras crônicas (ou seja, os Estados Unidos) perdessem seu acúmulo de créditos financeiros sobre países devedores (como a Grã-Bretanha se tornaria). Esse seria o preço a ser pago para evitar que a ordem financeira internacional polarizasse o mundo entre países credores e devedores. Os credores tinham de permitir que os devedores pagassem ou perdessem os seus créditos financeiros de pagamento.
Keynes, como observado acima, também enfatizou que, se os credores quiserem ser pagos, eles precisam importar dos países devedores para fornecer a eles a capacidade de pagar.
Essa era uma política profundamente moral e tinha um benefício adicional de fazer sentido econômico. Isso permitiria que ambas as partes prosperassem em vez de ter uma nação credora prosperando, enquanto os países devedores sucumbiriam à austeridade, impedindo-os de investir na modernização e no desenvolvimento de suas economias, elevando os gastos sociais e os padrões de vida.
Sob Donald Trump, os Estados Unidos estão violando esse princípio. Não existe um arranjo keynesiano do tipo bancor, mas existem as duras realidades da América em primeiro lugar de sua diplomacia unipolar. Se o México quiser salvar sua economia de mergulhar na austeridade, na inflação de preços, no desemprego e no caos social, terá que suspender seus pagamentos de dívidas externas denominadas em dólares.
O mesmo princípio se aplica a outros países do Sul Global. E se agirem juntos, eles têm uma posição moral para criar uma narrativa realista e até inevitável das pré-condições para que qualquer ordem econômica internacional estável funcione.
As circunstâncias, portanto, estão forçando o mundo a romper com a ordem financeira centrada nos EUA. A taxa de câmbio do dólar americano vai subir no curto prazo como resultado de Trump bloquear as importações com tarifas e sanções comerciais. Essa mudança na taxa de câmbio espremerá os países estrangeiros que devem dívidas em dólares da mesma forma que o México e o Canadá serão espremidos. Para se protegerem, eles devem suspender o serviço da dívida em dólar.
Esta resposta às despesas gerais da dívida de hoje não se baseia no conceito de dívidas odiosas. Vai além da crítica de que muitas dessas dívidas e suas condições de pagamento não eram do interesse dos países aos quais essas dívidas foram impostas em primeiro lugar. Vai além da crítica de que os credores devem ter alguma responsabilidade por julgar a capacidade de seus devedores de pagar – ou sofrer perdas financeiras se não o fizerem.
O problema político do excesso de dívidas em dólares do mundo é que os Estados Unidos estão agindo de uma forma que impede que os países devedores ganhem dinheiro para pagar dívidas externas denominadas em dólares americanos. A política dos EUA, portanto, representa uma ameaça para todos os credores que denominam suas dívidas em dólares, tornando essas dívidas praticamente impagáveis sem destruir suas próprias economias.
A SUPOSIÇÃO DOS EUA DE QUE OS OUTROS PAÍSES NÃO RESPONDERÃO À SUA AGRESSÃO ECONÔMICA
Trump realmente sabe o que está fazendo? Ou sua política descontrolada está simplesmente causando danos colaterais a outros países? Acho que o que está em ação é uma contradição interna profunda e básica da política dos EUA, semelhante à da diplomacia dos EUA na década de 1920. Quando Trump prometeu a seus eleitores que os Estados Unidos devem ser os “vencedores” em qualquer acordo comercial ou financeiro internacional, ele está declarando guerra econômica ao resto do mundo.
Trump está dizendo ao resto do mundo que eles devem ser perdedores – e aceitar o fato graciosamente em pagamento pela proteção militar que fornece ao mundo no caso de a Rússia invadir a Europa ou a China enviar seu exército para Taiwan, Japão ou outros países. A fantasia é que a Rússia teria algo a ganhar em ter que apoiar uma economia europeia em colapso, ou que a China decida competir militarmente em vez de economicamente.
A arrogância está trabalhando nesta fantasia distópica. Como hegemonia mundial, a diplomacia dos EUA raramente leva em conta como os países estrangeiros responderão. A essência de sua arrogância é presumir simplisticamente que os países se submeterão passivamente às ações dos EUA sem represálias. Essa tem sido uma suposição realista para países como a Alemanha, ou aqueles com políticos clientes semelhantes dos EUA no cargo.
Mas o que está acontecendo hoje é de caráter de todo o sistema. Em 1931, finalmente foi declarada uma moratória sobre as dívidas interaliadas e as reparações alemãs. Mas isso foi dois anos após o crash do mercado de ações de 1929 e as hiperinflações anteriores na Alemanha e na França. Na mesma linha, a década de 1980 viu as dívidas latino-americanas serem amortizadas por títulos Brady. Em ambos os casos, as finanças internacionais foram a chave para o colapso político e militar geral do sistema, porque a economia mundial havia se tornado autodestrutivamente financeirizada. Algo semelhante parece inevitável hoje. Qualquer alternativa viável envolve a criação de um novo sistema econômico mundial.
A política interna dos EUA é igualmente instável. O teatro político America First de Trump, que o elegeu, pode derrubar sua gangue à medida que as contradições e consequências de sua filosofia operacional são reconhecidas e substituídas. Sua política tarifária acelerará a inflação de preços nos EUA e, ainda mais fatalmente, causará caos nos mercados financeiros americanos e estrangeiros. As cadeias de suprimentos serão interrompidas, interrompendo as exportações dos EUA de tudo, desde aeronaves até tecnologia da informação. E outros países se verão obrigados a tornar suas economias não mais dependentes das exportações dos EUA ou do crédito em dólares.
E talvez na visão de longo prazo isso não seja uma coisa ruim. O problema está no curto prazo, à medida que as cadeias de suprimentos, os padrões comerciais e a dependência são substituídos como parte da nova ordem econômica geopolítica que a política dos EUA está forçando outros países a desenvolver.
Trump baseia sua tentativa de rasgar os vínculos existentes e a reciprocidade do comércio e das finanças internacionais na suposição de que, em um caótico agarre o que puder, os Estados Unidos sairão por cima. Essa confiança está subjacente à sua disposição de retirar as interconexões geopolíticas de hoje. Ele acha que a economia dos EUA é como um buraco negro cósmico, ou seja, um centro de gravidade capaz de puxar todo o dinheiro e excedente econômico do mundo para si. Esse é o objetivo explícito do America First. Isso é o que torna o programa de Trump uma declaração de guerra econômica ao resto do mundo. Não há mais a promessa de que a ordem econômica patrocinada pela diplomacia dos EUA tornará outros países prósperos. Os ganhos do comércio e do investimento estrangeiro devem ser enviados e concentrados na América.
O problema vai além de Trump. Ele está simplesmente seguindo o que já está desde 1945 implícito na política dos EUA. A autoimagem da América é que é a única economia do mundo que pode ser totalmente autossuficiente economicamente. Produz sua própria energia, e também sua própria comida, e supre essas necessidades básicas para outros países ou tem a capacidade de fechar a torneira.
Mais importante, os Estados Unidos são a única economia sem as restrições financeiras que restringem outros países. A dívida dos Estados Unidos está em sua própria moeda, e não houve limite em sua capacidade de gastar além de suas possibilidades, inundando o mundo com excesso de dólares, que outros países aceitam como suas reservas monetárias como se o dólar ainda fosse tão bom quanto o ouro.
E por baixo de tudo isso está a suposição de que, quase com um toque no botão, os Estados Unidos podem se tornar tão autossuficientes industrialmente quanto eram em 1945. A América é a Blanche duBois do mundo em Um Bonde Chamado Desejo, de Tennessee Williams, vivendo no passado sem envelhecer bem.
A NARRATIVA NEOLIBERAL EGOÍSTA DO IMPÉRIO AMERICANO
Para obter aquiescência estrangeira em aceitar um império e viver pacificamente nele, é necessária uma narrativa reconfortante para retratar o império como puxando todos à frente. O objetivo é distrair outros países de resistir a um sistema que realmente é explorador. Primeiro a Grã-Bretanha e depois os Estados Unidos promoveram a ideologia do imperialismo de livre comércio depois que suas políticas mercantilistas e protecionistas lhes deram uma vantagem de custo sobre outros países, transformando esses países em satélites comerciais e financeiros.
Trump afastou essa cortina ideológica. Em parte, isso é simplesmente o reconhecimento de que não pode mais ser mantido em face da política externa dos EUA/OTAN e sua guerra militar e econômica contra a Rússia e sanções contra o comércio com a China, Rússia, Irã e outros membros do BRICS. Seria loucura para outros países não rejeitarem esse sistema, agora que sua narrativa fortalecedora é falsa para todos verem.
A QUESTÃO É: SERÁ CRIADA UMA ORDEM MUNDIAL ALTERNATIVA?
Países como o México realmente não têm muita escolha a não ser seguirem sozinhos. O Canadá pode sucumbir, deixando sua taxa de câmbio cair e seus preços domésticos subirem, pois suas importações são denominadas em dólares em “moeda forte”. Mas muitos países do Sul Global estão no mesmo aperto na balança de pagamentos que o México.
E a menos que tenham elites clientes como a Argentina – sua elite sendo os principais detentores de títulos em dólares da Argentina – seus líderes políticos terão que interromper o pagamento da dívida ou sofrer austeridade doméstica (deflação da economia local) juntamente com a inflação dos preços de importação à medida que as taxas de câmbio de suas moedas se curvam sob as tensões impostas pelo aumento do dólar americano. Eles terão que suspender o serviço da dívida ou então serão afastados do cargo.
Poucos políticos importantes têm a margem de manobra de Annalena Baerbock, da Alemanha, para dizer que seu Partido Verde não precisa ouvir o que os eleitores alemães dizem que querem. As oligarquias do Sul Global podem contar com o apoio dos EUA, mas a Alemanha é certamente um ponto fora da curva quando se trata de estar disposta a cometer suicídio econômico por lealdade sem limites à política externa dos EUA.
Suspender o serviço da dívida é menos destrutivo do que continuar sucumbindo à ordem America First de Trump. O que bloqueia essa política é político, juntamente com um medo centrista de embarcar na grande mudança política necessária para evitar a polarização econômica e a austeridade.
A Europa parece ter medo de usar a opção de simplesmente chamar o blefe de Trump, apesar de ser uma ameaça vazia que seria bloqueada pelos próprios interesses dos Estados Unidos entre a Classe de Doadores.
Trump afirmou que, se não concordar em gastar 5% de seu PIB em armas militares (em grande parte dos Estados Unidos) e comprar mais energia de gás natural liquefeito (GNL) dos EUA, ele imporá tarifas de 20% aos países que resistirem.
Mas se os líderes europeus não resistirem, o euro cairá talvez 10 ou 20%. Os preços domésticos subirão e os orçamentos nacionais terão que cortar programas de gastos sociais, como apoio às famílias para comprar gás ou eletricidade mais caros para aquecerem e energizarem suas casas.
Os líderes neoliberais dos Estados Unidos dão as boas-vindas a essa fase da guerra de classes das demandas dos EUA a governos estrangeiros. A diplomacia dos EUA tem sido ativa em paralisar a liderança política de antigos partidos trabalhistas e social-democratas na Europa e em outros países de forma tão completa que não parece mais importar o que os eleitores querem. É para isso que serve o Fundo Nacional para a Democracia (NED) dos EUA, junto com sua propriedade e narrativa da grande mídia.
Mas o que está sendo abalado não é apenas o domínio unipolar dos Estados Unidos sobre o Ocidente e sua esfera de influência, mas a estrutura mundial do comércio internacional e das relações financeiras – e, inevitavelmente, também as relações e alianças militares.
(*) Economista e escritor norte-americano. Transcrito de michael-hudson.com. Tradução e grifos HP.