
Esses fundos são mantidos, principalmente, com recursos públicos, cuja desvinculação ajudaria a saciar o apetite dos fiscalistas
Hoje, no artigo semanal do economista Paulo Kliass, publicado nesta folha, deparamo-nos com uma expressão até então inexistente no vocabulário dos especialistas que acompanham a realidade econômica do país.
Afirmou Kliass, depois de uma apurada análise da situação da economia nacional:
“Faltam apenas 19 meses para a disputa eleitoral que pode definir a reeleição de Lula. A cada dia que passa fica ainda mais urgente uma mudança significativa na definição da política econômica do governo. A manutenção da obsessão haddadiana com a austeridade fiscal cega e burra tem corroído a base popular de apoio ao governo. Trata-se de uma verdadeira ilusão essa tentativa permanente de agradar o povo da Faria Lima em detrimento do atendimento das reais necessidades da grande maioria da população. Afinal, os números têm demonstrado que não basta o PIB crescer e o desemprego diminuir. O povo quer mais”.
Obsessão haddadiana (gr. nosso) resume o que, no fundo, orienta a política econômica do atual mandato do presidente Lula sob a regência do ministro Fernando Haddad – uma busca frenética pelo déficit zero nas contas primárias, o que não é praticado por quase nenhum país do mundo, entre aqueles que estão no centro do mundo capitalista ou emergentes, como o Brasil e as nações que integram o BRICS.
Agora, vazou mais uma medida em estudo no Ministério da Fazenda que também estaria a serviço da meta de zerar o déficit, em respeito ao intocável arcabouço fiscal, âncora sem a qual, pela lógica haddadiana, parodiando Kliass, será impossível controlar a dívida, reduzir os juros e retomar os investimentos públicos e o crescimento da economia.
Tal iniciativa teria por objetivo resgatar recursos da União hoje parados em fundos privados que serviriam para o desiderato do equilíbrio das contas públicas em 2025.
Levantamento preliminar indica um potencial de cerca de R$ 10 bilhões que poderiam reforçar o caixa do Tesouro neste ano e contribuir para o alcance da meta de resultado primário.
Com isso, na avaliação da equipe econômica, haveria uma “importante sinalização ao mercado financeiro”, cético com a meta do déficit zero em 2025 e impaciente com os “gastadores” do governo que insistem no uso de fundos públicos – e privados – para atender às crescentes demandas da sociedade brasileira.
Essa cifra, que ultrapassaria os R$ 10 bilhões, poderia ser arrecadada dos fundos destinados a atender empresas afetadas pelas enchentes no Rio Grande do Sul, algo em torno de R$ 4,5 bilhões, não utilizados, e serviriam de ‘colchão’ garantidor de financiamentos mais baratos de modo a reduzir os riscos das instituições financeiras, esses agentes pobretões da sociedade, insaciáveis com os juros reais mais altos do mundo praticados pelo Banco Central, que os remuneram subsidiariamente. Nem toda a verba destinada (R$ 6,05 bilhões) foi comprometida.
Além disso, com o fim do decreto de calamidade em 31 de dezembro de 2024, o governo vê como encerrada a possibilidade de novas contratações.
Outra fonte mapeada são os recursos parados no Fgeduc (Fundo de Garantia de Operações de Crédito Educativo), criado para honrar contratos inadimplentes do Fies (Fundo de Financiamento ao Estudante do Ensino Superior).
Esse fundo já chegou próximo ao seu limite de cobertura, devendo fazer, doravante, desembolsos residuais, também, obviamente, para não deixar de socorrer os bancos, esses coitados afetados pela inadimplência do programa, mesmo sob risco zero de não receberem os valores financiados por conta da garantia turbinada com dinheiro público.
O relatório da administração do fim de 2023 mostra que o índice de valores honrados já estava em 9,81%, ante um limite de 10%, e o patrimônio líquido ainda era robusto, de R$ 10,9 bilhões.
O governo Lula, inclusive, numa boa prática, já transferiu R$ 6 bilhões que estavam ociosos para outro fundo, o Fipem, que sustenta o programa Pé-de-Meia (com pagamento de bolsas para alunos de baixa renda no ensino médio). Mas o volume de recursos livres no Fgeduc pode ser maior. Se isso se confirmar, a intenção é resgatá-los para reforçar o caixa do Tesouro.
O economista Marcos Mendes, colunista da Folha de S. Paulo, em matéria publicada hoje, faz coro com os que pretendem fazer o resgate desses fundos para aliviar as contas governamentais. Ele diz que os fundos garantidores receberam um “montante brutal” de recursos, por exemplo, na pandemia de Covid-19, para enfrentar com os efeitos econômicos da crise sanitária. Com o fim da emergência, ele defende uma avaliação para reduzir o volume dessas garantias e para que os recursos sejam destinados ao Tesouro com a finalidade de assegurar o tão acalentado déficit zero nas contas primárias.
Para os que defendem a lógica fiscalista como uma verdadeira religião, é necessário fazer um resgate até mais amplo de recursos desses fundos para reduzir o endividamento do país, não importa se está faltando dinheiro para os investimentos públicos ou os programas sociais.
Eles estão de olho – há tempos – em fundos públicos abastecidos por valores muito mais expressivos, como é o caso do Fundo Social do Pré-Sal e o FNDCT (Fundo Nacional de Desenvolvimento da Ciência e Tecnologia), muitos dos quais acumulam superávits financeiros, sendo ameaçados pela desconstitucionalização – aqueles que estão previstos na Carta maior, ou, os que fogem a essa regra, pelos rotineiros contingenciamentos orçamentários.
Quando acontecem os superávits, o Executivo tem a opção de desvincular os saldos e utilizar para financiar outras despesas dentro do Orçamento, o que é razoável para a estabilidade e incremento das políticas públicas, ou abater a dívida pública, ou seja, honrar com o pagamento dos juros aviltantes que já consomem quase R$ 1 trilhão por ano dos cofres públicos.
A mesma Folha de S. Paulo compilou dados a partir de uma portaria do Tesouro Nacional que mostram que, no final de 2024, estavam disponíveis para serem desvinculados desses fundos um saldo de R$ 118,5 bilhões.
Aliás, dentro dessa lógica, o Congresso Nacional, por sugestão do próprio Haddad, aprovou uma lei que permite o uso do superávit de 5 fundos para abater a dívida pública. O levantamento demonstra que eles reúnem R$ 23,65 bilhões.
Mas nem sempre a lógica haddadiana tem prevalecido, pois os “gastadores” do governo, tão condenados pela mídia fiscalista – boa para fiscalizar as contas primárias, mas inteiramente avessa a fazer o mesmo com a dívida nominal acelerada pelos juros pagos pelo erário –, conseguiram promover tal desvinculação para outras finalidades, como os fundos que servem de fonte de financiamento para as linhas de crédito operadas pelo BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social). Exemplos são o Fundo Clima e um fundo emergencial para o RS.
Na última quinta-feira (6), uma medida provisória editada pelo presidente flexibilizou a alocação dos recursos do Fundo Social, o que amplia os valores que podem irrigar esses fundos. Nesse caso, a despesa é financeira e não afeta as regras fiscais tão sensíveis para a equipe econômica. Além do uso alternativo dos recursos, algumas dessas linhas são operadas com juros mais baixos do que aqueles pagos pela União a seus aplicadores, o que gera um subsídio implícito, algo também odiado pelos fiscalistas de plantão.
Esses fundos podem ser irrigados pela desvinculação ou por recursos livres, receitas públicas sem carimbo específico, ou novas emissões de dívida, como por exemplo o recém-criado FIIS (Fundo de Investimento em Infraestrutura Social), dotado de um aporte de R$ 10 bilhões, já disponíveis e previstos na proposta orçamentária de 2025.
Por outro lado, a lógica do arcabouço é cristalina: quando a União integraliza cotas em fundos privados, essa operação representa uma despesa primária. O repasse sensibiliza as regras fiscais, como o limite de gastos do arcabouço e o resultado primário — a não ser quando há exceção prevista expressamente em lei, como ocorreu no caso da calamidade no Rio Grande do Sul.
O movimento contrário, ou seja, com o resgate das cotas governamentais, o dinheiro é contabilizado como receita primária, algo que soa como música aos ouvidos de Haddad e sua equipe, pois, para eles, o importante é o governo não ter que buscar recursos no mercado para honrar seus compromissos, o que impactaria, negativamente, a dívida pública, mesmo que a relação do endividamento com o nosso PIB seja absolutamente estável, inclusive na comparação com outros países emergentes como o Brasil.
O incômodo da equipe econômica com a perspectiva de descontrole da dívida pública não deixa de constituir um pretexto para represar continuamente os gastos e investimentos públicos, enquanto, paralelamente, avoluma-se a dívida relacionada às inevitáveis e crescentes demandas da sociedade – essa que tem uma relação direta com o desempenho do governo e que é responsável, em última instância, pela popularidade do presidente e de sua administração. Pretexto, aliás, utilizado de forma contumaz para ocultar o maior dos déficits do governo, o financeiro, provocado pela Selic escandalosa do BC.
O fato é que há uma queda de braço entre os setores do governo e da sociedade interessados em incrementar o investimento público, o gasto governamental e o consumo popular como instrumentos indispensáveis à retomada do desenvolvimento e aquele segmento representado pelo sistema financeiro e os rentistas em geral adeptos da política fiscalista que ganhou abrigo na atual equipe econômica e cuja execução já demonstrou, sobejamente, a incapacidade de promover o desenvolvimento econômico e social, sustentável e perene.
Kliass lembrou, mais uma vez, em seu artigo de hoje, que não basta o crescimento do PIB ou do emprego e da renda, quando esse crescimento é de qualidade sofrível, pois a sua centralidade não está ancorada na reindustrialização do País, quando o emprego segue precarizado e cada vez mais informalizado e quando o poder aquisitivo real está em declínio, seja pela carestia dos alimentos, o custo do dinheiro e os reflexos perversos da especulação cambial. Tudo isso, enquanto as cabeças iluminadas da equipe econômica do governo pensam soluções que passam cada vez mais pelo Deus Mercado, essa entidade desconhecida de todos, e cada vez menos pelo Estado público alicerçado no voto popular.
E alertou que restam apenas 19 meses para a realização das próximas eleições presidenciais. Para bom entendedor, meia palavra basta…
MARCO CAMPANELLA