O pronunciamento de Jair Bolsonaro proferido na quarta-feira (3), na abertura legislativa do ano, em sessão do Congresso Nacional, merece mais do que uma análise, várias, sob inúmeros pontos de vista, inclusive no aspecto psicossocial.
O discurso de apresentação da mensagem do Poder Executivo ao legislativo foi um troféu aos estudiosos de casos de cidadãos que negam, despudorada e seletivamente, a realidade e buscam afirmá-la a partir de conceitos estabelecidos em suas mentes doentias e manifestadas no que expressam, como foi o caso.
Vejamos algumas das pérolas que o presidente da República afirmou aos congressistas ao fazer um balanço do desempenho de seu governo em 2020 – e o respectivo contraponto.
1ª) O QUE DISSE BOLSONARO: O GOVERNO DISPENDEU BILHÕES PARA O AUXÍLIO EMERGENCIAL E SOCORREU QUASE 70 MILHÕES DE BRASILEIROS.
A VERDADE DOS FATOS: Bolsonaro e Guedes, depois de muita pressão da sociedade diante do avanço inicial da pandemia, apresentaram uma proposta em que cada cidadão destituído de renda em razão da crise sanitária receberia R$ 200. A reação foi geral e o Congresso Nacional ampliou o valor para R$ 600, reduzido depois à metade pelo governo. Este ano, mesmo diante do recrudescimento da pandemia, Bolsonaro e sua equipe econômica continuam resistindo em adotar qualquer apoio emergencial aos brasileiros sem trabalho e sem condições de obter uma renda para sua sobrevivência.
RESULTADO: Parcela significativa dos 69 milhões de brasileiros que recebia o auxílio ingressou em 2021 sem renda, sem emprego e, em razão do negacionismo doentio do governo, com a vacina chegando a conta-gotas. Com isso, algo entre 21 milhões e 31 milhões de pessoas (10% a 15% da população) passarão a viver na pobreza extrema, com renda per capita em torno de R$ 155,00/mês.
2º) O QUE DISSE BOLSONARO: O GOVERNO DESTINOU BILHÕES PARA CRÉDITO ÀS EMPRESAS, QUE GERARAM MILHARES DE CONTRATOS.
A VERDADE DOS FATOS: De fato, o governo destinou uma liquidez extraordinária, através do Banco Central, de R$ 1,3 trilhão, mas apenas 20% desses valores foram efetivamente realizados na ponta através dos bancos. O dinheiro ficou empoçado no sistema financeiro, que não deixou de exibir polpudos lucros em plena pandemia, como nos anos anteriores. Nem mesmo o Pronampe (Programa Nacional de Apoio às Microempresas e Empresas de Pequeno Porte), outra iniciativa do Congresso Nacional, foi capaz de aliviar a situação dessas empresas.
RESULTADO – Desde que a pandemia do novo coronavírus chegou ao Brasil, 716.000 empresas fecharam as portas, de acordo com o IBGE. Do total de negócios fechados temporária ou definitivamente, quatro em cada 10 (um total de 522 mil firmas) afirmaram ao IBGE que a situação deveu-se à pandemia. As principais vítimas dessa tragédia econômica e social foram as micro, pequenas e médias empresa – o segmento que mais emprega no país.
3º) O QUE DISSE BOLSONARO: O GOVERNO PRESERVOU PELO MENOS 10 MILHÕES DE EMPREGOS ATRAVÉS DO BENEFÍCIO EMERGENCIAL DO EMPREGO E RENDA (BEM), QUE ENTROU EM VIGOR EM ABRIL DE 2020.
A VERDADE DOS FATOS: O governo encaminhou sua proposta ao Congresso Nacional diante das pressões do setor produtivo e dos trabalhadores, entretanto a proposta foi alterada pelos parlamentares que, além de aperfeiçoarem o projeto original, retiraram vários dispositivos que anulavam direitos trabalhistas e sociais.
RESULTADO: Foram preservados empregos através de um processo de suspensão do contrato de trabalho ou de redução da jornada com redução salarial, mas o governo negou-se a prorrogar o benefício em que pese o agravamento da pandemia e da situação de inúmeros setores econômicos que continuam com seu faturamento comprimido pela crise. Sem a extensão do programa, muito desses trabalhadores, especialmente do setor de serviços, o mais afetado, estarão ameaçados de perder o emprego, como já demonstram os dados oficiais. Segundo dados também do IBGE o impacto da pandemia tirou até um quarto da renda dos brasileiros.
4º) O QUE DISSE BOLSONARO: O GOVERNO PROMOVEU UMA SÉRIE DE AÇÕES DE COMBATE À PANDEMIA E CHEGOU A GASTAR MAIS DE R$ 500 BILHÕES, INCLUSIVE NA AJUDA A ESTADOS E MUNICÍPIOS.
A VERDADE DOS FATOS: Desses valores, quase a metade foi dispendida no pagamento do auxílio emergencial (45%), mas as demais áreas do governo, inclusive a Saúde, não conseguiram executar o plano orçamentário, assim como os entes subnacionais tiveram muita dificuldade para receber os recursos a que tinham direito.
RESULTADO: Quase um ano depois da constatação do primeiro caso de Covid-19 em território brasileiro, o país está entre as nações que demonstraram pior desempenho no enfrentamento da crise sanitária. Já são mais de 226 mil mortos e estamos chegando à tenebrosa marca de 10 milhões de infectados, ou seja, 5% da população. A situação só não se agravou mais em razão do empenho dos governadores e prefeitos nas políticas de distanciamento social e apoio aos setores mais vulneráveis frente à pandemia.
5º) QUE DISSE BOLSONARO: O GOVERNO INSTITUIU O NOVO FUNDEB DE APOIO À EDUCAÇÃO BÁSICA DO PAÍS E PROMULGOU A LEI ALDIR BLANC DE APOIO À CULTURA
A VERDADE DOS FATOS: As lideranças do governo no Congresso Nacional, em especial, os bolsonaristas de carteirinha, resistiram o quanto puderam para impedir a aprovação da matéria e foram derrotados na votação do texto final do novo FUNDEB, não restando outra alternativa a Bolsonaro senão promulgar o texto que amplia o fundo de apoio à educação básica e o torna permanente, precisamente o que o Planalto não queria. No caso da Lei Aldir Blanc, é de conhecimento geral que ela só foi possível graças ao esforço parlamentar, especialmente da Câmara dos Deputados, com o inestimável apoio de artistas e produtores culturais sobre os quais a pandemia negou o desempenho de suas atividades.
6º) QUE DISSE BOLSONARO: O GOVERNO AMPLIOU OS INVESTIMENTOS PÚBLICOS EM 2020, INCLUSIVE EM OBRAS DE INFRAESTRUTURA
A VERDADE DOS FATOS: A taxa de investimento no Brasil, segundo dados do Ipea-Data, foi de 15,91% do PIB no primeiro trimestre; 15,07%, no segundo; e 16,19%, no terceiro; índices muito aquém do desejado para o crescimento e desenvolvimento econômico sustentáveis.
RESULTADO: O Produto Interno Bruto (PIB), que mede a consistência da economia brasileira, teve uma queda de aproximadamente 5% em 2020, dado resultante de dois fatores fundamentais: a política ultraliberal monetário-fiscalista praticada por Guedes e a trágica condução do combate à pandemia executada por Bolsonaro. Os níveis de desemprego continuam crescentes, quase 15% segundo os critérios questionáveis da nova metodologia do IBGE, e o retumbante crescimento da taxa de subocupação: 30% da população economicamente ativa, cenário que tende a se agravar com o fim do auxílio emergencial que levará muitas pessoas a procurar emprego formal – e não encontrar.
7º) QUE DISSE BOLSONARO: O GOVERNO REDUZIU A TAXA DE JUROS AO MENOR PATAMAR DAS ÚLTIMAS DÉCADAS
A VERDADE DOS FATOS: É fato que o Banco Central, diante do quadro de estagnação econômica e após sucessivas medidas de caráter monetário no enfrentamento da inflação, colocou a Taxa Básica de Juros (Selic) em seu menor patamar histórico, 2%, ou seja, negativa se descontada a inflação.
RESULTADO: Esse nível de juros foi inócuo para estimular o investimento público, muito menos o privado, pois a taxa de inversão e a formação bruta de capital fixo seguem medíocres no país, em razão da estagnação a que continuamos submetidos, principalmente pelos baixos níveis de investimento público e de consumo – das famílias, solapadas abruptamente em suas rendas, e dos governos em todos os níveis, fragilizados pela queda expressiva das arrecadações e crescimento exponencial das demandas.
8º) QUE DISSE BOLSONARO: O GOVERNO PROMOVEU IMPORTANTES INICIATIVAS NO COMBATE AO DESMATAMENTO ILEGAL
A VERDADE DOS FATOS: Difícil essa afirmação presidencial competir com as demais em hipocrisia e cinismo. O governo Bolsonaro, ele próprio e seu ministro da área, já foi denunciado em vários organismos internacionais pelo descaso com o meio ambiente, especialmente na Amazônia, onde encontram-se os principais focos de desmatamento provocados pelo desmonte da fiscalização ambiental e a política flagrantemente conivente com os interesses empresariais de grandes desmatadores, inclusive de origem estrangeira.
RESULTADO: Recentemente, o próprio Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) divulgou uma alta de 9,5% no desmatamento da região, o maior em 12 anos. O país, por conta dessa política desastrosa do governo, deixou de receber recursos de instituições multilaterais que investem em políticas de desenvolvimento sustentável.
9º) O QUE DISSE BOLSONARO: O GOVERNO ESTIMULOU A POLÍTICA QUE GEROU NOVA SAFRA RECORDE DE GRÃOS
A VERDADE DOS FATOS: O governo manteve e ampliou o apoio ao agronegócio responsável pela safra recorde de grãos voltada, centralmente, à exportação e, secundariamente, ao mercado interno. Não por outro motivo, na mesma mensagem, Bolsonaro fez um reconhecimento público à bancada ruralista e ao agronegócio, setor que, segundo ele, continua sendo “a locomotiva” da economia nacional, aliás, o segmento que se beneficia do desmatamento promovido na Amazônia e em outras regiões do país.
RESULTADO: Menos apoio ao produtor rural e à agricultura familiar, que continuam padecendo dos velhos problemas de crédito, apoio técnico e incentivos.
10º) O QUE DISSE BOLSONARO: O GOVERNO REDIRECIONOU A POLÍTICA EXTERNA A GRANDES NAÇÕES DEMOCRÁTICAS PARA FORTALECER AS RELAÇÕES COMERCIAIS DO PAÍS
A VERDADE DOS FATOS: Bolsonaro, através de seu ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, reconhecido por suas posições terraplanistas e alinhamento com o filósofo da Virgínia, Olavo de Carvalho, promoveu uma política cega de atrelamento aos interesses do governo Trump dos EUA (legítimo representante dos setores mais apodrecidos ideologicamente daquele país). Por conta desse alinhamento, desprezou as relações com importantes países da Europa, do Oriente Médio e da Ásia, e manteve um discurso odioso à China, principal parceiro comercial do Brasil, só alterado de forma oportunista nas últimas semanas diante da absoluta necessidade de importar vacinas e os insumos para fabricá-la no país. Além disso, trabalhou para esvaziar o Mercosul e enfraquecer relações com parceiros históricos como a Argentina.
RESULTADO: A contrapartida do governo Trump foi verificada nas exportações brasileiras aos EUA, que caíram acentuadamente nesses últimos dois anos, cerca de 30%, enquanto aumentaram as importações de produtos norte-americanos, principalmente os de alto valor agregado. Como se isso não bastasse, o governo Bolsonaro aceitou a redução da cota de exportação do etanol e a sobretaxa de alguns produtos brasileiros, entre os quais o aço, atingindo duramente esses dois segmentos da economia nacional.
O NORTE ULTRALIBERAL E FISCALISTA PRETENDE CONTINUAR
Com a eleição dos novos presidentes da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, e do Senado Federal, Rodrigo Pacho, Bolsonaro, em sua mensagem para 2021, deixa claro que insistirá na aprovação de projetos de cunho ultraliberal que servirão apenas para agravar o quadro da já combalida economia brasileira.
O teto de gastos continuará represando os investimentos públicos e os programas sociais relevantes para a sociedade.
Mas essa “âncora fiscal” endeusada por Guedes e os adoradores do mercado não foi suficiente para saciar o apetite inesgotável dos que estão patrocinando a política econômica mais antipopular e antinacional de nossa história.
O “Plano Brasil Mais” buscará reduzir ainda mais a capacidade do Estado de induzir o desenvolvimento ao penalizar gravosamente os serviços e servidores públicos em geral.
Já a PEC do Pacto Federativo pretende introduzir novas medidas de ajuste fiscal à União, aos estados e municípios, proibindo, entre outras medidas, a vinculação de receitas à políticas públicas, por exemplo, de educação e saúde.
A “Carteira Verde- Amarela” também é outra obsessão de Bolsonaro e Guedes, cujo conteúdo aprofunda a precarização das relações do trabalho já profundamente aviltadas na “reforma trabalhista” de 2017.
Além disso, a PEC dos fundos públicos, também em processo de votação, estabelece facilidades para sua regulação (lei complementar) e dificuldades para sua subsistência, o que, inevitavelmente, levará os recursos dos que não conseguirem atingir as metas estabelecidas para o poder executivo ao qual estiver vinculado. É o olho gordo de Guedes, especialista no assunto, tanto que denunciado e investigado pelo Tribunal de Contas da União por se beneficiar com fraudes na gestão de fundos de pensão.
“Independência” do Banco Central e privatizações do setor elétrico e de gás arrematam o rol das medidas ultraliberais comandadas por Guedes e seus garotos de Chicago, na contramão do que o mundo está fazendo para sair da crise e retomar o crescimento após a pandemia.
A mensagem presidencial em meio a mais grave crise econômica, social e sanitária de nossa trajetória recente não trouxe um lampejo sequer de esperança aos brasileiros que sofrem com a falta de empregos e, até, de bicos; que já não conseguem colocar o alimento na mesa para seus filhos desde o fim do apoio emergencial, pois, além da carestia, até o gás de cozinha ficou difícil comprar; que agonizam nos hospitais enquanto a vacina não chega.
Como disse nosso colega Marcos Verlaine em sua matéria sobre a sessão de abertura do ano legislativo (https://horadopovo.com.br/bolsonaro-pinta-realidade-de-cor-de-rosa-na-mensagem-ao-congresso/), Bolsonaro pintou a realidade cor-de-rosa na renitente tentativa de enganar os incautos, descolando-se inteiramente dela, principalmente naquilo que se opõe a ele e aos seus complexos, ou seja, uma negação seletiva da realidade objetiva – aquilo que os especialistas chamariam de esquizofrenia autista.
Difícil imaginar vida longa a um governo cujo principal mandatário tem essas características ou, mesmo, traço de caráter.
O tempo dirá.
MAC