Governo gaúcho ignorou parecer do TCE que apontava erros no processo de privatização e valor de venda da estatal de saneamento subavaliado em ao menos R$ 1 bilhão
A conselheira Ana Cristina Moraes, do Tribunal de Contas do Estado do Rio Grande do Sul (TCE-RS), recomendou a investigação da privatização da Companhia Riograndense de Saneamento (Corsan) pela Polícia Civil, em função de irregularidades e ilegalidades apontadas pelo TCE presentes no processo de venda da companhia.
“E isso, Excelências, não pode ser considerado um pelo em ovo. De forma alguma”, rebateu a conselheira ao proferir o voto contrário ao prosseguimento do processo, conduzido pelo governador Eduardo Leite. Ela se referiu à fala de Leite, que alegou que os procuradores do Tribunal “procuravam pelo em ovo”, para impedir a entrega da companhia ao setor privado.
Para justificar o voto, a ministra citou “frustração do caráter competitivo, por causa da incorporação demasiada de riscos desnecessários, devidos a erros de gestão de projetos e a não correção das nulidades constantes nos termos aditivos de erradificação, mas, também, devido à subavaliação decorrentes de distorções da projeção da atividade operacional da CORSAN”.
No voto pronunciado na sessão do TCE de 20 de julho, a conselheira registrou que “ao final do terceiro trimestre de 2022 já era perceptível que havia uma distorção. Não obstante a isso, o aviso de leilão número 1/2022 foi publicado em 29 de novembro de 2022 sem as correções das projeções das modelagens para fixar o valuation e o preço de referência para a formação de lances no leilão”.
Ana Moraes concluiu que “o gestor da CORSAN, mesmo tendo acesso em tempo real aos resultados financeiros e podendo fazer as correções ainda na fase interna da licitação, permaneceu silente quanto a estes fatos”.
Os pareceres coincidiram no apontamento de irregularidades e na necessidade de se realizar nova licitação, após corrigidos os “gravíssimos vícios” detectados.
Os conselheiros alertam que a licitação realizada em 22 de dezembro de 2022 que culminou na venda da Corsan por R$ 4,1 bilhões, com apenas 1,15% de ágio, é recheada de erros, falhas contábeis e irregularidades relevantes.
Eles demonstram que o preço pelo qual o Grupo Aegea [controlado pelo Grupo Equipav, Fundo Cingapura e Itaúsa] arrematou a empresa foi subavaliado, no mínimo, em mais de um bilhão de reais.
Ao longo de um ano, o processo recebeu três pareceres no órgão contrários à continuidade da licitação: das conselheiras substitutas Heloisa Picinnini, em 6 de julho de 2022; de Daniela Zago, em 16 de dezembro de 2022, seis dias antes da licitação; e o último, da conselheira Ana Moraes, em 18 de julho de 2023.
Em manifestação de 3 de julho último, o procurador do Ministério Público de Contas junto ao TCE, Geraldo da Camino, também defendeu a anulação da licitação para evitar a consumação de prejuízos irreversíveis ao Estado.
Devido a uma decisão cautelar do TCE que impedia o governador Leite de assinar o contrato de entrega da Corsan ao Grupo Aegea, o processo ficou parado até o dia 7 de julho.
Nesta data, porém, o presidente do órgão, ex-deputado do MDB Alexandre Postal, aliado do vice-governador do Estado, e cujo irmão gêmeo ocupa cargo de Diretor no Banco do Estado do RS [Barinsul], em uma decisão monocrática e antirregimental, reverteu a decisão cautelar da Corte.
Apoiado nesta decisão, no mesmo dia 7, apenas algumas horas depois da decisão do seu correligionário, o governador apressou-se em realizar cerimônia para a assinatura do contrato que resultou na entrega da Corsan ao Grupo Aegea.
Apesar disso, o processo ainda está pendente de deliberação no TCE. Avalia-se que a entrega da Corsan, repleta de ilegalidades e irregularidades, mesmo assim deverá ser aprovada pela maioria de conselheiros do TCE, formada por ex-deputados do PTB, MDB e PP, aliados de Leite.
Mas, mesmo aprovada, a privatização da companhia de saneamento deverá parar nos tribunais, ser investigada pelo Ministério Público e, inclusive, pela Polícia Civil, como recomendado no voto da conselheira Ana Moraes.
Além dela, o conselheiro Estilac Xavier votou contra a decisão. A expectativa agora é de que o conselheiro Renato Azeredo, que representa as carreiras técnicas no Pleno do Tribunal, também acompanhe o voto dos dois colegas.
Em maio de 2021, contrariando promessa de campanha, o governador tucano entregou pela bagatela de cem mil reais a Companhia Estadual de Energia Elétrica/Distribuidora [CEEE-D] para o Grupo Equatorial Energia, que abocanhou o mercado de distribuição de energia elétrica para 1.792.000 consumidores de 72 municípios gaúchos. Na disputa ao governo do estado, Eduardo Leite (PSDB) prometeu não privatizar empresas estatais.
O impacto da privatização da CEEE foi imediatamente sentido pela população, que passou a enfrentar, como nunca antes na época da CEEE pública, quedas frequentes no fornecimento de energia, lentidão nos consertos da rede, falta de atendimento, além de longas jornadas de escuridão em estabelecimentos comerciais e domicílios.
Em Pelotas, município gaúcho, após 13 dias da passagem do ciclone extratropical que causou destruição e mortes no Rio Grande do Sul e deixou ao menos 2,6 mil moradores sem energia elétrica, até esta segunda-feira (24) moradores ainda reclamavam que ainda há localidades sem energia no Sul do estado.
Apesar da alegação da CEEE Equatorial Energia de que o fornecimento foi normalizado, a população de Colônia Santa Bernardina, que fica no limite entre Pelotas e Morro Redondo, por exemplo, estava sem eletricidade nesta segunda.
“Estamos há 12 para 13 dias sem energia e a CEEE Equatorial alega que está restabelecida, o que não confere com os fatos. Temos de nove a 10 residências sem energia. Inclusive de um senhor que tem 94 anos, usa bengala e fica difícil para ele se locomover à noite em casa, sujeito a cair um tombo”, disse Nelson de Jesus Candiota Quintian, 66 anos, ao portal GZH.
Em São Lourenço, segundo o GZH, 10 mil pessoas ainda estavam sem energia elétrica no dia de ontem. A prefeita de Pelotas, Paula Mascarenhas, também confirmou que havia moradores da zona rural sem luz e sem AGU.