Única obra realizada pelo governo Bolsonaro
A construção de uma estrada na Terra Indígena Yanomami está abrindo espaço para a entrada de maquinário pesado dentro do território, como escavadeiras hidráulica, algo nunca visto antes, capaz de aumentar entre dez e quinze vezes o potencial destrutivo do garimpo ilegal realizado na região. A denúncia foi feita pelo programa Fantástico da Rede Globo, levado ar neste domingo (11).
A convite do Greenpeace a reportagem do Fantástico sobrevoou a região na semana passada e mostrou que a nova rota clandestina tem 150 quilômetros e fica próxima à região onde vivem indígenas isolados, ao Sul de Roraima.
A descoberta da estrada foi confirmada durante a operação Guardiões do Bioma, deflagrada pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) para combater a ação de criminosos na Amazônia. A fiscalização tem apoio da Polícia Federal.
A rota dá acesso às áreas de exploração de ouro onde são usadas até de retroescavadeiras. Além de aumentar o poder destruidor dentro da terra indígena, a estrada ameaça a existência da população autóctone (intocada), já que a rodovia passa a menos de 15 quilômetros de uma aldeia do povo Moxihatëtëa, que vive em isolamento voluntário no território Yanomami.
“Infelizmente, o que gente presenciou na Terra Indígena Yanomami, nesse momento, é o garimpo indo para um patamar diferenciado. A chegada das escavadeiras hidráulicas dá um poder de destruição muito maior a esses garimpeiros, afirma Danicley de Aguiar, membro da campanha da Amazônia do Greenpeace Brasil. “Nós estamos falando de um legado de destruição enorme”, denuncia.
Maior reserva indígena do Brasil, situada em uma área de difícil acesso geográfico, a Terra Yanomami tem quase 10 milhões de hectares, onde vivem quase 30 mil indígenas – ameaçados pela presença de 20 mil garimpeiros que exploram e destroem a floresta em busca de minérios como o ouro e a cassiterita.
Durante o voo, a equipe do Fantástico mostrou três retroescavadeiras em plena atividade, a serviço do garimpo na região do Rio Catrimani, um dos mais poluídos por mercúrio dentro da reserva. Essas e uma outra máquina pesada foram destruídas pelo Ibama.
A ação criminosa dentro da reserva avançou 3.350% entre os anos de 2016 a 2020, segundo relatório “Yanomami sob ataque”, divulgado em abril deste ano pela Hutukara Associação Yanomami, a mais representativa e atuante organização desse povo.
De acordo com o documento, os últimos cinco anos representam “o pior momento de invasão desde que a TI foi demarcada e homologada, há trinta anos”. “O ataque aos povos da Terra Indígena Yanomami já ocorreu na década de 1980, com a invasão de mais de 40 mil garimpeiros. Hoje, em 2022, a história se repete. Isso é muito grave”, alerta Dario Kopenawa.
Somente em 2021 o garimpo ilegal avançou 46% em comparação à 2020. No ano passado, já havia sido registrado um salto de 30% em relação ao período anterior. De 2016 a 2020, o garimpo na TIY cresceu assustadoramente 3.350%, ressalta o estudo da Hutukara.
O documento aponta ainda que o número de comunidades afetadas diretamente pelo garimpo ilegal soma 273, abrangendo mais de 16 mil pessoas, ou seja, 56% da população total. A ocupação criminosa na TI Yanomami tem provocado a disseminação de doenças entre a população e o “recrudescimento assustador” da violência.
“A extração ilegal de ouro [e cassiterita] no território Yanomami trouxe uma explosão nos casos de malária e outras doenças infectocontagiosas, com sérias consequências para a saúde e para a economia das famílias, e um recrudescimento assustador da violência contra os indígenas”, diz a Hutukara.
“É inacreditável que tantos quilômetros de estrada sejam abertos dentro de uma terra indígena, de forma clandestina, sob os olhos do Estado. Isso é totalmente ilegal. Essa estrada serve para o avanço de máquinas pesadas, que destroem os solos, as árvores e as vidas das pessoas”, denuncia a coordenadora-executiva da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) e deputada federal eleita pelo PSOL, Sônia Guajajara.
“É importante e urgente uma ação do estado brasileiro. E não pode ser uma operação isolada, de ações pontuais. Tem que ser uma operação permanente”, defende Guajajara.
“É uma exploração, não só do território, mas da vida, a destruição da vida dos Yanomami. Que dependem desse território protegido, preservado, para garantir a sua própria sobrevivência”, diz a coordenadora da Abip, que também sobrevoou a região com a equipe do Fantástico.
Para o porta-voz da Campanha Amazônia do Greenpeace,“impedir o avanço do garimpo na TI Yanomami deve ser a prioridade número um do próximo governo para impedir “um ciclo de destruição em massa”.
“Ao viabilizar a entrada das escavadeiras hidráulicas, essa estrada potencializa o caos produzido pelo garimpo ilegal e aprofunda o desespero vivido pelos Yanomami. Impedir o avanço do garimpo na TI Yanomami deve ser a prioridade número um do próximo governo; do contrário, assistiremos um ciclo de destruição ainda não experimentado nesse ponto do país”, alerta.
“É fundamental expulsar os garimpeiros e viabilizar uma transição do modelo econômico da região; substituindo a economia da destruição, por uma economia capaz de conviver com a floresta”, disse o porta-voz.
O analista ambiental e um dos fiscais do Ibama à frente da operação em Roraima, Hugo Loss, acredita que, atualmente, pela capacidade de organização e estrutura mantidas pelo garimpo, acredita-se que eles têm relação com facções. Em um dos dias da operação, com a chegada dos fiscais, os criminosos soltaram fogos como forma de sinalizar que havia operação naquela região.
“Hoje, ali na [terra] Yanomami, a gente pode dizer com certeza que existe uma relação estreita entre o garimpo e as facções criminosas ali dentro. Assim que a presença da polícia se fez lá no rio a gente observou que eles começaram a soltar fogos. Então, esse é um sinal de alerta que eles dão, típico de facção criminosa. Para poder avisar que existe ali a presença da polícia”, avalia Loss.
“Vieram baixinho, rasteiro”, diz um garimpeiro em um grupo de WhatsApp. “É bom dar uma aquietada, hein. Circula essa informação porque vai queimar trem aí”, alerta outro comparsa, em áudios interceptados pela polícia.
A forma de impedir o avanço de garimpeiros ilegais da reserva requer do governo federal a implantação de fiscalização contínua – e não mais somente ações pontuais, acredita o analista do Ibama.
“Tem que existir também uma ação permanente de fiscalização dentro da Terra Indígena. Com uma ação permanente para coibir todo o garimpo que está lá dentro e também toda a estrutura logística de fora, que dá apoio para o garimpo dentro da [terra] Yanomami”, defende Loss.
“Nós precisamos de um apoio maior dos poderes legislativo e judiciário, no sentido de aplicar penas mais severas e duras contra todos os atores que estão destruindo a floresta Amazônica em busca dessa ganância, desse lucro fácil. Extraindo o ouro das raízes da floresta amazônica”, pontua Loss.
“Enquanto não existir uma fiscalização permanente, por um período de tempo longo, não haverá como tirar os garimpeiros de dentro da [terra] Yanomami”, completa o fiscal do Ibama.
A estrada foi descoberta recentemente pelos próprios Yanomami, que fizeram os primeiros relatos sobre ela no início de novembro. Eles também denunciaram que viram escavadeiras hidráulicas nos arredores da rodovia.
“Nós, Yanomami do Alto Catrimani I, informamos que chegaram três escavadeiras elétricas aqui. Por isso, eu estou comunicando no rádio. Quero divulgação imediatamente. Nós lideranças estamos avisando vocês”.
“Nós precisamos avisar a Polícia Federal urgentemente e com a FUNAI para retirar os garimpeiros de lá. Se demorar, nossas casas vão ser destruídas. As crianças estão com medo”, prossegue trecho de umatranscrição de uma mensagem de rádio enviada do interior da Terra Yanomami em 14 de novembro de 2022.
No sobrevoo realizado semana passada pelo Greenpeace Brasil foi possível confirmar a denúncia. A rodovia apareceu no monitoramento via satélite muito recentemente, a partir de agosto de 2022.
A reserva indígena já havia sido alvo de outra invasão garimpeira na década de 80, com efeitos catastróficos para aquele povo. Segundo o Ministério da Saúde, entre 1987 e 1990, cerca de 14% dos Yanomami morreram por doenças transmitidas pelos garimpeiros.
O garimpo também causou a destruição do leito dos rios, contaminações por mercúrio e óleo diesel, além de uma série de problemas sociais como violência desenfreada, desestruturação de grupos sociais, exploração sexual infanto-juvenil e trabalhos precarizados.