O mais notável na decisão do ministro Edson Fachin, relator da Operação Lava Jato no Supremo Tribunal Federal (STF), que derrubou a entrega de dados das forças-tarefas de Curitiba, Rio e São Paulo ao procurador geral Augusto Aras, é a demonstração de que o próprio pedido de Aras foi irregular, portanto, ilegal.
E não podia ser mais irregular.
Aliás, mais irregular do que esse pedido, somente a decisão de Dias Toffoli, aceitando-o, no dia 8 do mês passado. Essa decisão é daquelas que fazem lembrar o grande Rui Barbosa: “Não há tribunais, que bastem, para abrigar o direito, quando o dever se ausenta da consciência dos magistrados“.
Ou, no mesmo texto: “Medo, venalidade, paixão partidária, respeito pessoal, subserviência, espírito conservador, interpretação restritiva, razão de estado, interesse supremo, como quer te chames, prevaricação judiciária, não escaparás ao ferrete de Pilatos! O bom ladrão salvou-se. Mas não há salvação para o juiz cobarde” (Rui Barbosa, “O justo e a justiça política“, Obras Completas, vol. XXVI, tomo IV, 1899, pp. 185-191).
Resumindo:
Durante o recesso do Judiciário, o atual presidente do STF, Dias Toffoli, aceitou um pedido de Aras para que os dados das investigações da Operação Lava Jato fossem entregues a ele, Aras – que já tentara, através de uma subordinada, a sub-procuradora Lindôra, obtê-los, mas enfrentara a resistência dos procuradores de Curitiba, que apontaram a ilegalidade no fornecimento de dados, sigilosos por decisão judicial, a quem não fazia parte da investigação.
Toffoli tomou a decisão a favor de Aras como plantonista, durante o recesso do Judiciário – apesar de saber que o relator da Lava Jato, ministro Edson Fachin, a quem cabia decidir sobre o pedido, iria voltar de suas férias apenas três semanas depois.
Que diferença faria, para Aras ou para a Justiça, esperar três semanas para que Fachin tomasse a decisão?
Que urgência havia para decidir tal questão, em caráter liminar, ou seja, sabendo que a decisão definitiva seria tomada após a volta de Fachin?
Toffoli sabia perfeitamente a quem beneficiava a sua decisão: a Bolsonaro, hoje mais febril para frear e acabar com as investigações do Ministério Público e da Polícia contra a corrupção, do que jamais esteve quando acometido pela COVID-19.
Todo o ataque de Aras contra o combate à corrupção, todas as suas agressões a procuradores, tinham e têm este objetivo: proteger a corrupção de Bolsonaro, seus sequazes e seus aliados (v. HP 30/07/2020, Ataque de Aras à Lava Jato é para acoitar corrupção de Bolsonaro e aliados).
Não era um segredo. Era um escândalo.
No entanto, Toffoli concedeu o pedido de Aras, isto é, acedeu à sanha de Bolsonaro para abafar – mais que isso: estrangular – as investigações do Ministério Público Federal contra a corrupção.
Com isso, Toffoli passou por cima de Fachin, e, como destacaram os procuradores que formam o Ministério Público, da própria Constituição da República, que garante autonomia aos procuradores e o sigilo de suas investigações.
A decisão de Toffoli era, portanto, ilegal.
Agora, sabemos que o próprio pedido de Aras era irregular.
Como destaca Fachin em seu despacho de segunda-feira (03/08), o pedido de Aras, para que as forças-tarefa da Lava Jato entregassem os dados das investigações a ele, baseava-se, supostamente, em uma decisão do STF sobre a remoção de membros do Ministério Público.
O que isso tinha a ver com a entrega de dados da Operação Lava Jato ao procurador geral Augusto Aras?
Como demonstrou Fachin, nada, absolutamente nada. A própria argumentação era imprópria, assim como o instrumento jurídico utilizado, uma Reclamação ao STF.
“Decisão sobre remoção de membros do Ministério Público”, escreveu o ministro Edson Fachin, “não serve, com o devido respeito, como paradigma para chancelar, em sede de reclamação, obrigação de intercâmbio de provas. Entendo não preenchidos os requisitos próprios e específicos da via eleita. Pelo exposto, nos termos do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal, nego seguimento à reclamação e, com integral efeito ex tunc [retroativo], revogo a liminar”.
Ou seja, a decisão de agora, tomada por Fachin, revoga a decisão de Toffoli, ao entregar os dados a Aras, desde o dia 8 do mês passado.
O problema é que parte desses dados, nas três semanas que decorreram, já foi entregue a Aras. Esse foi o efeito da decisão de Toffoli, que determinara, há três semanas, a remessa, pelas forças-tarefa da Lava Jato, de “todas as bases de dados estruturados e não-estruturados utilizadas e obtidas em suas investigações” ao procurador geral.
Ou seja, Toffoli e Aras aproveitaram-se do recesso judiciário – isto é, da ausência de Fachin, em férias do STF – para transferir dados que Aras (e, por trás deste, Bolsonaro) não tinha o direito de conhecer.
Toffoli disse ainda, no dia 8 do mês passado, que “a direção única pertence ao procurador-geral, que hierarquicamente, detém competência administrativa para requisitar o intercâmbio institucional de informações, para bem e fielmente cumprir suas atribuições finalísticas” e que os procuradores haviam cometido “evidente transgressão” ao não passar os dados que Aras queria controlar.
Que “atribuições finalísticas”? A de colocar uma rédea corrupta no combate à corrupção?
A decisão de Toffoli era de uma ignorância somente comparável à sua tendenciosidade política. Como observaram inúmeros juristas, o procurador geral da República, pela Constituição, não é chefe dos outros procuradores em sua ação nas investigações e nos processos judiciais.
Apenas, o procurador geral atua perante as duas instâncias superiores da Justiça, o STF (para questões constitucionais) e o STJ (para a legislação abaixo da Constituição).
Os outros procuradores atuam na primeira e na segunda instâncias da Justiça Federal (Varas e Tribunais Regionais Federais).
A diferença é essa – não há uma relação de chefia entre o procurador geral e os procuradores que atuam na primeira e na segunda instância. Há, somente, uma diferença nas instâncias em que atuam – e nos alvos de investigações e processos: governadores, senadores, deputados e o presidente da República são processados no STJ e STF – e são investigados sob autorização desses tribunais. Portanto, as ações em que sejam incluídos são atribuições específicas da Procuradoria Geral da República.
Não há, portanto, uma relação de chefia funcional entre o procurador geral e os demais procuradores da República.
O que não é novidade alguma – é assim desde a promulgação da Constituição de 1988.
Como observou um professor de Direito Constitucional – Roberto Dias, da Fundação Getúlio Vargas – essa suposta chefia do procurador geral sobre os outros procuradores somente surgiu agora porque “esse é o meio pensado pela PGR para extinguir a Lava Jato e reduzir os mecanismos de combate à corrupção”.
O professor frisa, também, a ilegitimidade de Aras, como procurador geral “nomeado fora da lista tríplice, por um presidente, que apesar do discurso de campanha, tem todas as qualidades de não combater a corrupção, de manter o status quo. Achar que ele seria um grande defensor da Lava Jato foi um grande equívoco, a venda de uma ilusão, para quem acreditou no discurso de campanha dele. No governo Bolsonaro, a Lava Jato cai por terra”.
A rigor, Aras nem ao menos consegue realizar uma reunião do Conselho Superior do Ministério Público, do qual, como procurador-geral, é presidente (v. HP 01/08/2020, Nicolao Dino diz que agressão de Aras ao MP visa obstruir o combate à corrupção).
É a esse tipo de gente, que desmerece o cargo que ocupa para se tornar instrumento servil da família Bolsonaro e seus asseclas, políticos e milicianos, que Toffoli contempla – por sua vez, usando o cargo de ministro e presidente do STF.
A reação da sociedade, desde a decisão de Toffoli a favor de Aras/Bolsonaro, foi extremamente saudável.
A decisão de Fachin, no primeiro dia após as férias do STF, foi uma condensação e coroamento (ainda que momentâneo) desse sadio sentimento social.
Por fim, Fachin quebrou o sigilo da própria ação movida pelo procurador geral, considerando-o desnecessário e inconstitucional.
CARLOS LOPES
V. noticiário da TV Justiça: