As inovadoras políticas públicas da China são o tema do Meia Noite em Pequim desta semana, da TV Grabois, em que o pesquisador e escritor Elias Jabbour debate com a jovem historiadora Isis Paris Maia o que a China fez nas últimas décadas em relação ao combate à pobreza.
O pesquisador assinala o silêncio que existe sobre o feito que é a China ter eliminado recentemente a pobreza extrema. Isso em um país em que mais da metade é deserto ou montanha; com 1 bilhão de habitantes altamente concentrados em uma região do país; com 20% da população mundial e 5% das terras aráveis. E que nos últimos 2 mil anos teve cerca de 2 mil crises de fome.
Isis: A grande mídia ignorou a erradicação da pobreza extrema na China. 850 milhões de pessoas é quatro vezes a nossa população. Num governo como o nosso, horroroso, neoliberal, genocida, estudar a erradicação da pobreza, observar cientificamente quem conseguiu um avanço como esse, é primordial. Porque a gente vai precisar muito reconstruir as nossas políticas públicas e o nosso país.
POLÍTICAS DIRECIONADAS À MUDANÇA ESTRUTURAL
Jabbour: “Você fala muito de políticas públicas direcionadas. Os neoliberais falam muito em políticas focalizadas, e você está trazendo uma novidade, o que seria isso?”
Isis: Na focalizada, por exemplo, transferência de renda, você resolve o problema naquele momento, mas não estruturalmente. A grande diferença das políticas públicas direcionadas é que elas usam a redistribuição de renda, a previdência, a saúde, tudo isso, só que o grande foco é na mudança estrutural, no emprego, na educação. É conseguir mudar estruturalmente a vida dessas pessoas.
Imagina um país que em 1949 era o 11º país mais pobre do mundo com uma expectativa de vida de 35 anos, porque tinha passado pelo século de humilhações. A partir do boom econômico desencadeado pela modernização e abertura de Deng Xiaoping, muita gente saiu da pobreza, a maior parte nos anos 1990 a 2010. Em 1993 Jiang Zemin institucionaliza as políticas públicas semelhantes às que se tem aqui. Em 2013 Xi Jinping observa que havia pessoas que não tinham saído daquela vulnerabilidade, nem pelo boom econômico nem pelas políticas públicas (PP) comuns.
Aí a China inaugura essa estratégia que é um pente fino que o governo faz. Pode ser uma família que não fale mandarim porque são 56 etnias; pode ser a questão geográfica como o Elias falou, às vezes a pessoa mora num lugar que não tem nem estrada. Pode ser por serem idosos e aquela vila ter se mudado e eles ficaram.
A China gastou bilhões nisso, são funcionários do partido caçando essas pessoas, descobrindo quais são as especificidades, quase 43 milhões de pessoas alcançadas. Se não existir uma PP que se encaixe, eles chegam a desenhar uma PP para uma única família.
‘WELFARE STATE’ NÃO CAI DO CÉU
Jabbour: Como mostramos no livro escrito com o Sergio Gabrieli, welfare state não cai do céu; se não tem um setor produtivo produzindo excedente para sustentar o setor improdutivo, ou seja, o setor voltado para o enriquecimento espiritual da população, não tem como ter welfare state. Em que pé está essa questão da construção do welfare state hoje na China?
Isis: Primeiro é legal a gente observar que não existe um welfare state nos EUA, o grande hegemon que gosta tanto de atacar, a gente vê welfare state nos países nórdicos. Mas a grande questão é que a China vem traçando um caminho muito coerente desde a sua revolução. Desde 1980 colocou a meta de erradicação da pobreza que era em 2020 e foi em 2020 mesmo com pandemia.
Agora tem a construção de uma sociedade harmoniosa, um passo à frente, que prevê a diminuição das desigualdades e a instalação de um wellfare state. A China é o único país do mundo que desde que foi criado o IDH [Índice de Desenvolvimento Humano] conseguiu transitar de baixo para cima – era 0,41 em 1978 e agora é 0,76 em 2020.
Então é uma construção, você começa erradicando a pobreza extrema, a próxima meta é a pobreza relativa, que é para criação do que a gente chama de sociedade harmoniosa, que é o último plano quinquenal, acho que é o 14º e a meta é em 2035 a instalação da sociedade harmoniosa e do welfare state chinês.
Jabbour: Eu tenho dito para as pessoas que a China se move via várias ondas que se sobrepõem, inclusive de inovações institucionais. Inclusive a nova onda que está havendo e que está trazendo várias dores do parto é a mudança nos esquemas de propriedade. Então hoje a China, por exemplo, está passando por um processo de estatização de setores inteiros da economia, falam de regulação, mas no fundo é estatizar. Ou seja, passar para o controle do governo determinado setor da economia, ou voltar para os interesses estratégicos do país.
Isis: É como se fosse uma carta na manga falar que “tem bilionário” na China, mas ela está erradicando a pobreza. A gente está estudando a prática, e a prática ela não é linear, tem queda, tem subida, tem erro, tem acerto. Mas se a gente for ver tanto a questão científica que é o tema de hoje, quanto a questão até moral… O que eu escuto do Hukou, mas a gente for pensar que 653 milhões – 3 Brasis – saíram do campo para a cidade e não tem favela, há casas pobres mas não há uma favela.. E isso não é falado, é sempre o caráter coercitivo, é sempre a carta de “o governo mandou” – que bom que houve uma política pública para isso, que as pessoas conseguiram migrar sem o surgimento de favelas.
Jabbour: Você não acha, por exemplo, que nesse processo, de combate à pobreza na China, dá para se pensar em falar “olha acho que os chineses criaram uma ciência aí” que os países do mundo deveriam estudar sobre combate à pobreza, ou ao menos algumas categorias de análise?
Isis: Eu acredito que é um feito muito recente o anúncio de erradicação da pobreza. Eu resolvi me debruçar sobre isso porque acredito na nossa urgência em estudar o tema mais cientificamente. Por exemplo, essa mistura de políticas que eu vou explicar aqui rapidamente. Top down é quando é uma política pública desenhada com as regras que eu expliquei e as pessoas se encaixam; e há outro tipo de política pública que vem de baixo para cima, que é quando os funcionários conseguem conversar e ver que essas famílias precisam disso e daquilo e há uma maior interação.
A China consegue mesclar os dois. Ela desenvolveu as políticas, enviou 800 mil quadros do partido à aldeia, quadros e assistentes sociais, para ver qual era a questão e eles se comunicaram para desenhar as políticas públicas. Então eu acredito que daí surge uma nova ciência que o mundo precisa olhar a China e descobrir o que a China fez e como fez.
CHINA: PRIMEIRO A CUMPRIR META DA ONU PARA 2030
Isis: A China foi o primeiro país a cumprir a meta de erradicação da pobreza da ONU para 2030 de tirar 70% das pessoas do mundo desse quadro. Usaram medidas do Banco Mundial, da ONU, do Banco Asiático, toda sua valência de tecnologia, há todo um planejamento que integra todo setor de inteligência chinês nesse combate.
Então, não foi só a economia, não foi só pelas PP direcionadas, não foi só pela redistribuição de renda, foram todas as valências juntas. Um planejamento num nível que a gente ainda não havia encontrado. Cabe a gente se debruçar e principalmente ter a humildade de aprender. Vamos aprender com quem, em condições adversas, fez o maior feito histórico.
Jabbour: Eu tenho levantado a hipótese de que a China inaugura novas e superiores formas de planejamento econômico e isso ao acontecer tem um maior domínio humano sobre a natureza e demonstra que existe a necessidade de descobrirmos quais as novas regularidades econômicas e sociais que surgem a partir desse maior domínio humano sobre a natureza, o que nós chamamos de Nova Economia do Projetamento.
O núcleo da hipótese é que a China consegue fazer tudo isso de que se está falando e elevar o grau de planificação da sua economia a patamares jamais sonhados.
Ela conseguir formar uma política industrial voltada para a formação do sistema nacional de inovação tecnológica centrado em 96 conglomerados empresariais estatais e dali surge o que eu chamo de inovações tecnológicas disruptivas, 5G, Big Data, Inteligência Artificial e mais recentemente o computador quântico.
Como foi na sua pesquisa essa experiência que você teve com o papel do Big Data no enfrentamento da pobreza na China?
Isis: A gente precisa, primeiro, entender o que é o Big Data. Aqui no Brasil a gente consegue saber… eu vou chutar um número imaginário …“70% das pessoas não possuem internet”…, mas no máximo a gente consegue regionalizar.
O Big Data chinês conseguiu criar o que eles chamam de Índice de Padrão de Vida, são 8 indicadores, entre eles água potável, cozinha dentro de casa, acesso à internet. A partir desses indicadores, isso foi em 2002, eles conseguem mapear a pobreza e dizer o Zezinho não tem acesso à internet, Luiz não tem uma cozinha dentro de casa. Isso significa utilizar melhor o recurso, é um outro nível de planejamento até então não existente, o governo tem X recurso e eles conseguem desenhar melhor a PP.
Na segunda etapa de implementação, há uma plataforma com app do governo, o funcionário diz “agora eu fui na casa do fulano , ele está empregado, ou ele está recebendo um recurso, esta é a situação”. Eles também têm um banco de emprego para cruzar as pessoas, porque tem muito essa questão de uma mudança estrutural com base em economia. São 300 tipos de política lá listados.
Existe um último ciclo, que é o monitoramento e a avaliação. A pessoa não precisa mais, mas o governo continua monitorando ali por cinco anos, porque é muito comum a pessoa que saiu da pobreza extrema retornar por qualquer motivo. Aí naquele momento que a pessoa volta para a pobreza extrema o governo vai lá e volta a fazer transferência, volta a procurar um emprego.
Elias Jabbour é professor dos Programas de Pós-Graduação em Ciências Econômicas e em Relações Internacionais da UERJ.
Isis Paris Maia é graduada em História e Mestranda em Políticas Públicas pela UFRGS. Atualmente, trabalha com políticas de erradicação da pobreza e capacidades estatais na China.