O Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo (IRI-USP) recebeu, na última segunda-feira (27), a conferência “Os desafios da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados no contexto atual” como deputado federal Orlando Silva (PCdoB-SP), que assumiu recentemente a presidência da comissão na Câmara Federal.
O objetivo foi de analisar a crescente onda de ataques aos direitos humanos e sobre o que é preciso para defendê-los principalmente evidenciados pela fome, pela violência, e o aumento gradual das pessoas em situação de rua, agravados ainda mais pela pandemia e pelo governo Bolsonaro.
O debate foi mediado pelo Prof. Dr. Pedro Dallari, diretor do IRI-USP. Contando ainda com a participação da Dra. Mariana Moura, co-fundadora do Movimento Cientistas Engajados; a Professora Dra. Ana Lanna, Pró-Reitora de Permanência e Pertencimento da USP e o advogado e especialista em defesa dos direitos humanos, Belisário dos Santos Jr, ex-secretário de Justiça do estado de São Paulo e um dos fundadores da Comissão Arns.
O deputado Orlando Silva elencou pontos discutidos e levados como metas pela Comissão da Câmara Federal e abordou os ataques de Bolsonaro acerca dos direitos humanos. Segundo o deputado, a “era Bolsonaro é o momento em que o Estado protagoniza a violação de direitos humanos”.
“O tempo presente é um tempo extravagante de ataques aos direitos humanos. Eu estava comentando antes que era um trauma pra mim esses dois meses de comissão de direitos humanos, que toda semana há um ato muito forte de violação de direitos humanos no Brasil, toda semana”, disse.
Veja o debate na íntegra:
Orlando destacou os “eixos de trabalho” da à frente da Comissão de Direitos Humanos:
1 – Combate ao racismo
“O primeiro eixo é a defesa de um programa de ações afirmativas que permitam avançarmos no combate ao racismo. O professor Silvio Almeida fala do racismo estrutural como tecnologia de dominação social, ou seja, você não rompe aqui acolá com uma iniciativa ou outra. Mas um programa permanente de ações afirmativas pode criar condições para que nós possamos avançar no combate e ousar medir a superação do racismo no Brasil, que é uma chave para compreender muitas desigualdades: econômicas, sociais e até políticas. Há um tema na mesa que é o tema das cotas. Nós completamos esse ano 10 anos de cotas para as universidades brasileiras e isso mudou um pouco o perfil da universidade. 30 anos atrás, quando eu estava na universidade era um ambiente, hoje é outro. A universidade está mais pintada, recolheu mais a diversidade da nossa gente e as políticas de cotas eu não tenho dúvida que tem um impacto brutal porque a ação afirmativa é um moderador. Um jovem que estudou a vida inteira em condições muito difíceis, que fica zero, qualquer coisa abaixo de alguém que teve condições muito favoráveis é um espetáculo, é um talento e precisa ser incorporado como um dos melhores, que possui mérito para aquela posição. Então estou ilustrando com a questão das cotas para sustentar que são importantes essas medidas, essas políticas públicas, essas ações afirmativas para nós avançarmos no combate ao racismo.
2 – Proteção e apoio aos Povos Indígenas
Um segundo eixo diz respeito à proteção e apoio aos povos indígenas. Que curiosamente, sabemos que a cidade de São Paulo, esta cidade que nós vivemos, possui comunidades de povos originários. Estive a pouco em Parelheiros, numa comunidade que avança na sua organização e já se distribui em 16 tribos distintas numa determinada área e que enfrenta as tensões dos invasores. Tensão que cresceu muito na era Bolsonaro porque a licença foi dada para todos. Então eu dou exemplo de São Paulo porque cabe cooperação, cabe ação conjunta com os povos indígenas que vivem aqui na nossa cidade, na zona sul, no Jaraguá na zona oeste, que tem também uma atenção muito grande com a especulação, assim como nós temos uma solidariedade aos yanomami, assim como ficamos assustados com a violência no Vale do Javari, vale observar no nosso entorno que há tradições aqui que correm risco e merecem todo o cuidado, toda atenção, são povos originários. O Vale do Javari é curioso, são 26 etnias naquela região, uma região que é do tamanho da Áustria. E lá tem 19 grupos isolados e o que explica ao Dom Phillips ali também era isso, porque a notícia para o mundo da existência deles é instrumento de defesa de resistência e de proteção. Aí o nosso trabalho inclui a abordagem acerca do tema do Incra, do tema da Funai ,porque nós no Brasil nos últimos 10 anos houve mais de 300 mortes em conflitos fundiários e cerca de 25% dessas mortes envolvem indígenas e outros 17% envolvendo quilombolas. Então é importante o apoio, a proteção para esses povos originários que tem a ver com a nossa formação, é parte da nossa história e merece todo o nosso respeito e consideração e atenção.
3 – Violência política
Um terceiro eixo diz respeito ao problema da violência política. A violência política é um tema da democracia. Aliás, na próxima quarta-feira (6) vamos fazer um seminário na comissão com especialistas, pesquisadores e lideranças políticas da sociedade civil, sobre essa tensão que cresce na vida nacional, que todos acompanham, o discurso de ódio ganhou um lugar de padrão na conduta de agentes públicos, de agentes políticos, e conflitos que têm certos focos voltados às mulheres e trans, os dados são assustadores como cresce a violência política, inclusive contra mandatados, quase sempre mulheres são interrompidas sobretudo, mulheres negras. Nunca vamos esquecer da frase de um embate de Marielle Franco quando ela dizia ‘você não vai me interromper’ porque a rotina é a tentativa de calar, de silenciar o nosso campo e particularmente mulheres negras e trans que são vítimas da violência política. E nesse ano que vai ter uma eleição decisiva na vida brasileira e que nós não conseguimos nem mensurar os riscos ainda nitidamente, então imagine que em 2019 pra cá nós aumentamos em 400% o registro de armas no Brasil. Então o ambiente de enfrentamento que a partir do líder da república existe, põe e merece que nós coloquemos luz no tema que eu considero sensível para nossa democracia.
4 – População em situação de rua
O quarto eixo é um tema que entra na pauta, sobretudo porque São Paulo é um lugar em que esse tema é muito delicado, diz respeito a situação da população de rua ou a população em situação de rua. Quem vive em São Paulo a mais tempo, se nós pudéssemos rememorar 2012, há 10 anos atrás, nós tínhamos cerca de 12, 13 mil pessoas em situação de rua. Hoje os dados oficiais chegam a 48 mil pessoas em situação de rua só na cidade de São Paulo, evidentemente. Isso gera uma série de consequências sociais, inclusive de violação de direitos humanos num nível brutal e merece algum tipo de abordagem. Existe inclusive, é curioso, existe um documento que as Nações Unidas, que regularmente monitoram a situação de direitos humanos do mundo, e não tem o problema da situação em população de rua, porque não existe no planeta um quadro de gravidade como o que nós vivemos no Brasil. E merece debate público, agenda pública e uma agenda com a paciência que o tema existe. Não tem solução fácil aqui, imaginemos o quadro da Cracolândia por exemplo, que é um ponto sensível, de uma população importante que vive situação de rua. Não tem uma solução mágica, repressiva, de segurança. Ali se não tiver inteligência, saúde pública, geração de renda, reunião familiar, dificilmente a gente consegue ter uma solução que nos permite enfrentar um quadro dramático como aquele.
5 – Violência policial e sistema carcerário
O quinto eixo que é muito sensível, diz respeito a violência policial e as condições de sistema carcerário, sistema penitenciário do Brasil, é um drama, a terceira população carcerária do mundo e aqui são vários fatores que mereceriam uma análise com calma, inclusive a lei antidrogas, que é um dos fatores que fez explodir a população carcerária do Brasil e cresce a presença de mulheres encarceradas, cresce de um modo absurdo. O certo é que a potência de ressocialização é absolutamente insignificante. E os remédios que estão sendo propostos são dramáticos. Nos próximos dias a Câmara dos Deputados pode examinar três projetos de lei com a marca de que é pra pautar a segurança pública, sendo ela a que a meta é acabar com a chamada Saidinha. Essa é a estratégia deles, porque assim eles imaginam que vão reduzir o nível de violência, que é um escândalo, você vai impedir que um caminho, o mecanismo que deveria ser parte do esforço de ressocialização, quer manter certos vínculos emocionais, sociais, eles disfarçam o que seria algo inacreditável.
6 – Combate à desinformação
E por fim o último eixo que está na nossa agenda diz respeito ao problema da desinformação. Porque o acesso a informação na sociedade presente, cada vez mais, ganha contorno de um direito fundamental, porque se nós não tivermos acesso a informação nós produzimos um quadro como esse a gente vive no Brasil. Nós não temos tradição de movimentos antivacina, isso era uma coisa que imaginávamos que Oswaldo Cruz tinha resolvido para nós 100 anos atrás. Mas de repente floresce no Brasil um forte movimento antivacina, que é fruto de uma pandemia, melhor dizendo, uma epidemia, que é a epidemia da desinformação, feita com método, com financiamento, com muito rigor e que alcança vários objetivos, no campo da política, no campo da sociedade, na luta de ideias, no plano da cultura e tudo isso pode ter consequências e isso merece e tem tido lá um tratamento especial com iniciativas, seminários, projetos de lei, debates, pautas com sociedade civil.’
“Falei desses eixos que são o que tem estruturado o debate que nós fazemos na comissão e evidentemente se nós sabemos dos limites que uma comissão temática mesmo que permanente no parlamento na Câmara tem, mas nós não temos alternativa. Nós temos que ocupar aquele lugar como lugar de resistência um lugar de diálogo com a sociedade e é importante a oportunidade ter um diálogo com a principal universidade do Brasil para encontrar caminhos comuns, para que nós possamos produzir soluções conjuntamente”, defendeu Orlando.
COMBATE ÀS FAKE NEWS
A Pró-Reitora Ana Lanna continuou a discussão e afirmou que o papel da universidade pública, principalmente da USP, é mobilizar a comunidade em defesa dos direitos humanos, para combater os desmandos e firmar um compromisso para avançar a discussão da comissão da Câmara Federal.
“Temos que levar como o compromisso da nossa universidade mobilizar os seus saberes na defesa dessas pautas sobre os direitos humanos. Não é diferente ou não é suficiente ter os nossos docentes e os nossos alunos, os nossos ex-alunos engajados, por exemplo, na a violência policial ou no combate às fake news ou na defesa ampla da democracia e da constituição. Isso é imprescindível!”, disse.
“A universidade deve procurar estabelecer, nesse momento, com muita urgência um compromisso institucional, ou seja, como nós podemos participar de uma luta que hoje é uma luta de resistência, como fazermos para que depois de outubro, seja a constituição e o estado democrático de direito que continue a viger nesse país. Eu acho que a gente deve constituir uma possibilidade institucional de parceria e de conformação de estratégias, acho que a gente tem os órgãos, a gente tem os saberes, a gente tem a intenção, a convicção e é necessário que isso aconteça”, concluiu Ana Lanna.
Belisário Jr, afirmou que a Comissão Arns também está à disposição da Comissão Federal para atuar e zelar em defesa dos direitos humanos.
“Hoje, a leitura que os governantes fazem das leis é como desproteger os direitos humanos, como a gente pode criar uma agenda contra os direitos humanos. Norberto Bobbio fala uma frase muito curiosa, que versa sobre ler a declaração universal dos direitos humanos e dar uma volta no seu jardim, para ver o que é que foi estatuído e como e quais direitos e como estão sendo descumpridos, porque é disso que se trata”, disse.
“A Comissão Arns está à disposição. Nós temos várias atividades, a gente atua diante do supremo, a gente atua indo diretamente aos locais de conflitos aos direitos humanos, entre outras. A ministra Raquel Dodge afirmou para nós que temos que lutar pelos invisíveis, pelas pessoas que não aparecem no jornal, pelas pessoas que não são protegidas e de alguma forma a gente está tentando fazer isso. Eu queria colocar isso, esse pequeno trabalho que a Comissão Arns faz na mão da comissão. Conte com isso, a gente pode pouco, mas no limite do que a gente pode, atuamos!”, concluiu.
FOME SE AGRAVA
Mariana Moura corroborou com a discussão e alertou para o agravamento do mapa da fome no país, com o repentino aumento de pessoas em situação de rua no estado de São Paulo. Mariana afirmou que é preciso fortalecer a comissão e as políticas públicas para combater a fome e defender os direitos humanos.
“Eu sou formada em Relações Internacionais e sei que a carta dos direitos humanos assinada em 1948, está completando este ano em dezembro 74 anos, a Declaração dos direitos humanos, assinada pelos países depois da segunda guerra mundial, culminando com a criação da própria ONU após a carta, contra a barbárie da guerra, foi o momento que estimulou a discussão e a criação dessa carta e hoje a gente vive no Brasil uma barbárie que está se espalhando”, disse.
“O Orlando falou aqui sobre a quantidade de pessoas em situação de rua aqui no estado de São Paulo. Eu sou do Mato Grosso do Sul, cheguei em São Paulo em 1996 e fiquei assustada com a quantidade de pessoas que viviam em situação de rua, porque no interior não tinha isso, em Campo Grande não tinha isso, no interior de São Paulo não tinha pessoas vivendo em situação de rua, era muito raro, e em São Paulo isso me deixou abalada porque eu tendo vivido a minha infância em Campo Grande, eu sabia da quantidade de riqueza que o nosso país, o nosso Estado, o nosso povo, teria a sua disposição e ainda sim existem pessoas que não tinham teto pra morar. Existiam pessoas que não tinham um prato de comida pra comer, isso em 1996. Diminuiu muito nos últimos anos e agora voltou a crescer. Os dados que eu tenho de pessoas em situação de rua, que não são oficiais, porque o governo federal não faz isso, são do movimento da população em situação de rua é que existem hoje 600 mil pessoas nessas condições no estado de São Paulo, não só na capital, no estado inteiro”, continuou.
“Semana passada estive em São Carlos, em Botucatu, existem pessoas em situação de rua também no interior. E muita cidade do interior, a forma como os prefeitos lidam com isso, é botar essas pessoas dentro do ônibus e despachar pra algum lugar. Então, essa é uma questão que precisa ser acompanhada. O Congresso Nacional, a Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo tem a função de fiscalizar o poder público na aplicação da política pública, então fiscalizar esse tipo de ação, o que está sendo feito com essas pessoas é muito importante, especialmente nesse momento vivendo no Brasil”, disse Mariana.
“A questão da fome, eu sei que não está na carta dos direitos humanos, mas é um direito inalienável. O Brasil tem hoje 33 milhões de pessoas passando fome. A gente não pode conviver com isso, eu tenho certeza que a Câmara Federal e o Orlando na Comissão de Direitos Humanos têm condição de fiscalizar o que está sendo feito pelo Governo Federal e o que não está sendo feito para lidar com esse problema. Ainda, 113 milhões de pessoas não sabem o que vão comer no dia seguinte. Olha, eu tenho prato de comida de hoje, mas hoje à noite, eu não sei se eu vou jantar, ou amanhã eu não sei se eu vou ter o que comer na hora que eu acordar. A fome é uma coisa que limita qualquer outra coisa que a pessoa for fazer. Com fome você não faz mais nada. Você não consegue lutar, você não consegue resistir, você não consegue trabalhar com fome, você consegue estudar com fome”, continuou.
“A fome é sim um problema de direitos humanos e como todos aqui se colocaram à disposição da comissão, eu também me coloco e os cientistas engajados grupo do qual eu também faço parte, também estão à disposição. Aqui na USP a gente tem um grande pesquisador José de Castro que falou da geografia da fome, tem a cátedra José de Castro na faculdade de saúde pública, eu tenho certeza que eles tem o interesse em ajudar nesse debate, nessa discussão e nessa fiscalização de levantamento de dados, pois no Brasil, hoje também é o problema de acesso aos dados em todas as áreas do poder público é fundamental e cada vez maior”, concluiu Mariana.