No Meia Noite em Pequim, da TV Grabois, desta semana, o pesquisador e escritor Elias Jabbour debate as suposições de que a China “está quebrando”, com todo tipo de rumor, até fake news de “tanques protegendo bancos chineses na província de Henan” de pessoas que queriam “invadir para recuperar suas poupanças”. “Faz 25 anos que estão dizendo que a China vai quebrar, só que a China não quebra”, ele registra.
Não vai quebrar – assinala o pesquisador- por alguns motivos. Primeiro, a China tem uma base que é estatal, composta por 96 conglomerados empresariais estatais, que são amparados por 30 bancos estatais de desenvolvimento de longo prazo que financiam essas empresas em moeda própria, em moeda fiduciária. Ou seja, é impossível quebrar uma economia cujo resultado econômico financeiro é público, não é privado.
Jabour observa que um dos problemas da análise sobre a China é “a crença de que a China é uma economia capitalista tradicional composta por um setor privado no núcleo e sujeita às mesmas leis que as outras economias do mundo”.
“Não é o caso da China, que tem um poderoso setor público da economia no seu núcleo e isso impede que o país entre na mesma velocidade e no mesmo fundo de crises como você vê em outras economias”, ele enfatiza.
RAPIDEZ EM ENFRENTAR OS DESAFIOS
“O governo chinês conseguiu em 20 anos construir um grande esquema institucional e político tendo em vista enfrentar desafios muito rapidamente. A característica chinesa é essa: quando vem uma crise internacional, eles conseguem lançar pacotes fiscais, conseguem redirecionar o compasso da sua economia. Consegue dar respostas imediatas, a Covid-19 foi a mais espetacular dessas reações, cujos efeitos estamos vendo até hoje”, acrescenta Jabbour.
O que aconteceu com a China ultimamente: “entrou em um processo de urbanização durante a década de 1990, que criou um setor imobiliário no país, que acabou por se tornar um grande monopólio privado”. O que, do ponto de vista da construção do socialismo, significa um processo de aprendizado. Embora, para o pesquisador, haja sido um “equívoco” a decisão do governo chinês de entregar um setor dessa importância para economia a um setor privado, ainda mais em um processo de urbanização.
Esse setor privado, no caso da Evergrand, que é a maior empresa, ela conseguiu entregar para a sociedade 70 milhões de apartamentos, o que é uma coisa fantástica. E é sob esse prisma que se deve julgar um processo histórico de propriedade. O privado não é bom ou ruim por natureza, nem o Estado é bom ou ruim por natureza, o que existe é se tal forma de propriedade é capaz de entregar aquilo que a sociedade necessita ou não, destaca o apresentador.
EVERGRAND EMBARCOU NA ESPECULAÇÃO FUNDIÁRIA
O problema que houve foi que a Evergrand embarcou em uma onda que é muito comum em toda economia em que o setor imobiliário joga um grande peso, que é “a especulação fundiária”. Todo mundo já sabia na China e o Xi Jinping havia dado o recado em 2015 de que apartamento era “para construir, não para se especular”.
Esse setor imobiliário privado – explica Jabbour – tinha acesso à terra porque as províncias alugavam grandes porções de terras para as empreendedoras construírem apartamentos, essa era uma fonte fiscal para as províncias. Não faltou sinalização ao setor privado de que a onda de especulação não ia longe e em certa medida a quebra da Evergrand foi incentivada pelo governo chinês.
“Fizemos vários vídeos sobre isso e na época o vídeo de maior visualização em nosso programa é sobre a Evergrand e se a China ia quebrar ou não. Como eu coloquei na época, isso não aconteceu porque a maior parte da dívida da Evergrand é em moeda chinesa e os bancos chineses são estatais; se fossem privados, a China literalmente poderia quebrar”, assinalou o pesquisador.
US$ 80 BI PARA GARANTIR ENTREGA DOS APARTAMENTOS
Acontece que ao quebrar a Evergrand tinha um portfólio de 2 milhões de apartamentos para entregar e não tinha condição de fazê-lo. Os 2 milhões de proprietários dessas hipotecas, de duas a três semanas para cá, simplesmente deixaram de pagar essas hipotecas e bancos da província de Henan se julgaram no direito de segurar a poupança dessas pessoas como uma suposta quebra de contrato. Uma atitude horrorosa, tanto que cabeças estão rolando na China em relação a isso e que levou a uma onda de protestos.
“Hoje mesmo eu li a notícia que o governo vai injetar o equivalente a 80 bilhões de dólares nessas empreiteiras para que elas possam entregar esses apartamentos”.
A China ainda sofre nesse momento – aponta Jabbour – as dores do parto de um setor imobiliário que quebrou e ainda está em um processo de reestruturação, que vai demorar de dois a três anos. Quando o setor imobiliário quebra na China, toda uma cadeia produtiva vai junto.
É um processo que vai passar pela estatização do setor, o que já está acontecendo, mas por envolver vários interesses provinciais e municipais, não pode acontecer de cima pra baixo, além de poder se configurar no maior processo de estatização de uma empresa no mundo, assim, é um processo que vai se arrastando.
US$ 3 TRILHÕES DE LIQUIDEZ
Outra questão de longo prazo é a estatização. As histórias sobre ‘povo correndo atrás de tirar dinheiro dos bancos é uma brincadeira, os bancos chineses têm muita liquidez, 3 trilhões de dólares em reservas cambiais e isso garante o colchão monetário chinês e impede um país desses de quebrar.
“Quando algum economista disser que a China vai quebrar, lembrem disso. Nenhum país quebra com 3 trilhões de dólares de reserva. Nenhum país do mundo quebra com grandes reservas cambiais e muito menos em moeda própria. Um país quebra a partir de uma fragilidade externa. E por esse motivo não há como a China quebrar, mas existe toda uma onda em cima da economia chinesa e a corrida aos bancos de Henan foi a ‘cereja do bolo’ desse tipo de história”.
Mas o que esta acontecendo de fato é que enquanto o mundo inteiro já abriu a China continua com uma política muito dura de Covid Zero. Então vira e mexe uma grande cidade chinesa entra em lockdonw, isso porque se alguém se contamina em algum bairro, todo o bairro é paralisado. Então isso tem trazido várias discussões aqui no ocidente de que a China é um país ditatorial que prende as pessoas em casa porque elas estão com Covid-19, e elas não podem exercer sua liberdade de ir e vir.
ESTADO DE DIREITO E LOCKDOWN
“A China está construindo um Estado de Direito e a partir disso uma democracia com características próprias, e eu acho que é correto que, se tiver contraído Covid-19 e puder contaminar outras pessoas, dá sim ao Estado o direito de falar que essas pessoas não podem sair na rua porque elas podem prejudicar a comunidade, o coletivo”, afirmou Jabbour.
Então existe um debate ideológico sobre o que são liberdades individuais. E há militantes da ultradireita na internet dizendo que a China é uma ditadura por conta das pessoas serem trancadas em casa por causa da política de Covid Zero. “Eu acho que é correta a política de Covid Zero: eles colocaram a vida na frente da economia”.
Agora isso é uma escolha clara do Partido comunista. Xangai, por exemplo, é um dos principais centros industriais da China e quando acontece o lockdown, ocorre uma ruptura das cadeias de valor nacionais e uma queda de valor na economia do país. E como a China corresponde hoje a 18% da economia global, ela exerce um poder muito grande sobre a oferta e demanda das economias do mundo inteiro, há uma pressão enorme sobre a China contra essa política de Covid Zero.
Enquanto nos EUA há uma naturalização da morte de 1 milhão de pessoas por Covid-19. Ou seja, o grau de degeneração do ser humano ocidental é tão grande, que há pessoas que defendem o direito das pessoas morrerem e infectarem outras pessoas e levarem elas à morte; esse é o mundo em que vivemos hoje.
EM BUSCA DA PROSPERIDADE COMUM
Outro ponto é que a China tem se caracterizado nos últimos 40 anos por um processo de desenvolvimento em que ela consegue observar experiências prévias e entregar soluções institucionais capazes de resolver pontos de estrangulamento em seu processo de desenvolvimento.
A China hoje está com uma estratégia muito clara de buscar prosperidade econômica comum, ou seja, de enfrentar as enormes desigualdades sociais que foram abertas no país desde a abertura de 1978.
“Se você quiser ser rico na China não tem problema desde que a sua empresa tenha uma serventia no projeto nacional do país. Então os Chineses hoje passam por um processo que também explicam muitos dos problemas econômicos chineses, uma transição da forma de propriedade. Existe uma mudança, existe um processo de surgimento de formas históricas novas de propriedade que substituem as privadas por outras em que o setor dominante é a pública”.
Existe o que se chama onda regulatória sobre o setor privado, que não é de pequena monta. Para vocês terem uma ideia, as taxas de lucro do setor privado chinês só cresceram 1% no último ano enquanto no setor estatal cresceram 8%. O que significa que o setor privado perdeu muita força nos últimos tempos, resultado dessa onda regulatória e do surgimento de novas formas de propriedade no país.
Ou seja, o que segura a onda da economia chinesa é o setor estatal, apesar de haver um enorme setor privado – só que esta regulação é uma intensa intervenção do partido Comunista. Há duas semanas a grande discussão na mídia chinesa e no governo é como o Partido Comunista chinês poderia entrar de cabeça nas multinacionais que atuam no país. Ou seja, não apenas haver a obrigatoriedade de existirem células do Partido Comunista em empresas que atuam na china, mas haver membros do partido comunista na direção dessas empresas, ou seja, do governo chinês.
CHINA VAI CRESCER O DOBRO DOS EUA E DEZ VEZES O JAPÃO
Para terminar, para um ‘país que está quebrando’ a China vai crescer este ano 4%, o dobro dos EUA, e dez vezes o crescimento do Japão. Mais: a produtividade do trabalho na China vem crescendo acima dos EUA há 20 anos. Os americanos crescem em média sua produtividade do trabalho em 6% e a China, 8%, o que se repetiu em 2021. Então – conclui Jabbour -, nenhum indicador sério demonstra que a China está passando por problemas sérios de liquidez ou por problemas sem volta. Muito pelo contrário, vai crescer 4% num mundo em que os EUA vão crescer 2% e a Alemanha, 1%.
Elias Jabbour é professor dos Programas de Pós-Graduação em Ciências Econômicas e em Relações Internacionais da UERJ.