No Meia Noite em Pequim desta semana, o pesquisador e escritor Elias Jabbour aborda as “polêmicas do 20º Congresso do PCCh” – ou àquilo que a grande mídia omitiu, tentando ignorar a importância do Congresso -, com a participação especial da amiga e jornalista Heloísa Villela, correspondente da CNN Brasil nos Estados Unidos.
Como observou Heloisa, a economia da China “dirige a economia mundial, tem impacto em todos os países” – então, o que aconteceu lá “a gente precisa saber urgentemente”. No entanto, “não se vê nenhuma discussão a respeito do que o congresso decidiu e o mundo precisa saber”.
No lugar disso, a cena do ex-presidente chinês Hu Jintao sendo retirado do Congresso ajudado por um assessor foi reprisada e manipulada para desclassificar todo o processo do Congresso, de quatro a cinco meses, em que 90 milhões de pessoas foram consultadas sobre as teses lançadas pelo Comitê Central para orientar o desenvolvimento soberano da China.
No Fantástico, um apresentador acrescentou à cena, de forma hipócrita e rasa, que Xi Jinping havia se tornado um “ditador” de fato com o terceiro mandato e que na China é “tudo controlado”.
Nada diferente do que ocorreu nos EUA. “Em vez de contarem o que aconteceu no Congresso, só se fala dessa imagem, e só interpretação, ninguém sabia de nada do que estava acontecendo, e ficou interpretando – até que alguém colocou uma imagem de Hu Jintao entrando no Congresso, que deixa entender claramente que ele está com algum problema de saúde, que ele está com uma dificuldade, que ele não anda sozinho e foi trazido por um assessor, e que para sair também foi conduzido por um assessor”, relatou Heloísa.
“Hu Jintao expulso durante o Congresso” – isso não existe, afirmou o pesquisador, que lembrou que o ex-presidente, que passou o bastão a Xi Jinping, de 79 anos, tem Alzheimer. “Muito pelo contrário, eles são amigos, inclusive”, destacou.
Além disso, não faz parte do cerimonial chinês, da tradição chinesa ou das grandes ocasiões chinesas uma coisa daquelas. O Alzheimer é um fato e traz transtornos de comportamento. Tanto que Hu Jintao sai completamente desconcertado daquela circunstância.
Essas fontes de desinformação também asseveraram que Hu Jintao seria “o chefe de uma facção interna do Partido Comunista que seria oposição às políticas antineoliberais de Xi Jinping”. Alegações refutadas pelo pesquisador: “Não é verdade; a maioria das reformas atribuídas a Xi Jinping foi iniciada por Hu Jintao”. Por exemplo, os processos de intensificação do papel das empresas estatais na condução da economia, o sistema financeiro público. Tanto que a crise financeira de 2008 ela foi enfrentada ainda sob o poder de Hu Jintao.
Assim, a suposta ‘expulsão’ não passa de uma falsa polêmica e para Jabbour o que deveria estar sendo discutido no Ocidente sobre o 20º Congresso é como Xi Jinping aprofundou uma grande unidade nacional capaz de fazer frente às contradições internas e externas da China.
O que ele comparou com a divisão vivida nos principais países do Ocidente. Nos EUA 48% da população acha que o país está vivendo um tipo de guerra civil, inclusive muitos americanos acreditam que o país está vivendo sob uma ditadura agora. A Inglaterra, nem se fala: a primeira-ministra caiu depois de 45 dias. “Por que a China consegue manter sua unidade, apesar das suas contradições, um país de 1,4 bilhão de habitantes? Eu acho que essa é uma questão que deveria ser respondida no Ocidente”, sublinha Jabbour.
Instado por Heloisa, o pesquisador elaborou sobre as inovações institucionais voltadas à valorização do trabalho em detrimento do capital fortalecidas no Congresso e a meta de “conquistar a prosperidade comum a qualquer custo”. O que significa que vai ter taxação de grandes fortunas e dividendos, o que é politicamente complicado num país que tem bilionários.
Também o movimento em curso de valorização do trabalho e de desprecarização. A Mentuan, que é o I Foods chinês, foi multada em US$ 300 milhões por não pagar direitos trabalhistas, nem férias, nem auxílio de saúde para os entregadores de comida.
A tônica do Congresso foi a construção da prosperidade comum. Há sinalizações da construção do maior Estado de bem-estar social do mundo em dez anos. Hoje a China tem uma cobertura médica, hospitalar, educacional básica, mas que não atinge o suficiente.
Também uma reforma empresarial que dê continuidade ao papel das estatais e ao fortalecimento do papel do Partido Comunista nas estatais, no sentido de se conquistar a autonomia tecnológica em relação ao Ocidente. Cada semana nos Estados Unidos é um decreto novo para fazer com que a China sofra bullying tecnológico, para que a China não tenha acesso às infraestruturas de semicondutores, destacou Jabbour.
Nesse congresso, a palavra segurança foi citada tantas vezes quanto a palavra crescimento econômico, registrou o pesquisador. Os chineses alçaram a luta ideológica ao grau de segurança nacional.
Isso é filtrar cada vez mais o que vem de fora para dentro para que os Estados Unidos não sejam capazes de desintegrar aquela sociedade, como ocorre hoje no Brasil, apontou Jabbour. O Brasil é o grande laboratório que os chineses olham sobre o que não deve ser feito sobre essa questão, ou seja, a liberdade total de entrada e saída de informações e a normalização das fake news.
Expressão disso, o Congresso ratificou a estatização dos algoritmos. Ou seja, a profusão de fake news se torna proibitiva na China. Quanto à questão levantada por Heloisa se isso não significa controle total da informação, o pesquisador observa que, quando usamos o Facebook, o Google, Instagram, Twitter, estamos entregando nossos dados para conglomerados norte-americanos, que utilizam esses dados da forma que bem entendem.
Como na eleição de 2018: os disparos de fake news que ajudaram a eleger Bolsonaro saíam dos Estados Unidos. Na China, a diferença é que lá a comunicação é pública, é do Estado. E lá o Estado, em nome da segurança nacional, não permite que tenha o Google, Facebook, Twitter. Eles constroem plataformas alternativas às ocidentais, tanto é que o chinês comum não sente a menor falta do Facebook, Twitter.
“No Ocidente temos três grandes grupos empresariais – Reuters, Associated Press e France Presse – que controlam tudo do noticiário internacional que chega para nós aqui no Ocidente. Nos EUA, alguns bilionários controlam os meios de informação e se arvoram no direito de falar de democracia e de direitos humanos. No Brasil, sete famílias controlam 70% ou 80% do que chega até nós. Na China, é o Estado”.
Heloisa contou que fica “muito intrigada com essa ideia de que uma pessoa de classe média americana se preocupe tanto com seus direitos individuais, com seu direito de acessar um jornal específico, e não tenha problema em continuar vendo um monte de gente mendigando na rua como a gente tem visto cada vez mais”. Ou seja, em nome de que você abre mão de umas coisas e não de outras.
“A gente fala que a China fez um programa para acabar com a miséria e acabou, tirou todo mundo da fome, deu um padrão de vida que o país não tinha, é um país de Terceiro Mundo, isso tem que ter algum valor”.
Os chineses estão construindo um Estado de Direito que permita fortalecer uma democracia de fato com características chinesas, enfatizou Jabbour. E onde não existe Estado de Direito, não existe democracia, existe atomização de indivíduos, é o indivíduo se achar no direito de não tomar vacina, o indivíduo ter a vontade de colocar uma bomba atômica nas costas e atingir quem ele quiser.
É a desregulamentação da vida social, é a negação da política. Brasil e Estados Unidos são expressão disso, e do Estado de Direito, que são as duas formas históricas construídas que levam pessoas como eu e você, com divergências de pensamento, possam se encontrar, sem combinar, e trocar ideias.
Isso acabou no Ocidente. Uma pesquisa que Harvard fez mostrou que no Ocidente a média é que 17% das pessoas acreditem na política; na China, mais de 70%!
Isso demonstra, em certa perspectiva, a métrica de uma sociedade, para onde caminha. A China tem problemas? Tem, seríssimos. Agora, vamos olhar para nós. Como eles conseguiram enfrentar a Covid-19? Como conseguiram enfrentar a pobreza extrema? Como vão dar conta da guerra tecnológica?
“Vamos olhar para cá mesmo, para os Estados Unidos”, sugere Heloisa. “Se você vê o que acontece nas cidades americanas de 2008 para cá, eu só vi decadência. Desde a crise financeira de 2008 eu comecei a ver em lugares que eu não via o surgimento de pessoas mendigando. Isso só se multiplicou nos últimos anos. As pessoas aqui entram em falência se têm uma doença mais séria, porque não têm como pagar o tratamento. São coisas que não deveriam acontecer no país que supostamente é o exemplo do modelo de capitalismo”.
A jornalista comenta que o presidente Biden, desde que assumiu, vive dizendo que “temos que mostrar que é a democracia que entrega melhor para o cidadão e não a China” – o tempo todo. “Isso me lembra de quando acabou a União Soviética. Era a preocupação de muita gente: como vai ser o capitalismo agora sem um contraponto, sem ter que mostrar que funciona melhor do que a União Soviética? O que nós vimos foi uma galopante fúria do capitalismo sem rédea e agora está se comparando com a China. Fala aí, caramba, os caras estão mostrando alguma coisa que está dando certo, como vamos deixar esse povo aqui passando fome, como vai ficar para a gente?”
Elias Jabbour é professor dos Programas de Pós-Graduação em Ciências Econômicas e em Relações Internacionais da UERJ.