Um dos principais jornais franceses, Le Monde, dedicou ao presidente Jair Bolsonaro um editorial em que adverte sobre o risco de que arraste o Brasil para um “perigoso voo às escuras” em meio à pandemia.
“Sem dúvida, há algo de podre no reino do Brasil, onde o presidente, Jair Bolsonaro, consegue dizer, sem pestanejar, que o coronavírus é uma “gripezinha” ou uma “histeria” nascida da “imaginação” da mídia, registra o jornal em sua edição de terça-feira (19).
Algo de podre – sublinha Le Monde – “quando ele vai ao encontro de aglomerações de seus partidários, incita as autoridades locais a eliminarem as restrições e afirma que a epidemia ‘está começando a desaparecer’, enquanto os cemitérios do país registram um número recorde de enterros”.
Como se não bastasse, há ainda seu ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, o do ‘comunavírus’, que alega que “a pandemia é o resultado de uma conspiração comunista”.
Ou quando “justamente no dia em que o país atingiu 240.000 casos confirmados e mais de 16.000 mortos” o ministro da Saúde Nelson Teich renuncia em 15 de maio, quatro semanas após sua nomeação para esta pasta crucial, por ‘diferenças de opinião’ com Bolsonaro.
Le Monde salienta que “para muitos, as horas sombrias que o Brasil – quinta nação mais afetada pela pandemia – atravessa hoje, relembram as da ditadura militar, quando o país foi submetido ao medo e à arbitrariedade”.
“Com uma diferença significativa: enquanto os generais reivindicavam a defesa de uma democracia atacada, segundo eles, pelo comunismo, o Brasil de Bolsonaro habita um mundo paralelo, um teatro do absurdo onde os fatos e a realidade não existem mais”, assinala o jornal.
“Neste universo sob tensão, alimentado por calúnias, incoerências e provocações mortíferas, a opinião se polariza em torno de um nevoeiro de ideias simples, mas falsas”, destaca a publicação francesa.
Negacionismo impulsionado pelo governo que “demove metade da população de se confinar, enquanto os apelos para o distanciamento social lançados por profissionais de saúde, governadores e prefeitos são seguidos frouxamente”.
Como ressalta o jornal, Bolsonaro diz que a atividade econômica “deve continuar a todo custo”, parecendo “não apreender a real dimensão da pandemia”, enquanto faz “um cálculo político insano: os efeitos devastadores da crise serão atribuídos à oposição”.
AOS NA SAÚDE
“Oficial subalterno expulso do exército e obscuro deputado de extrema-direita, ridicularizado por seus pares por três décadas, Bolsonaro, claramente, não possuía as qualidades de um estadista. Chegando ao poder, devorado pelo ressentimento e pela nostalgia fascista, o ex-capitão da reserva tem repetidamente soado a acusação contra o vergonhoso ‘sistema’”. Uma postura que, em tempos de pandemia aguda, “causa caos à saúde e semeia a morte”.
Como analisa Le Monde, de tanto trapacear com os fatos, tais governantes “acabam por acreditar em suas próprias mentiras” – vê-se isso “em outras partes do mundo”.
Mas aqui, neste país que saiu da ditadura há apenas trinta e cinco anos, onde a democracia permanece frágil e até disfuncional, “o fato de politizar, sem limites, uma crise sanitária dessa magnitude é algo totalmente irresponsável”.
“Com uma base eleitoral de 25%, Bolsonaro sabe que sua margem de manobra é estreita”, observa Le Monde. “Alguns evocam agora o cenário de um golpe de estado institucional. Diante da multidão que veio apoiá-lo em Brasília, o presidente deixou claro no dia 3 de maio que, no caso de uma investigação do STF contra ele ou seus familiares, não respeitaria a decisão dos juízes”.
Ao concluir, o jornal francês enfatiza que “depois de ter praticado o negacionismo histórico ao exaltar a ditadura, negado a existência de incêndios na Amazônia e a gravidade da pandemia do Covid-19, Bolsonaro e sua tentação autoritária correm o risco de arrastar o país para um perigoso voo às escuras”.